sexta-feira, outubro 29, 2010

Da realidade e da autoridade

Esta fotografia foi tirada por mim há oito dias numa propriedade da Altri, uma das duas celuloses que existem em Portugal. Gostaria de fazer notar que a notável galeria ripícola que se vê à direita se prolonga por cerca de oito quilómetros, gerida pela Altri com objectivos de conservação. Na baixa que se vê à esquerda foram retirados os eucaliptos da primeira florestação (penso que nos anos 80), tendo sido plantados freixos (eu tenderia a preferir a evolução natural). Nesta propriedade a entrega destas baixas, tradicionalmente agricultadas, à conservação é uma opção sistemática que permitirá que a mata ripícola ocupe de novo as baixas aluvionares que lhes pertenciam há séculos atrás (situação raríssima no Portugal actual). Em cima à esquerda reconhece-se o caminho que separa a área de conservação da área de produção intensiva de eucalipto. Esta baixa tinha (e ainda tem) uma forte infestação de exóticas invasoras (a mancha mais clara que encosta à galeria ripícola é bambu, por exemplo) que está a ser controlada pela gestão. Voltarei a fotografias desta visita um dia destes. Declaração de interesses: colaboro profissionalmente com a Altri

Jorge Paiva é um botânico conhecido e reconhecido, com uma longa história de activismo ambiental, a quem o movimento ambientalista deve estar reconhecido.
Apesar disso, ou melhor, especialmente por isso, não quero deixar passar em branco algumas afirmações feitas no contexto de uma série de artigos sobre biodiversidade patrocinados pelo BES, publicados às quintas feiras no Público.
Uma derivação para a curiosa forma como surgem esses artigos, em que textos claramente da responsabilidade do jornal intercalam com textos claramente da responsabilidade do BES.
O texto que quero comentar é claramente da responsabilidade do jornal, e especificamente do jornalista Nicolau Ferreira, que não conheço e cuja fidelidade ao que é dito não sei avaliar.
Mas conheço Jorge Paiva, cruzamo-nos aliás com frequência no comboio das seis da manhã, e reconheço no que li algumas constantes do seu discurso público sobre as matas em Portugal: uma glorificação constante de um mítico passado de gestão das matas no tempo dos serviços florestais; uma amargura constante face a um futuro que é sempre negro; uma caracterização do presente que é sempre mais negra que a realidade. E uma profunda desatenção ao que é feito em concreto na gestão das matas de produção e às alterações sócio-económicas que estão a transformar a natureza dos problemas de conservação em Portugal.
Ficam por isso algumas notas ao artigo em causa, porque continuo convencido de que é preciso combater o excesso de catastrofismo no discurso ambientalista dominante.
"Eu não digo isto aos miúdos, mas para mim a floresta portuguesa não tem salvação".
Não preciso de conhecer o jornalista para saber que esta frase traduz fielmente Jorge Paiva. Com dezenas de variações ouvi-a constantemente em todas as intervenções públicas que tem feito.
Mas é uma frase cuja fundamentação é muitíssimo frágil, sendo em alguns aspectos assente em pressupostos errados, revelando uma falta de rigor que sempre me intrigou no discurso de Jorge Paiva, por não bater certo com sua reconhecida carreira académica.
""Ficaram mais castanheiros, porque o carvalho foi mais cortado", esclarece o botânico. Para ver carvalhais é preciso ir à serra do Gerês ou à de Montezinho. "O nosso país não tinha pedra à mostra (como as serras despidas). Quando a floresta é incendiada ou derrubada, todo o solo vai embora."".
Este parágrafo é extraordinário como ilustração da falta de rigor do discurso catastrofista. Jorge Paiva e o jornalista estão na Margaraça, sempre tratada como um paraíso florestal selvagem em todo o artigo, mas que ardeu várias vezes nos últimos anos, sendo o mais extenso e violento incêndio em 1987, numa demonstração evidente de que a afirmação feita sobre os efeitos do fogo não tem correspondência na realidade (o artigo aliás fala também na Arrábida, outro exemplo documentado de recuperação total após fogo).
Mas se as ideias sobre os efeitos do fogo em matas maduras são mais controversas, o que seguramente não faz o menor sentido é dizer que quem quer ver carvalhais tem de ir ao Gerês e a Montezinho (dou aqui de barato a imprecisão geográfica de se considerar como incluída na expressão "Montezinho", também a Nogueira e outras áreas próximas de Montezinho, visto que a não ser assim a frase seria de uma ignorância que evidentemente Jorge Paiva não tem).
Hoje o carvalhal recupera inegavelmente em todo o país. E se até há pouco tempo essa recuperação era menos visível a escalas mais abrangentes, hoje é o recente inventário florestal que a reconhece à escala do país.
Por último, a ideia de que o país não tinha pedra à mostra é uma ideia que carece que ser contextualizada no tempo. É que para sustentar a ideia de que floresta em Portugal não tem futuro era preciso que esta ideia fosse verdadeira nas décadas anteriores, digamos, nos dois séculos anteriores. Sem a contextualização temporal que remete a ideia de que o país não tinha pedra à mostra para largas centenas de anos atrás, a ideia é pura e simplesmente uma mistificação.
Simplesmente não é verdade para os últimos dois séculos, sendo hoje o grau de cobertura do solo incomparavelmente maior que há 50/ 100 anos atrás.
"Porque é que não acredita que vamos conseguir manter isto? "Há alguma preocupação, mas não vejo meios eficazes, em Portugal muito menos. Criamos reservas, mas estão cada vez mais deterioradas, com menos pessoal, mais incêndios e muita pressão imobiliária."".
Aqui está a explicação. A ideia de que a conservação é uma questão de reservas e recursos alocados pelo Estado. A ideia de avaliar a conservação em função do esforço do Estado em retirar ao processo produtivo pedaços do território, em detrimento de uma compreensão dos mecanismos económicos que produzem riqueza e biodiversidade, é a génese do pessimismo de Jorge Paiva, que o leva inclusivamente a perder o rigor de análise que procurei demonstrar acima, quando esquece os processos de evolução das paisagens (com destaque para uma incompreensível diabilização do fogo que qualquer das avaliações científicas feitas até hoje por equipas de botânicos não suporta).
Uma ideia comum.
Mas errada.
henrique pereira dos santos

