Um dia destes alguém de um jornal ligou-me para me fazer perguntas sobre o processo Freeport.
Penso que terá desligado o telefone com alguma frustração porque realmente sei pouco que não esteja no processo administrativo de AIA em que participei (confesso que não me lembro se era um processo de AIA ou de incidências ambientais mas inclino-me para que tenha sido um processo de AIA).
Uma pergunta, que é feita com frequência, deu-me o mote para este post.
"Mas não houve pressões durante o processo?".
Eu sou pouco dado a ligar a interpretações da realidade com base em teorias da conspiração, grandes coisas escondidas, interesses obscuros e etc..
Pressões é uma expressão equívoca mas sim há pressões com frequência em processos decisórios da administração pública. E pressões vindas de muitos lados.
Lembro-me, por exemplo, de um consultor que tendo assinado um Estudo de Impacte Ambiental favorável a um projecto depois mandou um mail para alguém dentro do ICNB, que por lapso foi parar a várias pessoas entre elas eu, pedindo que o ICNB chumbasse o projecto.
Lembro-me do processo do Sabor em que há um despacho oficial do então Secretário de Estado da tutela que dava instruções para que todos os membros da comissão de avaliação fossem pelo menos directores de serviços. Já anteriormente numas auto-estradas havia umas comissões de avaliação que eram conhecidas como as comissões VIP porque os membros efectivos eram todos Directores Gerais ou sub Directores Gerais. Como é bom de ver o Directores Gerais tinham mais que fazer que estudar os processos em concreto (os trabalhadores trabalham os dirigentes dirigem), portanto eram outros que faziam esse trabalho mas o objectivo era claro: o governo tinha aprovado as scuts e era fundamental garantir decisões favoráveis para evitar alterações de traçado e as consequentes implicações financeiras nas recomendações (a táctica deu com os burrinhos na água porque dura lex, sed lex e em algumas, quase todas, houve mesmo alterações de traçado e de projecto). Lembro-me de processos em que vinham responsáveis de topo dos organismos que tutelavam a AIA dizer que era preciso isto ou aquilo porque o primeiro-ministro (não necessariamente o actual, qualquer um) tinha dito publicamente isto ou aquilo e era preciso que o processo não o desmentisse. Especificamente com o actual primeiro ministro é talvez emblemático o que se passou com a Pescanova em que foram dadas garantias formais pelo Sr. Primeiro Ministro antes do processo analisado. Felizmente neste caso o processo não tinha problemas legais e seguiu o seu curso normalmente, doutra forma lá haveria um problema sério para as pessoas que estivessem envolvidas no processo decisório, quer seguissem as orientações informais dadas em discursos públicos, não cumprindo a lei, quer cumprindo a lei e metendo o governo numa alhada, como aconteceu várias vezes (com vários governos de vários partidos).
Por mim sempre adoptei uma prática, que se me criou problemas imediatos em muitos processos e com muita gente, livrou-me até hoje de complicações maiores.
Ilustro com mais um exemplo de um processo em que participei:
O governo tinha interesse que um determinado projecto de infra-estruturas fosse aprovado o mais rapidamente possível (nota 1: em Portugal todos os governos que conheci acham a rapidez da decisão muito mais importante que a segurança jurídica e a correcção processual da decisão). Como sempre o processo de AIA era considerado um percalço e um obstáculo burocrático à legítima decisão dos representantes do povo que traduzia o interesse colectivo, sendo útil que tudo fosse feito para que a burocracia não atrasasse o desenvolvimento e o bem estar (nota 2: esta ideia é transversal a quase todas as tutelas políticas que conheci em Portugal). Acontece que o projecto se desenvolvia em rede natura e, mal ou bem, havia informação traduzida em pareceres concretos e formais que apontavam para os riscos ambientais (para o que me interessava, de conservação da biodiversidade) na execução do projecto. Reunião final da comissão de avaliação para a emissão do parecer e há alguém responsável pela gestão do processo de AIA que insiste em que o parecer do ICNB (naquele caso trazido e defendido por mim) não cumpria as orientações que o próprio Presidente do ICNB tinha transmitido numa reunião entre os dois directores gerais sobre o processo na semana anterior.
Este tipo de informalidade é muito, muito frequente na administração.
