sábado, julho 19, 2008

A gente não lê



Há algum tempo, depois dos fogos de 2003, 2004 e, sobretudo, 2005, falou-se muito de centrais de biomassa como um dos mais importantes contributos para a gestão de combustíveis em Portugal com as grandes vantagens de não sobrecarregar o contribuinte e o déficit e ser um reforço no uso de energias renováveis.

Depois disso o assunto desapareceu dos jornais e confesso que não tenho muita informação sobre a matéria, começando por não saber uma questão central: quais são os mixs de combustíveis que se propõem usar os donos das centrais de biomassa.

Para se ter uma ideia, a central de Biomassa de Mortágua usava apenas 2% de matos por razões facilmente compreensíveis: os matos são essencialmente água e ar, têm uma capacidade calórica baixa, é caro o seu corte e, sobretudo, o transporte e ainda correm o risco de auto-cumbustão quando armazenados ao mesmo tempo que entram em decomposição rapidamente diminuindo o seu já pouco interesse calorífico, dificultando muito o seu armazenamento e criando problemas de logística relacionados com o seu aprovisionamento.

Lembremo-nos que estas centrais são suportadas por um regime de incentivo que consiste no pagamento de tarifas mais elevadas dentro de regime especial de produção de electricidade e desenganem-se os que pensam que há almoço sem pagar: de facto não se onera o contribuinte e a despesa do Estado mas onera-se a economia, as empresas e as pessoas, com preços de electricidade mais altos.

Esta é aliás a base de muitas das críticas às energias renováveis (o seu efeito de absorção de recursos que doutra forma estariam disponíveis para a economia produzir mais riqueza) e apenas se justifica a sua manutenção porque os benefícios sociais gerais (sobretudo a internalização do custo ambiental do uso de energias a partir de combustiveis fósseis) serão maiores que a ineficiência económica assim gerada.

Ora as centrais de biomassa foram sobretudo justificadas com o seu contributo para a defesa do território face aos incêndios.

Vejamos.

Há 10 centrais (acho eu) previstas. Cada uma delas no limite pode ir buscar matos num raio de 30 Km (a partir daí o transporte dos matos é completamente inviável e suponho que esteja a diminuir esta distância de viabilidade face ao aumento dos combustíveis clássicos). Ou seja as dez centrais actuariam sobre 2 900 000 ha. Sobram 6 000 000 do país, ou, para ser mais favorável, sobram 3 500 000 de matos e florestas sem centrais.

Mas dentro dos tais 2 900 000 ha que seriam geridos com o contributo das centrais, seria preciso perceber que capacidade de absorção as centrais têm da produtividade primária dos matos. O que implicaria saber quanto produzem anualmente as centrais, qual a percentagem de matos no mix de combustíveis, que produtividades primárias existem na zona e multiplicar por quatro, considerando que para ser efectivo o seu contributo para a redução de combustiveis os matos deveriam ser cortados de quatro em quatro anos. Então teríamos o número de ha com contributo efectivo de gestão por parte das centrais. No fim bastaria calcular a diferença de preço da tarifa em regime especial para a tarifa base e ver quanto nos custa a todos (mesmo que não custe ao Estado) esse contributo para a gestão de combustíveis.

Se alguém tem acesso fácil aos dados que permitem fazer estas contas seria bom que os disponibilizasse aqui.

Arrisco-me a apostar dobrado contra singelo em que o preço por ha de gestão de combustíveis por esta via é pelo menos o dobro do que seria se o mesmo efeito fosse obtido com rebanhos de cabras (com o fringe benefit de deixar no terreno grande parte da matéria orgânica contribuindo para o aumento do fundo de fertilidade do país).

O problema é que com as cabras a prestar este serviço tornava-se mais óbvio que todos nós temos de pagar essa gestão porque nos falta um sistema centralizado, quase monopolístico e opaco que nos permite misturar este custo no meio dos outros e passá-lo ao consumidor de electricidade sem que ele dê por isso e se questione muito.

Quando por estes dias nos questionamos por que razão Portugal tem um desempenho económico pior que muitos outros países (não se trata de questionar a degradação da situação económica que em grande parte decorre de factores externos, trata-se sim de questionar por que razão Portugal, com os mesmos factores externos que outros países, tem um desempenho económico relativo pior) talvez seja bom lembramo-nos de como fazemos estas contas em cima do joelho e de como isso torna mais fácil escamotear a racionalidade das decisões atrás de passes de mágica que transferem os custos para a economia e as pessoas só porque é mais fácil que tornar claras as políticas públicas que as suportam.