12 comentários:

Luís Lavoura disse...

Eu só posso dar o meu parco testemunho dos campos que conheço melhor, na minha zona da Bairrada. E o que por lá vejo é sobreiros (que na região são endémicos) a crescer por todo o lado, nascidiços. E também vejo montes de carvalhos jovens a crescer, embora menos do que os sobreiros. As pessoas com quem falo, aliás, têm grande amor a estas árvores e tomam cuidado em jamais as cortar.

Nessa zona, mesmo em regiões em que o que mais se vê são eucaliptos e pinheiros, convem entrar pelo meio da floresta para ver que, por debaixo dessas árvores mais altas, há imensos sobreiros e carvalhos a crescer.

E posso dizer mais: as pessoas plantam essas árvores, como se pode comprovar pelo facto de qualquer viveiro florestal da região as ter disponíveis. Os carvalhos americanos (está bem que é uma espécie exótica..), por exemplo, estão atualmente a ser muito plantados (inclusivé por mim).

Anónimo disse...

A diabolização de uns é talvez a resposta à canonização de outros :-)

"Gostaria de fazer notar que a notável galeria ripícola que se vê à direita se prolonga por cerca de oito quilómetros, gerida pela Altri com objectivos de conservação."

Vem do tempo de Salazar uma Lei, ainda em vigor, que proíbe aplantação de espécies de crescimento rápido junto a linhas de água. Suponho que a notável galeria ripícola que a Altri gere com objectivos de conservação sempre lá esteve. Se não fazer nada é a forma de gestão que o Henrique quer enaltecer, compreendo-o. Mas não é caso para tantos aplausos.

