quarta-feira, julho 30, 2008

O regresso da terra

Publicado na revista mais ambiente e as minhas desculpas pela extensão do texto:
Seria ridículo pensar que o mundo mudou apenas porque há uma perturbação num mercado, mesmo que seja o mercado da alimentação.
O mercado da energia, tão estratégico como o da alimentação, vive em permanente perturbação e nem por isso o mundo muda todas as semanas.
Mas seria também pouco razoável não olhar para essa perturbação de mercado e desistir de procurar aprender alguma coisa que nos evite males maiores.
Com os preços da alimentação a subirem, quer por razões conjunturais, quer por razões estruturais e com os preços da energia também altos provavelmente todos nós seremos menos ricos amanhã.
Mas mais que essa previsão, que o tempo se encarregará ou não de confirmar, interessa-me olhar para um outro aspecto: nem todos ganhamos ou perdemos da mesma maneira.
Os primeiros perdedores imediatos deste aumento do preço dos alimentos parecem os mais pobres dos pobres, os que dependem da ajuda alimentar de países terceiros e os que dependem dos preços subsidiados nos seus países de origem para poderem comer todos os dias. Aparentemente o aumento dos preços dos cereais reduz significativamente a capacidade das instituições prestarem ajuda a estas pessoas.
Em Portugal o primeiro ganhador imediato parece ser o mundo rural: a discussão sobre a produção agrícola de alimentos deixou de ser considerada um sintoma de atraso e passou a integrar a agenda política (embora ainda de forma suave).
Infelizmente voltou de novo o discurso do Alentejo como celeiro do país e o incentivo ao cultivo de cereais indiscriminadamente, como se toda a discussão sobre a produção de alimentos passasse apenas por garantir o consumo de cereais.
Não vale a pena prendermo-nos com o putativo regresso a um mundo rural pré-globalização. Isso não vai acontecer.
Mas também não vale a pena prendermo-nos à ideia de que tudo se manterá como até aqui. Aparentemente também não vai acontecer.
A difícil arte da previsão
Prever o sentido das mudanças e o que será o mundo de amanhã é uma tentação velha como o mundo. Nem o facto de quase nunca o mundo ser o que previmos nos tira da ideia que podemos antecipar o futuro.
Há um livro, chamado “o futuro dos nossos avós”, se não me engano, que explora esta tendência reproduzindo previsões do tempo dos nossos avós que descrevem o que seria o mundo hoje. É um contributo para que olhemos para as previsões com um saudável cepticismo.
E é com esse saudável ceptismo sobre as minhas previsões que desenho cenários sobre o futuro.
Se, como geralmente se admite, a energia continuar com preços altos muitos dos modelos de produção que conhecemos tenderão a ter mais dificuldades e outros maior competitividade. Se este pressuposto se verificar é lógico pensar que os sistemas com menor incorporação de energia fóssil tenham uma nova oportunidade e os de maior incorporação de energia “externa” ao sistema, portanto paga a preços de mercado, tenham maiores dificuldades.
Mas se os preços dos alimentos sobem, sobe a remuneração dos produtores, ou seja, há uma transferência dos rendimentos disponíveis dos consumidores para os agricultores.
Lembro-me de uma reunião com uma empresa de lacticínios há meses, antes de se falar tanto neste aumento do preço dos alimentos. Nessa reunião algumas coisas ficaram claras para mim. O poder de negociação das partes (a indústria e o produtor de leite, se quisermos, simbolicamente o mundo urbano e o mundo rural) tinha-se alterado substancialmente: um ano antes o produtor tinha de garantir o escoamento do produto e esforçava-se por não perder o comprador mas com as alterações de mercado o produtor tinha alternativas e a indústria começava a ter dificuldades de alternativa de abastecimento. A empresa, uma multinacional, teria fechado já algumas fábricas em zonas do terceiro mundo porque os consumidores já não tinham capacidade de comprar produtos de maior valor acrescentado, pelo que compravam leite em vez de iogurtes. E mesmo nos mercados mais ricos reduziam-se as linhas de produção de produtos de topo de gama e com maior valor acrescentado.
Se assim for assistiremos à concretização (pelo menos parcial) da famosa miragem do renascimento rural. Mas um renascimento rural que provavelmente não regressa à agricultura de subsistência mas se mantém numa agricultura de mercado.
Estaremos perante uma agricultura que produzirá para um mercado crescentemente depauperado, portanto disponível para comprar produtos hoje desvalorizados.
Para um mercado que tenderá a reduzir o consumo de produtos mais sofisticados, isto é, carne e produtos de maior incorporação industrial. E todos os que se diferenciam pela qualidade, como os produtos biológicos. Ou todos os que têm forte incorporação energética, como as frutas e legumes produzidos no outro lado do mundo e fora da época.
Produzir para mercados novos
Sendo certo que o futuro que hoje vemos não será com certeza o futuro que teremos amanhã não é inútil avaliar como se comportaria o mundo rural face a um mercado com estas características.
Os produtos que hoje se procuram impôr pela diferenciação e não pelo preço podem ser divididos em dois grandes grupos: os que tiram partido de uma energia barata para serem vendidos fora de época, em mercados longíquos onde são mais ou menos raros ou com características de dimensão e aspecto trabalhadas à custa de fertilizantes, água, selecção com elevadas taxas de rejeição ou outro tipo de maneio; os que são produzidos com menores produtividades e mais lentamente exactamente por não forçarem elevadas produtividades através da incorporação de energia.
