sábado, julho 26, 2008

A porta aberta

Declaração de interesses: estive desde o primeiro momento envolvido na preparação do novo regime jurídico da conservação da natureza. Penso, embora não tenha a certeza, que terei mesmo redigido os primeiros esboços técnicos que procuravam sintetisar os objectivos que se pretendiam atingir, com certeza com base em discussões prévias envolvendo bastante mais gente.
Na medida que as propostas se iam densificando juridicamente e que a discussão se ia concentrando sobre opções políticas fui ficando cada vez mais distante da redacção concreta do diploma.
O resultado final, publicado há dois dias, é para mim muito próximo pelo meu profundo envolvimento inicial mas é para mim muito distante face às alterações que o desviaram, e muito, de algumas questões que me pareciam fundamentais.
Não quero com isto dizer que o diploma foi ficando pior, quero apenas dizer que, legitimamente, quem tinha de fazer opções as foi fazendo e essa é a natureza do processo.
Não tenciono pois falar muito de opções que me eram "queridas" e que não vejo consagradas nem das opções das quais discordo, e que vejo consagradas.
Do processo, como é frequente no processo legislativo em Portugal, retenho a sua pouca abertura e transparência cujas vantagens não percebo.
Estarei claramente ao lado do partido que pretender aprovar uma lei que aplique como regra a todos os diplomas legais os princípios de participação obrigatória que vigoram para os instrumentos de ordenamento do território, obrigando a publicitar o início do processo legislativo e conferindo aos cidadãos e suas organizações o direito de informação e acompanhamento desse processo através da publicitação obrigatória das suas fases intermédias e a publicitação dos diplomas por quinze dias antes de poderem ser agendadas para decisão.
Admito a discussão de todas as excepções que se entenderem mas o princípio deveria ser esse.
Tudo o que disse até agora não me faria fazer um post sobre o assunto, aproveitei apenas a oportunidade para dizer o que penso.
O que me aqui traz é esta norma do diploma:
"Artigo 36.º
Instrumentos de compensação ambiental
...
3 — Mediante iniciativa e financiamento pelo interessado, dependente de acordo com a autoridade nacional, a compensação ambiental pode também ser concretizada através da realização de projectos ou acções pela autoridade nacional.
4 — Sempre que nos termos do número anterior haja lugar a financiamento pelo interessado de projectos ou acções a realizar pela autoridade nacional, os pagamentos em causa ficam obrigatoriamente adstritos às finalidades de compensação ambiental que lhes subjazem."

Repare-se que a norma está no capítulo do regime financeiro da conservação da natureza.
No essencial o que esta norma quer dizer é que a responsabilidade pela execução das medidas de compensação ambiental decorrentes dos processos de AIA (isto é, decorrentes dos impactos negativos de projectos concretos) ou da legislação da rede natura pode ser transferida para o Estado mediante pagamento.
Acaba aqui o princípio da responsabilização integral dos promotores pela execução das medidas compensatórias, separando as funções de execução (integralmente da responsabilidade do promotor) das funções de fiscalização (inerentemente do Estado através da autoridade nacional de conservação).
Amanhã (como já aconteceu no passado, aliás, com péssimos resultados) qualquer promotor pode, a troco de um cheque, passar para a autoridade nacional de conservação a responsabilidade de execução das medidas compensatórias.
Se elas depois não forem executadas, ou o forem deficientemente ou parcialmente, não estou a ver como a autoridade nacional se vai fiscalizar a si própria, impondo a si própria sanções para que efectivamente sejam executadas.
Dir-se-á que isto só acontece se a autoridade nacional aceitar.
Claro, mas estando esta norma no capítulo do regime jurídico da conservação e estando a autoridade nacional pressionada para ter receitas próprias o que não será difícil será convencê-la, mesmo a troco de 10 ou 20% mais do custo das medidas compensatórias que essa diferença vale bem a tranquilidade que daqui advém para o promotor.
Esta norma, se bem a entendi e não duvidando nem um bocadinho de que não seja essa a intenção de quem a terá escrito, é a consagração da corrupção institucional em matéria de medidas compensatórias para a conservação da natureza.
henrique pereira dos santos

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