segunda-feira, maio 19, 2003

Deverão os animais ser objecto de direito?

1 – Sobre os direitos
Creio que os animais não devem ser objecto de “direito”. Esta é, para mim, uma questão formal. O “DIREITO” é um conceito inventado por humanos para regular a sociedade. Sem a invenção das normas de convivência em sociedade, posteriormente formalizadas em quadros legais e antes disso em normas de moral religiosa, viveríamos hoje em estado semi-selvagem. Matando-nos e comendo-nos uns aos outros como se ainda observa em alguns recondidos lugares do planeta. Os direitos são uma invenção humana para condicionar os seus instintos mais básicos e assegurar o progresso social. Ou seja, são normas internas à sociedade. Fora dela, vigoram outras leis. Leis, mal ou bem, aproximadas pelo pai da Biologia moderna, Charles Darwin. Leis que, para nós humanos, são consideradas de desumanas. O principio da extensão de direitos sociais humanos a outros conjuntos de seres vivos representa, quanto a mim, o passo supremo de antropocentrismo. O passo que consagra um olhar sobre o mundo animal fora do quadro das regras e princípios que caracterizaram a sua evolução natural.

Dito isto, convém referir que não defendo a aceitação da prática de actos de barbárie sobre animais. Assim como julgo termos uma responsabilidade moral de legar aos nossos filhos um ambiente em condições (incluindo um potencial evolutivo o mais próximo do que seria se não fosse afectado por nós) também julgo termos uma responsabilidade de tratar os animais (especialmente os animais por nós criados e multiplicados) com normas básicas de decência. Como dizia o José Carlos Marques, há uns anos, temos o dever de tratar os animais com humanidade. Assim, substituindo a frase “direitos dos animais” (que me parece incorrecta) por “deveres para com os animais” (reflecte exactamente o que estamos a falar) eu concordaria com uma grande maioria (mas não todas) das medidas preconizadas por alguns alegados defensores dos animais.

2 – Sobre símios
Não há regra sem excepção. O caso dos símios é um dos que faz abalar as minhas convicções mais profundas. Não tanto pelos argumentos aventados, ou seja, o das capacidades cognitivas, mas sobretudo por representarem o último reduto de humanidade (no sentido prosaico do termo) fora da espécie humana. Sejamos claro: - Se hoje não existem mais espécies de hominídios, além do Homo sapiens, foi porque os nossos antepassados os exterminaram. O nepotismo, o bairrismo, o nacionalismo, o racismo e outros “ismos, são variantes do mesmo comportamento de “clã” que caracteriza a nossa espécie e cujo expoente máximo é o “especismo”, ou seja, a tendência para marginalizar outras espécies. Esta tendência é tanto maior quanto maior for o conflito de interesses entre a nossa e outras espécies. Foi esta característica marcada que fez com que os Ibéricos exterminassem os últimos homens e mulheres de Neendertal e que outros tivessem extinguido as dezenas de espécies de hominídios coincidentes, no tempo, com o Homo sapiens. Imaginem, por um momento, que não tínhamos exterminado outras espécies de hominídios? Teriam eles direitos? Para mim é óbvio que sim e é nesse quadro que considero os símios. Os símios não são hominídios mas são o mais próximo que nos resta deles. Mais! Se não adoptarmos medidas drásticas para a sua conservação correm o risco de ser extintos em pouco mais de uma década. Ainda que o direito não tenha sido inventado para eles e – rigorosamente – não lhes seja aplicado, não me chocaria criar um caso de excepção para este grupo de organismos. Se é verdade que não existem direitos sem deveres, também é verdade que já aceitamos a excepção dos deficientes mentais. Porque não alargar a extensão a animais que, em certos casos, até são mais próximos dos humanos que alguns deficientes mentais da nossa espécie? Pela minha parte não me importaria de pagar o arranjo da perna de um chimpanzé que caiu da bicicleta mais do que me importa pagar outras tantas despesas públicas que se vêem por aí. Provavelmente se me desse a escolher até canalizaria toda a minha contribuição, para a segurança social, para a segurança dos gorilas, chimpanzés e bonobos.