"Na baixa que se vê à esquerda foram retirados os eucaliptos da primeira florestação (penso que nos anos 80), tendo sido plantados freixos (eu tenderia a preferir a evolução natural). Nesta propriedade a entrega destas baixas, tradicionalmente AGRICULTADAS, à conservação é uma opção sistemática"

A mesma coisa, ou seja, a dita Lei do tempo de Salazar proibia a plantação de eucaliptos encostadas a linhas de água e terrenos de culturas. A Altri apenas está a cumprir a Lei, que eventualmente não respeitou nos anos 80.
jaime

Henrique Pereira dos Santos disse...

Jaime,
Conheço mal essa legislação (já agora, de que diploma estamos a falar?).
Penso que tanto a florestação da CELBI nos anos 80, como o projecto actual em execução (que é uma reflorestação) terão cumprido a lei e sido aprovados pela administração. Penso que nada na legislação obriga, numa reflorestação, a prescindir de áreas que já eram eucaliptal para as dedicar ao que quer que seja. Penso que essa terá sido uma opção voluntária da Altri, mas conheço mal este processo de florestação, fui apenas acompanhar uma visita de estudantes de silvicultura para ver a tal galeria ripícola.
Em qualquer caso o post não é sobre isso.
A fotografia apenas está ali para mostrar que há áreas de relevante interesse conservacionista no meio dos espaços mais intensamente produtivos do país (incluindo os que têm má fama, como os eucaliptais).
E que não é verdade que para ver carvalhais se tenha de ir ao Gerês ou a Montezinho. Ou que tenham de se declarar áres protegidas. Há outros instrumentos para além desses, que são inegavelmente importantes.
Neste caso não é um carvalhal mas é uma coisa bastante mais rara: uma galeria ripícola em belíssimo estado de conservação, como conheço poucas em Portugal.
henrique pereira dos santos

Henrique Pereira dos Santos disse...

Jaime,
Fui ver. Parece-me que será a isto que Jaime se refere:
"e) É proibida, nos termos do Decreto-Lei n.° 28 039, de 14 de Setembro de 1937, a
plantação ou sementeira destas espécies a menos de 20 m de terrenos cultivados e a
menos de 30 m de nascentes, terras de cultura de regadio, muros e prédios urbanos".
Nenhuma restrição a terrenos que um dia foram agrícolas (o que está condicionada é a proximidade a terrenos cultivados, o que manifestamente não é hoje o caso e não sei se seria nos anos 80), nenhuma restrição à proximidade a linhas de água (foi isso que mais estranhei no comentário, porque os choupos só são plantados nessas circunstâncias).
Ou seja, aparentemente e em tese, é um bocadinho excessivo dizer que a lei não foi cumprida pelas celuloses.
Eu sei que é normal e fácil dizer isso das celuloses e ninguém se chateia (penso que nem as celuloses, que já devem estar habituadas) mas que parece excessivo, lá isso parece.
henrique pereira dos santos

OLima disse...

Pode saber-se em que local foi tirada a foto que ilustra esta posta? Octávio Lima (ondas3.blogs.sapo.pt)

Henrique Pereira dos Santos disse...

http://ambio.blogspot.com/2009/11/estara-tudo-perdido.html
É dar um salto a este post. Não linquei porque era só a ilustração do post, não era o essencial.
henrique pereira dos santos

Jaime Pinto disse...

Henrique,
Considerei um exagero seu a "notável galeria ripícola gerida pela Altri com objectivos de conservação". A Altri não deve ter gasto tempo ou dinheiro, nem está por certo a pensar fazê-lo, na ajuda à natureza na produção das espécies vegetais que notabilizam a galeria.
Também me achei no direito de exagerar um pouco, tendo em consideração o meu ódio de estimação pelas florestas de eucaliptos...

Henrique Pereira dos Santos disse...