E em processos complexos é muito perigosa. Por isso adoptei a minha posição do costume: há acta da reunião? Há formalização em despacho ou noutra forma escrita da posição do Presidente do ICNB? A resposta foi a do costume: mas eu estive na reunião e ouvi. Pois, mas ou há formalização da decisão ou nada disso me interessa. A burocracia no seu esplendor.
Mas no esplendor que verdadeiramente interessa: o combate a uma informalidade que não deixa rasto nem permite a responsabilização.
As pressões são normais. O que é anormal em Portugal é forma acéfala como uma grande parte dos funcionários que estão envolvidos nos processos se deixam condicionar por conversas, discursos públicos, recados informais transmitidos pelos mais diferentes canais.
Essa anormalidade é em primeiro lugar uma responsabilidade de cada um dos envolvidos, mas é em segundo lugar um resultado da nossa propensão para desvalorizar a forma das decisões.
Nesse processo em concreto acabou por ser tomada uma decisão, pelo então Secretário de Estado (penso que do actual partido da oposição, não tenho a certeza e se refiro isto é para deixar bem claro que a minha preocupação não é com este ou com aquele mas com a forma corrente como se tomam as decisões públicas em Portugal) que a meu ver era uma decisão ilegal.
Um dia, conversando com um dirigente ambientalista que eu sabia que tinha acompanhado o processo, perguntei-lhe por que razão tendo sido emitido um parecer negativo ao projecto pela sua associação e parecendo-me fácil de demonstrar que o direito comunitário tinha sido violado, não tinha havido qualquer reacção da parte da sua organização, ao contrário do que acontecia em vários outros processos. A resposta demonstra bem que a questão não é do domínio dos interesses obscuros que manipulam as decisões pública mas sim do nosso ambiente social: o resultado da execução do projecto não era assim muito mau, portanto o facto da decisão ter sido tomada ilegalmente era pouco relevante.
Ou seja, o critério para avaliar as decisões é apenas o do seu resultado, nunca o dos meios usados.
Por isso Pedro Serra, na já longíqua campanha interna para eleição do Secretário Geral do PS em 2004, podia escrever um artigo de opinião no diário económico que era um panegírico de apoio a um dos candidatos, onde constava este parágrafo que no contexto do artigo não era uma crítica mas um fortíssimo elogio, sem que aparentemente alguém ficasse sobressaltado com o seu conteúdo:
«Os dois anos em que foi Ministro do Ambiente e em que teve na sua mão a distribuição dos fundos comunitários utilizou-os ele a tecer a trama de influências regionais e nacionais,partidárias e não só, que o fazem imbatível em qualquer contenda no seio do PS (...)»
henrique pereira dos santos
10 comentários:
Excelente texto, Henrique.
Apenas uma salvaguarda. Decisões formalmente exemplares podem ser desastrosas e decisões processualmente desastrosas, podem ser acertadas. Por isso tanto me atrai o sistema Britânico onde as normas são frequentemente fluídas e deixam um espaço de manobra amplo mas a moral é estricta possibilitando flexibilidade dentro do "so called common sense".
- Os ambientalistas de referência venderam a vergonha e governam-se como podem, tal como os nossos políticos. Entre estas duas espécies infestantes já nem sequer há destrinça (as excepções confirmam a regra).
- São milhentas as situações pantanosas por onde navega Portugal. Caso ao fumo do freeport corresponda fogo, não temo pelo Portugal democrático, desde há algum tempo, para mim, uma ingénua veleidade. Ditadura? porque não? ao menos a consciência não morde por se ter feito péssimas escolhas. E o pior: caso se tenha escolhido outros, saber-se que seria mais do mesmo.
Jaime
Miguel,
Teoricamente, concordo contigo.
Na prática, "normas frequentemente fluídas" que "deixam um espaço de manobra amplo", apenas funcionam em quando a "moral é estricta possibilitando flexibilidade dentro do "so called common sense". Latinos por natureza, parecemos preferir utilizar essa "janela" para outros voos...
Gonçalo Rosa
Isabel Pereira dos Santos, não tendo conseguido comentar o blog a partir do seu computador, pediu-me para fazer chegar este comentário:
Pedro Serra:
«Os dois anos em que foi Ministro do Ambiente e em que teve na sua mão a distribuição dos fundos comunitários utilizou-os ele a tecer a trama de influências regionais e nacionais,partidárias e não só, que o fazem imbatível em qualquer contenda no seio do PS (...)»