3 – Vegans
Não percebi muito bem qual a origem da discussão e o porquê da animosidade. Vegans são os que preferem não comer ou vestir nada que seja de origem animal. Os vegans que conheço são os primeiros a reconhecer que este não é um comportamento natural. Mas estão conscientes que se sentem melhor com esta escolha? E daí? Pessoalmente já me desagradaria se os vegans se sentissem moralmente superiores e procurem fazer alarde desse sentimento de forma menos respeitosa. Mas na realidade sentir-me-ia igual desagradado se esse comportamento viesse de comedores de carne fanáticos. Quanto à questão do impacte ambiental dos vegans a minha posição é simultaneamente coincidente com a da Estrela e do Carlos Aguiar. Numa sociedade fortemente orientada para o consumo de produtos animais não há mal nenhum no desenvolvimento de correntes de tendência oposta já que o balanço é, necessariamente um consumo global mais equilibrado e uma pressão menor sobre a produção industrial de produtos animais. Por outro lado se atingíssemos um cenário oposto, de prevalência de vegans, os carnívoros teriam um papel fundamental para justificar a manutenção de sistemas tradicionais de pastorícia em conflito com novas monoculturas da soja e afins. Em todo o caso tenho algumas dúvidas que esse seja um cenário realista nas próximas gerações.


Sobre Peter Singer e a sua filosofia

(...)
Para Peter Singer a fronteira moral para atribuição de direitos a um ser vivo está na sua “personhood”, a que o autor associa à capacidade, ou não, que um ser tem de sofrer. I.e. todo a “pessoa” que tenha capacidade de sofrer deve ter o direito a não sofrer, independentemente da sua religião, sexo, cor, ou espécie. O direito que os individuos de uma espécie têm de ter prazer, termina com o direito de individuos de outra espécie a não sofrer. Esta seria a base moral para acabar com as touradas, zoos e toda a manipulação animal que lhes cause sofrimento.

Na sequência deste raciocinio Peter Singer avança que nem todas as “pessoas” são humanas e que alguns humanos não são “pessoas”. Decorre que os humanos que não tenham as capacidade para sofrer, de acordo com os parametros definidos, não têm direitos humanos. A teoria de Peter Singer leva-o, por exemplo, a afirmar que matar uma criança ou um deficiente mental - p.e. com sindroma de Down - é menos crime que matar um chipanze adulto que, como é sabido, tem mais capacidades cognitivas que uma criança com menos de 3 anos de idade. Este autor vai mais longe afirmando que uma criança recém nascida (a fronteira são os 28 dias após o nascimento), por não ser uma pessoa de acordo com a definição, tem menos direito à vida que outros individuos e seres mais evoluidos. O direito à vida ou morte de uma criança recém nascida é, assim, dominio exclusivo dos pais. Para o autor, será preferivel matar uma criança do que deixá-la viver se a sua vida afectar a felicidade/dor de individuos ou seres com maior capacidade cognitiva. O mesmo autor defende que é criminoso gastar-se dinheiro com velhos doentes, p.e. com alzeimer, quando esse dinheiro poderia ser utilizado para aliviar o sofrimento de “pessoas”, humanas ou não. Neste casos o autor defende que o mais adequado é exterminar estes seres (inferiores) a bem da felicidade de outros seres (superiores). A carácter de preferência que a nossa espécie dá a si própria em detrimimento de outras espécies -especismo- é, para Peter Singer, tão depresível como outras formas de descriminação (p.e. racismo, chauvinismo, machismo, etc).

Esta teoria é a consequência lógica da racionalização do que, para muitos, é apenas uma reacção emotiva a ver “os bichos sofrer”. Obviamente que poderão haver várias nuances às ideas de Peter Singer. A sua teoria decorre da racionalização dos direitos dos animais sem condicionantes morais, judaico-cristãos, associados. Se não abdicarmos explicitamente da sacralização da vida humana e colocarmos os seres humanos num patamar distinto das restantes “pessoas” não humanas as ideias de Peter Singer não chocarão tanto. O problema, porém, é que no dia em que dermos direitos humanos a não humanos teremos aberto o precedente para uma revolução moral (e legal) bem mais profunda do que se poderá fazer crer à partida. Inevitavelmente a lista de candidatos a protecção legal aumentará e inevitavelmente os seus direitos começarão a chocar com os direitos dos humanos. (...)