Jaime,
Não discuto preconceitos. Peça à ALTRI para lá ir fazer uma visita, ver, ouvir e tirar as suas conclusões.
Mas repare que na legenda eu faço referência a coisas concretas: a florestação com freixo (sobre a qual tenho dúvidas), o controlo de invasoras, coisas desse tipo.
De qualquer maneira as celuloses são bem responsáveis por reacções desse tipo porque têm uma tradição de falta de abertura ao público que as prejudica face ao que hoje fazem (as duas celuloses juntas devem ter sob sua gestão qualquer coisa como 20 000 hectares de áreas de elevado valor de conservação. Porque são fantásticas? Não, porque querem as suas produções certificadas. Porque gostam? Não, porque os consumidores impõem. Mas fazem-no bem? Vá lá ver.).
henrique pereira dos santos

Henk Feith disse...

Jaime,

Teria todo o gosto em mostrar-te a galeria, no entanto pedia-te so um pequeno favor: dispa o casaco de preconceitos bolorentos e venha de espirito aberto para ver com os teus proprios olhos o que e feito e nao e feito la, e se quiseres em mais uma duzia de outros projetos de restauro atualmente em curso, sim, pagos por nos e sem subsidio. E depois sim, teras o direito de exagerar o nao.

Henk Feith
PS, sou responsavel pela gestao dessa galeria e acontece que me orgulho muito da galeria e tiro muito prazer da sua gestao. E se me e dado dar tempo ao tempo, espero tambem de me orgulhar da sua gestao. Mas ai o tempo dira...

PPS, estou a screver num computador neerlandes, que nao tem acentuacao Portuguesa...

Jaime Pinto disse...

Caro Henk Feith,

Sendo o responsável pela gestão dessa galeria, gostaria que explicasse os trabalhos concretos que efectua, ou manda efectuar, para ela se encontrar no excelente estado que a foto demonstra.

A minha crítica/brincadeira (meti um smile) ao hipotético exagero que encontrei no post do HPS, prende-se com o facto de supor que aquela vegetação ribeirinha já lá estava antes das máquinas, nos anos 80, terem lavrado a terra para plantar o petróleo verde, nome que Mira Amaral, nesse tempo, achou por bem crismar os eucaliptos, pois efectivamente ardem como petróleo e a cor geralmente é verde, apesar das nuances acastanhadas.

Quanto à faixa entre a galeria e os eucaliptos, que se vê na foto, que correspondia a parte da antiga terra agricultada, onde vão plantar freixos, isso é outra conversa. Acho muito bem que o façam, dou-vos os parabéns, mas reafirmo que não aprecio a ideia de se terem plantado eucaliptos em terras agricolas, como foi feito pela sua empresa e por muitas outras, assim como por primos meus e por muita, muita gente.

O solo agrícola é para ser respeitado como tal, espetar-lhe em cima petróleo verde, e em baixo toiça que só máquinas herculeanas conseguem arrancar, à custa de muito petróleo preto, é algo que Salazar não proibiu efectivamente porque nunca supus que Portugal virasse numa geração um doidivanas sem eira nem beira, obeso de dívidas e a assobiar ao céu. Pode ter a certeza que ele, apesar de todos os seus defeitos, nunca iria permitir que hortas se transformassem em eucaliptais, e na panela da sopa dos portugueses cozessem exclusivamente feijão e couves castelhanas.

Os Homens sobrevivem como qualquer bicho, ou seja, desde que não os matem e tenham comida, vão-se safando. Se ("quando" talvez fique melhor) nos cortarem o crédito e o petróleo preto começar a esgotar-se, vai ser um óptimo exercício aeróbio arrancar-se a toiça dos eucaliptos a picareta, isto se os portugueses, ao tempo, acharem que valerá a pena continuar como sub-espécie. Provavelmente até será melhor desistir-se da ideia e passarmos a chineses, como paga pelas dívidas que eles desinteressadamente caucionaram uns anos antes.

Quanto ao convite, pode ser que calhe. Aceitarei de certeza caso seja lua cheia, andarem por lá uns porcos (javalis) e me consiga uma autorização para neles malhar um tirinho, lol!
jaime

Jaime Pinto disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Henk Feith disse...

Jaime,

Nao estando em condicoes de responder ja a pertinente questao colocada, tal como uma serie de supostos que necessitam de contra-argumentacao, procurei faze-lo em breve atraves de um post.

Henk