quinta-feira, maio 04, 2006

Nuclear e a percepção do risco

Existe um argumento pró-nuclear, muito utilizado recentemente, e que parece à primeira vista, um argumento absolutamente racional: o facto de, até ao momento, não existirem vítimas mortais de acidentes nucleares ou de exposição a produtos radioactivos decorrentes da exploração de centrais nucleares, e o contraste com um conjunto de situações quotidianas que provocam muito mais vítimas do que o nuclear terá alguma vez produzido. Alguns exemplos:

* problemas respiratórios causados pela exploração dos combustíveis fósseis. Basta pensar na “black lung disease” associada à mineração do carvão, ou à mais alta incidência de cancros de pulmão associada à poluição atmosférica nas cidades;

* mortes provocadas por medicamentos mal testados ou insuficentemente testados, como foi o caso da Talidomida, nos anos 60;

* as mortes provocadas pelo tabaco.

É indiscutível que todos estas causas de morte são muito mais mortíferas do que a indústria nuclear civil, até ao momento. Então, porquê não aceitar o risco nuclear, se podemos viver bem com todos estes outros riscos

Seguindo um cálculo supostamente “objectivo”, baseado por exemplo na probabilidade estatística de casos mortais, é óbvio que a resposta só pode ser, em quase todos os casos, pró-nuclear. Basta pensar nas mortes causadas pelo cancro de pulmão na população de fumadores (activos e passivos) compará-la com Chernobyl, para termos um cálculo irrefutavelmente pró-nuclear.

A questão é outra, contudo, e não pode ser colocada em aritmética simples. Em primeiro lugar, as mortes são, na maior parte dos casos, referidas a situações com graus de certeza substancialmente maiores do que aqueles que dizem respeito à indústria nuclear. Mesmo as mortes por poluição atmosférica são, por assim dizer, mais "certas" do que as da indústria nuclear.

Em segundo lugar, na maior parte das situações, o indivíduo pode subtrair-se à causa da morte, apenas a grande custo pessoal. Por experiência própria, deixar de fumar não é fácil, e não "comer" com a poluição atmosférica implica, na maioria dos casos, mudar de cidade. No segundo caso, existem mesmo assim, estratégias de controlo do risco - não andar em ruas poluídas, usar os transportes públicos. Ambas as situações, apesar de tudo reflectem uma medida de controlo sobre o risco. No caso da indústria nuclear, a sensação de cada indivíduo é de que o risco, mesmo que seja mínimo, não é controlável. E para qualquer indivíduo, por irracional que pareça, um risco controlável é mais tolerável do que um risco, mesmo que com uma probabilidade baixa, incontrolável. Dezenas de estudos de psicologia social do risco indicam isso mesmo. Obviamente, muitos técnicos defendem que as decisões devem ser tomadas com base em medidas objectivas de risco, em vez das percepções de risco, ditas "subjectivas". Por isso vemos normalmente mais físicos nucleares a reclamarem contra o alarmismo social em volta do nuclear, para imediatamente a seguir alarmarem-se eles com um outro perigo social. Essa "dissonância cognitiva" está amplamente documentada (por exemplo, estudos mostram repetidamente que a obrigação de usar cinto de segurança nos automóveis alterou substancialmente a percepção de risco e modificou o comportamento dos automobilistas) No caso do nuclear, ela é, aliás, a razão pela qual a população junto de instalações nucleares muitas vezes defende a manutenção da instalação, ou mesmo a sua expansão – seria possivelmente doloroso admitir o risco. Simultaneamente, estudos de psicologia têm também revelado que a mesma dissonância cognitiva faz com que sistematicamente, os técnicos das indústrias com riscos ambientais subestimem esses mesmos riscos. Os riscos da indústria nuclear têm sido sistematicamente subavaliados (e os custos também).

Em terceiro lugar, o nuclear coloca questões de limite à nossa noção de responsabilidade colectiva. Obviamente existem muitas mortes derivadas da poluição automóvel, mas de alguma forma toleramos melhor essas mortes, porque sabemos:

* que há poucas alternativas ao transporte individual;

* que a nossa contribuição individual para o mal colectivo, de cada uma das milhentas decisões que tomamos, é razoavelmente insignificante.

Por contraste, apenas tomamos uma opção normalmente em relação à industria nuclear, mas essa decisão única acarreta consequências, potencialmente, ainda que insignificantemente em termos probabilísticos, catastróficas. E a maioria de nós, racionalmente, decide-se pelo não.

Acresce a isto tudo, um conjunto de razões mais "prosaicas" e "tecnocráticas" para não considerar o nuclear como uma opção no mix energético, e que já expus noutro lugar. A indústria nuclear é cara, é altamente subsidiada, é desnecessária para cumprir com o Protocolo de Quioto, emite dióxido de carbono, não reduz a dependência do petróleo, é uma tecnologia particularmente inadaptada ao mercado liberalizado

Apenas uma "working question": se os estados europeus se desvinculassem das Convenções que limitam a responsabilidade civil dos operadores nucleares, existiria alguém interessado em operar uma central, em condições puras de mercado? Conseguiria esse operador financiamento e seguro para um eventual acidente nuclear? Porque será que a indústria nuclear vive há 50 anos debaixo de uma limitação de responsabilidade civil dada às indústrias nascentes?

Todas estas razões "prosaicas", "tecnocratas" e "economicistas" já deveriam ser suficientes, sem entrarmos em exposições éticas e considerações sobre o risco nuclear.

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