Marco António (Julius Caesar, Shakespeare):
"Friends, Romans, countrymen, lend me your ears;
I come to bury Caesar, not to praise him."
(Agradecimentos ao Dr. William Carter pela citação)
Miguel,
O problema em Portugal não está na rigidez das regras (não neste tema, pelo menos) mas sim na forma como socialmente encaramos as regras.
Para não sair do freeport há, como é bom de ver no público de ontem, um evidente encurtamente do prazo da última avaliação de impacte ambiental que, coincidência ou não, permite as decisões imediatamente antes da queda do governo de então.
Li ontem algures uma justificação razoável para este encurtamento do prazo: o processo já tinha sido apresentado duas vezes, era portanto bem conhecido e, consequentemente, poderia ser analisado em prazos menores. Claro que eu também acharia razoável se alguém tivesse defendido uma extensão dos prazos habituais dizendo que se o projecto tinha sido chumbado duas vezes é porque tinha especial complexidade e portanto deveria ser escrutinado de forma mais ponderada.
A minha questão não é a de saber qual destas duas justificações razoáveis se deveria adoptar mas a forma como na altura dos factos os prazos são efectivamente encurtados sem formalização clara e pública da decisão e dos seus fundamentos e sem que ninguém ache isso inaceitável durante estes anos todos.
As regras permitem mesmo que um projecto seja isentado de AIA.
Por exemplo, a autoestrada que vai de Viana a Arcos de Valdevez e Ponte da Barca foi dispensada de avaliação de impacte ambiental por despacho conjunto dos ministros da altura (Jorge Coelho e Sócrates). A estrada estava incluída no pacote do queijo limiano, o Estudo de Impacte Ambiental tinha sido considerado desconforme pela comissão de avaliação e, para evitar atrasos e cumprir o acordo de aprovação do OE, foi isentada de AIA. Para te dar uma ideia do controlo subsequente, a estrada atravessa um sítio da rede natura quando atravessa o rio Vez e as medidas de mitigação do despacho de isenção previam que o pilar do viaduto ficasse para lá da estrada Arcos/ Barca que ladeia o rio Vez, evitando afectá-lo mas o pilar foi contruído entre a estrada e o rio, entrando pelo seu leito.
Toda a gente em Portugal que se interessa minimamente por estas questões sabia que a autoestrada estava a ser construída sem AIA, que a fundamentação formal para a decisão não resisitia a uma análise mínima e que o controlo ambiental da sua execução era ao nível que descrevi.
Nem uma única pessoa (com excepção de alguns funcionários que fizeram umas informações sem seguimento posterior), nenhum jornalista, nenhuma ONG questionaram e mexeram uma palha perante o facto do processo decisório ter sido este, dentro da regra formal, mas fora do senso comum.
E esta é a questão que tenho vindo a discutir há anos, chamando a atenção para o facto de isto ser um problema cultural e social bem fundo, que nos diz respeito a todos, e não apenas o resultado de haver políticos e ambientalistas concretos que possam eventualmente ser uns malandros.
henrique pereira dos santos
Miguel,
Segunda questão do teu comentário:
decisões formalmente impecáveis podem ser um desastre e decisões atribiliárias podem ser perfeitas.
Não podia estar mais de acordo.
A inovação da Democracia sobre os outros regimes é exactamente deixar de avaliar a bondade das decisões pelos seus resultados e concentrar-se nos procedimentos que permitem às pessoas escolher o que querem.
Na Democracia é irrelevante se o governo escolhido é bom ou mau, o relevante é que seja o que corresponde ao que as pessoas querem.
Depois desta primeira regra base, a expriência vai ditando correcções aos processos para que a decisão das pessoas tenha menos possibilidade de ser um desastre.
A política é balisada pela lei. Algumas leis fundamentais exigem consensos mais alargados para serem alteradas. Há direitos que se consideram fundamentais não bastando haver maioria para os derrogar. A liberdade de imprensa e opinião não pode ser posta em causa, etc..
A regra e a correcção do procedimento é a pedra de toque.
A democracia não impede que George Bush decida invadir o Iraque, uma clara tragédia. Mas para o fazer exige regras que permitem aos cidadãos corrigir as suas escolhas mais tarde, não evitando a tragédia entretanto ocorrida mas evitando que se reproduza a si própria indefinidamente.
