quarta-feira, dezembro 23, 2015

É poucochinho para os caracóis


Gonçalo Calado diz (ou melhor, o Público diz que Gonçalo Calado diz) "O Estatuto da UICN não é oficial [para as autoridades portuguesas] mas é o primeiro passo para estas estarem de aviso, para quando houver uma revisão da Lista Vermelha das espécies portuguesas o caracol a poder integrar".

Aqui, já em 26 de Junho de 2010, eu lembrava que o Governo, a Administração e as pessoas comuns, incluindo o movimento ambientalista, se estavam nas tintas para o facto de se estar toda a gente nas tintas para a obrigação legal de criação de um Cadastro Nacional dos Valores Classificados.

Eu sei que esta ideia de fazer um Cadastro Nacional dos Valores Naturais, bem como a possibilidade de qualquer pessoa fazer propostas para a integração de valores nesse cadastro, bem ainda como a obrigatoriedade de discussão pública destas matérias que a academia, de maneira geral, trata como coutadas privadas, foi uma ideia a que só foi possível dar forma legal por um conjunto de circunstâncias excepcionais.

E sei que esta ideia é uma ideia ultra-minoritária que acabou adormecida na lei da nação, como acontece, normalmente, às ideias socialmente minoritárias que por circunstâncias fortuitas (uma das quais, ter sido eu um dos principais redactores desta parte do regime jurídico de conservação, que sou um radical da participação pública e da operacionalidade dos instrumentos legais, outras das quais o jurista (Pedro Gama) que apoiou a proposta de regime jurídico, de quem, aliás, é a autoria da ideia do Cadastro, ser um jurista externo ao meio da conservação e de cabeça arejada, outra das quais, coisa rara, estar na presidência do ICN, uma pessoa com visão estratégica e pés assente na terra (João Menezes) e ainda estar a tutela política da conservação nas mãos de Humberto Rosa) acabam na lei geral.

Mas não deixo de me incomodar, e sentir com uma das minhas maiores frustrações profissionais (e a competição é dura) por ver toda a gente, até pessoas como o Gonçalo Calado (que penso que também esteve envolvido na elaboração deste regime jurídico) ignorarem olimpicamente o poder que a lei lhes põe na mão, para ficarem à espera de um Estado incompetente e sem respeito pela lei.

Aqui se diria que "a libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores" mas aparentemente Marx está fora de moda e os trabalhadores não querem assumir o seu destino nas mãos, preferindo a dependência de um Estado que, não sendo falhado, é demasiado povoado, nas suas instâncias de decisão, por falhados que ali estão por acaso e mais ou menos temporariamente à espera do lugar seguinte.

Citando, quer a lei, quer coisas antigas escritas sobre o assunto:

Art.º 29º do DL 142/ 2008 de 24 de Julho, "5 — Na elaboração da proposta de actualização (do cadastro) a autoridade nacional deve ter em conta as propostas apresentadas por qualquer entidade pública ou privada ou pessoa singular, desde que devidamente fundamentadas em informação científica."

Qualquer cidadão pode apresentar, fundamentando cientificamente (o que não significa que tenha de fazer um doutoramento sobre o assunto), propostas de inclusão de qualquer valor no cadastro referindo:
i) Descrição e distribuição geográfica;
ii) Razões que lhe conferem um reconhecimento internacional,
nacional, regional ou local;
iii) Estado de conservação;
iv) Ameaças à sua conservação e, se atribuído, o respectivo
estatuto de ameaça;
v) Medidas de conservação já adoptadas;
vi) Objectivos e níveis de protecção a assegurar;
vii) Medidas de conservação e orientações de gestão
a adoptar.

Precisando:
Esta é a minha leitura do que está na lei, não sei qual será a de quem terá de a aplicar.
Nas versões iniciais do regime jurídico estas pessoas poderiam apresentar propostas de inclusão no cadastro (não se dizia a quem mas como a decisão sobre o cadastro é do conselho de ministros pressupunha-se que ao Governo). Todas as propostas eram assim sujeitas a discussão pública, em princípio. Na versão que foi aprovada as questões processuais estão mais claras mas em rigor o ICNB é que faz as propostas devendo ter em atenção as que lhe são apresentadas pelos cidadãos.
Há perdas e ganhos das versões iniciais para as finais, neste caso ganhou-se em clareza processual o que se perdeu em autonomia face ao Estado.

henrique pereira dos santos

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