Para o primeiro grupo estes novos mercados estão mais fechados por haver menos rendimento disponível para a alimentação mais diferenciada. Haverá sempre mercados de nicho, claro, que pagarão a subida dos custos de produção e transporte mas a dimensão destes mercados tenderá a diminuir.
Para o segundo grupo embora os mercados disponíveis para pagar a diferenciação pareçam estar em retracção o facto é que, comparativamente, são menos afectados pela subida dos factores de produção, sobretudo de energia por serem menos dependentes da sua incorporação no seu processo produtivo.
Para os produtos que hoje estão no mercado procurando impor-se pelo preço a distinção é semelhante: os que devem os seus baixos preços a elevadas produtividades conseguidas com elevada incorporação energética, quer na mecanização, quer na adubação, quer ainda na adução de água com gastos de energia substancial na sua elevação, a repercussão da subida dos factores de produção será imediata nos preços finais.
Os que devem os seus preços baixos a elevadas produtividades que decorrem de factores naturais, mantendo-as mesmo sem grande incorporação energética, os preços tenderão a subir menos que os dos concorrentes.
Ou seja, quer nos produtos diferenciados ou nos produtos que competem pelo preço parece que estamos a caminho de um mundo mais pobre mas aparentemente mais sustentável, desde que a subida dos preços da alimentação não seja de tal modo elevada que novas campanhas de super-produção acabem no desastre da perda de solo fértil e perda de capacidade de produção futura.
Não se trata de saber se é melhor um mundo assim ou assado mas sim de saber se as alterações que parecem estar a caminho nos empurram no sentido da sustentabilidade ou a inversa e o que podemos fazer para gerir quer a pressão para produzir quer a necessidade de garantir o respeito pelo fundo de fertilidade que nos garanta produção a prazo.
Talvez Reserva Agrícola?
Nas nossas condições os principais factores naturais directamente relacionados com a produtividade agrícola são o clima, o solo e a disponibilidade de água.
O clima não podemos gerir, o máximo que conseguimos é gerir produções tendo em atenção o clima que existe. No essencial há séculos que procuramos fintar a principal limitação climática recorrendo ao regadio. A grande alteração que hoje existe é o facto de estarmos a trocar os sistemas tradicionais de condução gravítica da água por sistemas que exigem elevação da água com enormes custos energéticos. No contexto de aumento dos preços da energia é duvidoso que esta seja uma opção de futuro. A boa notícia é o investimento que tem vindo a ser feito e que com certeza o aumento dos preços reforçará, na eficiência no uso da água.
Mas em Portugal a grande limitação para elevadas produtividades é a existência de solos agrícolas de boa qualidade.
Se o cenário traçado tiver alguma coisa a ver com o futuro deveríamos estar a investir na criação de condições para elevar produtividades com a menor incorporação de energia fóssil possível.
Esta sempre foi a matriz da nossa produção agrícola até há pouco tempo. E se é verdade que dificilmente voltaremos ao que já fomos (felizmente, direi eu, lembrado das elevadas taxas de mortalidade infantil ou da fome que milhares de pessoas passaram ou do trabalho de sol a sol sem qualidade de vida) nada parece autorizar que pensemos que não podemos aprender com a história, essa mestra do futuro.
E ao olhar para as soluções que foram sendo encontradas lá vemos a condução gravítica da água, a estruturação do território a partir da integração total entre produção animal e produção agrícola e, acima de tudo, um respeito quase sagrado pelos melhores solos agrícolas de elevada produtividade.
Há anos que é conhecida a piada sobre os solos agrícolas à volta de Lisboa, por exemplo toda a área cerealífera que existia em Oeiras, como solos tão bons onde até o betão cresce.
No contexto actual estaria mais descansado se em vez de ouvir o Sr. Ministro da Agricultura dizer que com as actuais condições do mercado alimentar o Alentejo tem de voltar a ser o celeiro de Portugal que já foi, um erro histórico hoje perfeitamente identificado que para mim é incompreensível que volte a ser cometido, e o visse dizer que finalmente tinha percebido que a Reserva Agrícola Nacional não deve ser gerida em função da conjuntura da produção agrícola mas sim como uma verdadeira reserva de um dos mais raros valores naturais de Portugal: o solo agrícola de elevada produtividade.
henrique pereira dos santos

1 comentário:

  1. Anónimo31/7/08

    Caro Henrique,

    concordo plenamente com o seu post. De facto o papel da RAN (e já agora, da REN)é altamente incompreendido pelos decisores políticos e pelos agentes do desenvolvimento económico do país (leia-se lóbi do betão). A RAN é apenas encarada como um entrave à construção, que pode ser ou não removido caso existam favores ou dinheiro envolvidos.
    A protecção dos solos nem sequer entra na equação, porque ninguém produz, pensa em produzir ou sequer pensa que no futuro possam vir querer a produzir. Infelizmente a ideia de protecção dos melhores solos é apenas um sonho de mais alguns "ambientalistas".. às vezes pergunto-me como se conseguiram aprovar estas leis??

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