É possível que Augusto não fosse eleito imperador e ter-se-iam perdido décadas de bom governo do mundo. Mas basta olhar para os dez césares subsequentes pelos olhos de Suetónio (e alguns, poucos, foram bons governantes, incluindo Nero no início do seu consulado) para se perceber bem como a ausência de procedimentos que impeçam a arbitrariedade dos governantes é muito mais perigosa que o risco do desastre de uma decisão formalmente impecável.
henrique pereira dos santos
Então no freeport a questão PRINCIPAL não é o DINHEIRO que serviu (eventualmente...) para pagar corruptos? E neste caso concreto não estão o nosso 1º e familiares na equipa dos suspeitos? Os procedimentos da aprovação, se foram legais ou ilegais, pouco importa, quando as eventualidades, a comprovarem-se, põem em risco a (pouca) credibilidade do nosso Estado democrático. Note-se que se não fosse a polícia inglesa o freeport estava morto e enterrado. Ele foi desenterrado, não pelos procedimentos esquisitos, mas por se andar a investigar onde foram parar libras desaparecidas. Compreendia os comentários enviados se o post do HPS fossem PINs, algumas auto-estradas e derivados, onde não se vislumbra o móbil das alterações, pressas e aprovações estranhas. Está-se a passar ao lado do cerne da questão. Haverá por aqui medo de pegar o boi pelos cornos?
Quanto às Ongas, reafirmo o que por aqui tenho dito. Os seus inexplicáveis silêncios derivam do DINHEIRO a rodos que para lá tem sido enviado.
Jaime
Caro Jaime,
O que creio que aqui se aborda é, de facto, a questão dos procedimentos, dos tais fins que justificam os meios, em que o caso Freeport serve de exemplo.
A questão de um eventual "pagamento de luvas" é caso de polícia que, na minha opinião, deve ser investigado até ao fim, doa a quem doer, mas com a necessária rapidez, dado ser a imagem do Primeiro-ministro (e do país) que está em questão.
São questões completamente distintas e parece-me bem que nem sequer sejam enfiadas no mesmo saco.
Quando afirma que "Os procedimentos da aprovação, se foram legais ou ilegais, pouco importa, quando as eventualidades, a comprovarem-se, põem em risco a (pouca) credibilidade do nosso Estado democrático", permita-me discordar. São, como já disse, questões distintas e o que diz demonstra bem como tanta gente relativiza tanto os procedimentos.
Se é certo que a "corrupção" mina um estado democrático, estas práticas, de que "os fins justificam os meios", também.
Gonçalo Rosa
Caro Gonçalo Rosa:
Claro que a transparência dos procedimentos administrativos é essencial em democracia. E porquê? porque o contrário pode dar origem a oportunismos, "cunhas" e...corrupção.
"Corrupção? que disparate! o que se pretende é mais postos de trabalho e crescimento do PIB o mais rápido possível!" Argumentam assim os arautos dos PINs, autorizações à pressa e companhia.
Neste caso, no freeport, o eventual móbil (CORRUPÇÃO!) da pressa nos procedimentos está em cima da mesa. Não são os procedimentos em si que trouxeram novamente o assunto à baila. Guarde-se a causa da transparência, sem dúvida assunto importantíssimo, para outras situações. Insistir-se nisso é como discutir o sexo dos anjos em vésperas de se entrar em guerra.
Também já ouvi um dirigente duma ONGA, sobre o freeport, dizer: "nem quero entrar por aí..."
Acredito que, a muitos, a coisa passa ao lado, seja porque motivos forem. Mas haverá outros que calam o que lhes vai na alma por interesse próprio ou cobardia (consta que o Diabo prospera com o negócio das almas a preço de saldo, não devido à época mas aos tempos).
Mas talvez me tenha enganado no blog para estar com estas coisas.
Jaime
Caro Jaime,
Se há ou não corrupção é matéria que espero que a polícia investigue e resolva.
Eu não tenho informação para fazer comentários sobre isso.
Os meus posts são apenas para realçar que Portugal tem excelentes condições para o desenvolvimento da corrupção porque relativizamos demais os procedimentos, como aliás fez o Jaime nos seus comentários.
henrique pereira dos santos
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