domingo, agosto 24, 2008

Os fogos e a erosão

Com muita frequência tenho contestado a ideia de que o regime de fogos que actualmente temos é responsável por um problema grave de erosão no país.
Penso que algumas das pessoas que não concordam comigo nem respondem por achar que a ligação entre grandes fogos e erosão uma evidência de tal modo grande que só um tontinho a contesta.
Tenho defendido que o actual regime de fogos é sobretudo o reflexo de mudanças estruturais de uso do solo que conduzem a uma muito maior cobertura do solo que a que existiria há mais de cinquenta anos e que, por isso e pela rapidez de recomposição do grau de cobertura do solo (que é diferente da rapidez da recomposição das formações vegetais pós fogo) estamos numa situação com poucos problemas com a erosão (podendo haver aqui e ali problemas locais pontuais).
Como a memória (e, vá lá, o estudo) nem sempre acompanham a veemência da argumentação que gira à volta da evolução da paisagem resolvi trazer aqui uma citação um pouco longa mas que me parece útil:
""...Corria o Tejo vizinho à praia esquerda da banda do Alentejo; formou-se no meio o mouchão; houve depois pessoa, a qual innocentemente, sem pretender o mal de outrem, no dito mouchão (como a mesma pessoa ingenuamente me confessou) plantou arvores, e fez outras obras: sem mais demora, o Tejo deixando à esquerda o velho leito, e convertido este em inútil areial, se lançou sobre a direita com incrivell ruina dos adjacentes, que choram perdidos os seus ferteis campos até ao sitio chamado Barrocas-da-Redinha".
"Segundo exemplo: formou-se vizinho a Salvaterra o mouchão do Garrafão, que pareceu no principio pouco mal: entre tanto crescidas no dito mouchão altas arvores, se fez às cheias tão forte oposição, que o Tejo impedido à esquerda voltou para a direita; fez goiva nas terras chamadas Lizirão... e já ouço que delas faltam mais de trinta moios, que a agua comeu."
Depois de apresentar mais alguns exemplos comprovativos da sua proposição, continua o illustrado académico:
"... Das Praias-do-Infantado até Santarém está o Tejo em tal desordem, que nem se percebe qual seja o verdadeiro alveo do rio. Se o Mouchão dos Coelhos tem obrigado o rio à mudança inteira do alveo, outro tanto tem feito mais abaixo do mouchão da casa de Niza. Por causa do primeiro, e seu annexos tem o rio executado o ultimo exterminio no sitio Barrocas-da-Redinha, e nas suas vizinhanças. Por causa do segundo, está meio arruinado o campo de Alvisquer, e Santarém; e estaria todo inteiramente desfeito, se não constasse uma boa parte de vinhas... Póde dizer-se d'estas três légoas de rio, que são perpetua desordem e confusão. Está o Tejo misturado com os campos affogados dentro do Tejo, e entre tanto os mouchões, causa da ruina, florecem gloriosos, e triumphantes...""

Este texto é uma citação que Filipe Folque faz em 1868 (Relatório acerca da Arborização Geral doPaiz) de um texto de Estevão Cabral que é do fim do último quartel do século XVIII. Independentemente de intrepretações discutíveis, o que este texto descreve é a peocupação quer dos homens do século XVIII, quer dos do século XIX pelo enorme assoreamento dos rios. Escolhi esta citação mas poderia ter escolhido muitas outras de entre as 63 páginas que a edição original do relatório dedica aos "terrenos marginaes dos rios e ribeiras, e terrenos das encostas que requerem revestimento" de Norte a Sul do país e que é um dos cinco pontos que fundamentaram a necessidade de arborização geral do país (os outros quatro são as areias móveis do litoral, as cumeadas das montanhas, as bacias onde se formam as torrentes e os grandes tractos de charneca, áridos, incultos e despovoados).
Quer neste ponto, quer no ponto das areias móveis do litoral a preocupação dominante é o seu crescimento (ou seja, o assoreamento dos rios e a acreção de areias no litoral).
Quando actualmente proibimos a extracção das areias nos rios e litoral, quando os donos dos poucos mouchões agricultados que ainda existem no Tejo pedem apoio ao Estado para se defenderem da erosão e quando o que nos preocupa é a erosão da costa como querem que aceite sem mais que os fogos são responsáveis por graves problemas de erosão actualmente?
henrique pereira dos santos

3 comentários:

  1. Anónimo25/8/08

    Não percebo a questão na parte final?
    Mesmo não sendo um dos principais responsáveis, continuam fazendo parte do problema. Ver caso da Serra da Estrela

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  2. Mas em que se traduz o caso da serra da Estrela?
    Toda a vida houve erosão da Estrela, toda a vida houve relatos de deslizamentos, de assoreamento e etc..
    A minha questão é a seguinte: há hoje mais erosão na Estrela que nos anos precedentes a estes últimos fogos?
    A minha tese é a de que nem por isso.
    Poderá haver no primeiro ano depois do fogo um aumento de erosão que tem duas consequências: alguns problemas nalguns locais assoreados, algumas vantagens em alguns locais de acumulação de nutrientes.
    Há algum problema sério provocado pelo fogo em matéria de erosão descontando meia dúzia de situações pontuais?
    O fogo resulta da recuperação da vegetação que garante uma muito maior cobertura do solo.
    E é um erro confundir a cobertura do solo com florestação, há por aí muito prado que garante coberturas de solo muito mais eficientes que povoamentos maduros de resinosas, por exemplo.
    Assim sendo a minha questão não é a de saber se o fogo é neutro em relação à erosão (que evidentemente não é) mas se causa um problema que precise de uma afectação de recursos como a que fazemos.
    A minha convicção, estritamente pelo lado da erosão, é a de que os problemas a resolver não justificam o que gastamos com eles.
    henrique pereira dos santos

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  3. Anónimo26/8/08

    Também eu conheço algumas áreas na serra da Estrela que, por casa dos incêndios, têm sido sujeitas a uma intensa erosão e o resultado é uma forte redução do coberto vegetal. Áreas de declive acentuado que apresentavam uma densa cobertura arbustiva exibem agora o substrato rochoso e pouco mais. Chega a ser estranho ver paisagens que mais parecem típicas das regiões semi-aridas em locais com uma precipitação anual próxima dos 2000mm. Eventualmente essas áreas poderão acabar por recuperar, mas vai demorar bastante tempo.

    Refere que não lhe parece que haja agora mais erosão na serra da Estrela que no passado, mas se a área ardida foi maior nestes últimos anos não lhe parece que dai tenha resultado um aumento da erosão?

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