"...
De que nos vale esta pureza
Sem ler fica-se pederneira
Agita-se a solidão cá no fundo
Fica-se sentado à soleira
A ouvir os ruídos do mundo
E a entendê-los à nossa maneira
...
Que adianta saber as marés
Os frutos e as sementeiras
Tratar por tu os ofícios
Entender o suão e os animais
Falar o dialecto da terra
Conhecer-lhe o corpo pelos sinais
E do resto entender mal
Soletrar assinar em cruz
Não ver os vultos furtivos
Que nos tramam por trás da luz"

(carlos tê e rui veloso (alterada a ordem de algumas estrofes por mim) que aconselho na versão de Isabel Silvestre)

henrique pereira dos santos

7 comentários:

  1. Anónimo19/7/08

    HPS,
    De quantos W estamos a falar por central? Qual o valor do investimento? Qual o valor dos subsídios ao investimento? Qual o valor dos custos de exploração? Qual o valor dos subsídios ao custo de esploração?
    Qual o impacte do rebanho de cabras? Está garantido que não haverá uma tendência para a desertificação dos solos?
    Obrigado.

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  2. Planeta que chora
    Luiz Domingos de Luna
    Revista Aurora

    Reflito sobre a vida
    sobre o mundo rotativo
    do universo exuberante
    da beleza do ser pensante
    do mundo mágico criativo
    É o solo, é a existência roída
    de um planeta que chora, exaurido.
    De uma fumaça de gás cumprimido
    De um berço que faz sentido.
    De uma paisagem destruida
    que teimo em desfrutar
    a reta um ponto vai ficar
    o fim, o começo a externar
    O espaço a gritar
    O ambiente somente?
    A água ?
    A selva?
    O mar ?
    E nós humanos ?
    O planeta chora
    A inteligência ignora?
    Onde iremos morar?
    sem terra, sem piso, sem ar
    sem fogo, sem água, sem mar?
    por que a poluição ?
    o farelo da destruição
    O lixo cultural ?
    O rio é um esgoto
    O mar está morto
    O ar é aborto
    de quem quer abortar,
    assim, volto ao pó
    não tem reciclagem
    é uma viagem.
    mas viajo só?

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  3. Alma de Cupim

    Luiz Domingos de Luna
    http://www.revistaaurora.com.

    Adora a existência
    Contempla o natural
    O espaço sideral
    Inteligência da potência

    Muda a paisagem
    Destrói a natureza
    Maltrata a beleza
    Em qualquer passagem

    Dialética humana
    Constrói o artificial
    Dizima o natural
    Da fumaça que emana

    A construção de desertos
    Na alma impregnada
    Não pode sobrar nada
    Em campos abertos

    Qualquer jardim
    Deve ser venerado
    Aplaudido e aclamado
    Querendo o seu fim

    Luta demente
    Não tem beleza
    Não tem natureza
    Não tem jasmim

    Jardim da humanidade
    Todos têm direito
    Qual foi o defeito
    Todos defendiam
    Todos aplaudiam
    Não tem mais jardim
    Não tem mais culpado
    O tempo rolado
    Num mundo sem fim
    Corpo humano
    Alma de cupim.

    Meus trabalhos estão a disposição na web.
    Acesse-os:/ Luiz Domingos de Luna/. Todos por todos para o engrandecimento da epistemologia genética da humanidade.

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  4. Caro Henrique,

    Acompanho por inteiro as suas reservas sobre o recurso à biomassa. A tal ponto que arrisco mesmo afirmar que por detrás desse projectos só podem estar dois fenómenos: pura ingenuidade ou claro oportunismo dos proponentes .

    Onde não o acompanho é no recurso às cabras como alternativa, porque ele não faz sentido fora de um quadro geral de ocupação e uso do território cujos pressupostos se alteraram completamente.

    A meu ver, não se pode procurar viabilidade na lógica económica instalada para ( re )equilibrios de gestão do espaço que obedecem a lógicas de o "habitar" completamente distintas.

    Há cinquenta anos o uso da biomassa como combustivel ou como base de produção de fertilizante orgânico ( estrumes das camas de gados ) era uma consequência natural das soluções então em uso de ocupação do território. No limite as cabras não comem caruma, nem fetos, nem folhagem de sobreiro, e das silvas e estevas aproveitam a rebentagem tenra...o que quer dizer que sobra imenso para arder....

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  5. Sou um grande adepto das centrais de biomassa. A fiscalização será obviamente importante. Bem como direccionar para aqui os milhões que são gastos em Kamovs e companhia e que esses sim é dinheiro que se deita ao fogo...
    Ecotretas

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  6. Anónimo22/7/08

    com,1999:blog-7453210Tue, 22 Jul 2008 01:37:18 +0000ambiohttp://ambio

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  7. Caro Henrique,

    a esse numero não se esqueça da exportação da biomassa que é muito importante.

    Para mim o exagero poderá não ser o número de centrais, mas sim o numero de kw produzidos.

    Como trabalho um pouco com ela, posso afirmar que o custo produção da biomassa aérea é caro e só com distâncias curtas é que compensa, a não ser que o custo KWh mude.

    O meu receio é num futuro aumente os incêndios para termos mais biomassa...

    Cumprimentos,

    Paulo Maio

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