Peço imensa desculpa, mas não vou
seguir este esquema de participação que é, em si mesmo, absurdo, visto que
parte do princípio de que não há críticas de fundo ao documento, mas apenas
melhoramentos pontuais.
Eu gostaria muito de fazer uma contribuição útil para se ter uma Estratégia de Conservação melhorada, mas infelizmente duvido que isso seja possível.
Para tal ser possível seria necessário
que o documento em discussão fosse realmente um documento base para uma estratégia
e que o processo desencadeado não fosse apenas uma peça de campanha eleitoral
para as próximas legislativas.
Comecemos pelo começo: para que serve
uma estratégia?
Uma estratégia, seja ela de conservação,
seja ela para vender pastilhas elásticas ou para ganhar uma guerra, consiste numa
“forma de pensar no futuro, integrada no processo decisório, com base em um
procedimento formalizado e articulador de resultados” para usar uma definição
simples, da wikipedia.
Ora o documento em discussão é um
extenso repositório de listas de coisas (nesse sentido até bastante útil e
demonstrando um esforço notável que gostaria de realçar) e de opiniões não
fundamentadas sobre coisas aleatórias, sem a mínima articulação, sem a mínima
formalização e sem qualquer orientação para resultados.
Uma estratégia é essencialmente um
processo de escolhas e o documento em causa não escolhe quase nada e o que
escolhe fá-lo de maneira totalmente incompreensível, com base em opiniões não
fundamentadas e sem consequência lógica no processo decisório e não decorrendo
da caracterização da situação de referência.
Uma estratégia que tem um texto de 90
páginas, a que se soma um quadro estratégico de 21 páginas é simplesmente inútil:
ninguém consegue perceber o que se vai fazer amanhã, com que meios concretos,
de que forma, com que parceiros e visando que resultados.
O que a estratégia deveria fazer é
escolher o essencial, concentrar recursos na gestão do essencial, identificar
os riscos associados e definir actuações de contingência no caso dos resultados
serem diferentes do esperado.
A estratégia identifica erradamente os
problemas e define uma afectação de recursos aleatória, incompreensível e sem
qualquer ligação com os problemas identificados, repetindo os mesmos clichés
sobre conservação que estão na base da melancólica situação institucional do
sector da conservação (felizmente, não do património natural, que recupera
exuberantemente, independentemente da agonia das políticas públicas do sector e
da completa irrelevância da gestão pública do assunto).
Exemplos:
A estratégia entretém-se a falar de
sistemas completamente irrelevantes e ineficientes, como o SIMBioN, a que ninguém
liga nenhuma e não tem qualquer relevância social, ao mesmo tempo que ignora o
Biodiversity4all numa evidente reprodução de uma longa tradição de
deslumbramento perante a academia e os seus delírios, simultâneo de um desprezo
pela cidadania que tem caracterizado a produção e disponibilização de informação
em matéria de biodiversidade, com os resultados, tristes, conhecidos.
A estratégia fala dos problemas de
conservação, a médio prazo para não se cair no ridículo total, da caça maior,
referindo explicitamente duas espécies em franca expansão, o veado e o corço e
uma terceira que é quase uma praga, o javali. Se isto são problemas de
conservação considerados pela estratégia, é natural que a estratégia tenha ela
própria um problema de conservação de um mínimo dos mínimos de utilidade.
A estratégia identifica como prioritário
para conservação da flora a conservação ex-situ, sem qualquer espécie de
fundamentação (e sem qualquer lógica quer estritamente de conservação, quer de
afectação de recursos). Uma coisa é a estratégia identificar os problemas de
gestão e de afectação de recursos que existem nos bancos de germoplasma e
sementes, outra coisa é dizer que a conservação ex-situ é uma prioridade de
conservação da flora em Portugal.
A estratégia identifica um conjunto de
espécies invasoras a que é preciso dar prioridade, sem que perceba as razões da
lista apresentada, da qual, extraordinariamente, não consta qualquer acácia
(referidas mais à frente, noutro ponto, escrito provavelmente por outra pessoa,
numa boa demonstração de completa desarticulação da estratégia proposta).
Acima de todos estes exemplos está
este extraordinário extracto: “Numa primeira abordagem, a este nível as
prioridades estarão focadas nos ecossistemas que suportam e estão relacionados
com a promoção da resiliência a riscos, incentivando e apoiando a recuperação e
a requalificação ambiental e paisagística das áreas afetadas, designadamente:
(i) áreas percorridas por incêndios
rurais;
(ii) áreas sujeitas a perda de solo,
por erosão, salinização, contaminação ou impermeabilização;
(iii) solos degradados por sobre
exploração, designadamente das áreas com encabeçamentos desajustados
(iv) áreas com espécies exóticas
invasoras; e
(v) áreas de extração de inertes”.
Note-se que em lado nenhum existe
fundamentação para a identificação dos fogos como um grande problema de conservação
(o padrão de fogo que conhecemos resulta exactamente do mesmo processo de
alteração da paisagem que está na base da prodigiosa recuperação dos sistemas
naturais a que estamos a assistir), e é extraordinário que se continue a falar
de sobrepastoreio numa altura de clara perda de pressão de pastoreio (que aliás
faz parte do processo de alteração da paisagem referido) e de processos
reconhecidamente marginais, não falando já do papão da erosão numa altura em
que um dos mais graves problemas ambientais que enfrentamos é o recuo da linha
de costa pela redução de chegada de sedimentos à foz dos rios.
Não admira por isso que a estratégia
tenha uma exótica lista de prioridades de conservação de vertebrados (a estratégia
ignora olimpicamente os invertebrados, para além de uma ou outra referência à
falta de informação sobre o assunto): ““Referem-se em particular os casos das
seguintes espécies ou grupos de espécies: Lince-ibérico, Lobo-ibérico, Coelho,
Saramugo, Águia-imperial-ibérica, Águia-pesqueira, Rola-comum, espécies de aves
necrófagas, Priolo, Roaz-corvineiro, Raias e Tubarões.”.
Note-se que o lobo não está em perda
(está seguramente estável, muito provavelmente em expansão, como em toda a
Europa), que a Águia-imperial está em expansão (ou pelo menos estava até à
ultima doença do coelho), que a Águia-pesqueira não tem o menor problema de
conservação e por aí fora.
Se alguém pretende justificar o financiamento
das pessoas e organizações que predam os recursos da conservação através destas
espécies eu aconselharia um mínimo, mas um mínimo, de fundamentação, ainda que
enviesada, para justificar esta lista onde, tal como está na estratégia, se
reconhece apenas a captura do Estado pelos interesses particulares associados a
cada uma das espécies citadas, sem a menor sombra de interesse estratégico de
conservação.
Há apenas a excepção do coelho e,
eventualmente, da rola-comum e do lince (embora, neste cado, a recuperação do
lince seja um sub-produto da conservação do coelho).
E, já agora, pelo evidente escândalo
que constitui, seria inteligente retirar desta lista a Águia-pesqueira já que
por maior que seja o contorcionismo, não há qualquer hipótese de justificar a
sua inclusão sem ser pelo mero tráfico de influências.
henrique pereira dos santos
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