domingo, maio 29, 2005

O caso “Vargem Fresca”: mais um exemplo de apropriação de mais-valias urbanísticas

Por Pedro Bingre

O caso “Vargem Fresca” exemplifica algo mais do que um crime ecológico, perpetrado contra o valor ambiental que são os montados de sobreiro. Exemplifica sobretudo um crime económico (a apropriação de mais-valias urbanísticas), actividade que embora seja legal no nosso país, constitui um gravíssimo crime de colarinho branco na generalidade dos países desenvolvidos ocidentais. Penso que discutirmos a “utilidade pública” do projecto “Vargem Fresca” equivale a discutirmos um mero sintoma e não a determinarmos a causa da patologia; melhor será discutir a apropriação das mais-valias urbanísticas milionárias daquela Herdade, que se processou de forma quase idêntica à que se processa no resto do país. A Vargem Fresca é um episódio conjuntural; a apropriação de mais-valias urbanísticas é um fenómeno estrutural e verdadeiro móbil da expansão urbana especulativa.

Todos sabemos, por meio dos meios de comunicação social, que os solos rústicos que o Grupo Espírito Santo (GES) adquiriu à Companhia das Lezírias lhe custaram 78$ o metro quadrado, na “moeda antiga”. Todos sabemos também que poucos anos mais tarde cada metro quadrado passou a valer cerca de 16 000$ o metro quadrado graças à reclassificação como “solo urbanizável”, e que para receber tal reclassificação foi necessário contornar o Decreto-Lei n.º 169/2001 (regime de protecção do sobreiro e da azinheira). Isto trouxe uma valorização de 20 000% daquele património imobiliário do GES, sem que este rendimento súbito tenha resultado do mérito e do esforço produtivo desse grupo económico, mas tão-somente de diligências politico-administrativas. Imaginem os leitores destas linhas se um despacho ministerial multiplicasse por 200 o valor do vosso património imobiliário. É importante prestar atenção aos montantes em causa: o GES adquiriu cada hectare não urbanizável a 780 contos, passando cada um destes a valer 160 MIL contos a partir do momento em que ganharam alvará de loteamento ou licença de construção. Isto é mais-ou-menos o mesmo que um despacho ministerial alterar o valor de um apartamento (ou uma qualquer courela) de 30 mil contos para 6 milhões de contos, sem que o proprietário tenha exercido qualquer actividade produtiva proporcional a esse rendimento.

A esta valorização do solo rústico em 20 000 % por via de um alvará de loteamento dá-se o nome de “mais-valia urbanística”. (Se o terreno em causa fosse mais próximo do centro urbano ou possuísse maior valor cénico, as mais-valias poderiam ser de magnitude bastante superior à que vimos). As doutrinas económicas, jurídicas e urbanísticas de todo o mundo desenvolvido concordam que semelhante valorização não resulta do mérito empreendedorístico do proprietário, mas sim do esforço do colectivo em desenvolver o território; daí que toda a legislação moderna procure ou conceder ao Estado o exclusivo direito de lotear (e portando apenas o Estado factura e controla as mais-valias urbanísticas), ou impor ao proprietário do terreno loteado medidas de recaptura pública das mais-valias urbanísticas, de modo que as únicas mais-valias que o proprietário do terreno urbanizável aufere são as decorrentes da prestação de serviços de engenharia e arquitectura. A ninguém é permitido enriquecer pela mera reclassificação administrativa dos seus terrenos agro-florestais em terrenos urbanizáveis.

Em Portugal, desde que foi promulgado o decreto-lei n.º 46 673 de 29 de Novembro de 1965 (cujo avatar presente é o decreto-lei n.º 448/91 de 29 de Novembro), os proprietários de solos rústicos (agro-florestais) detêm a prerrogativa de lotear e urbanizar os seus terrenos, e de facturar a totalidade das mais-valias urbanísticas correspondentes. Pode dizer-se, com algum rigor, que o DL 46673 é o Euromilhões dos promotores imobiliários portugueses, a criar excêntricos desde 1965 (e a assassinar a paisagem nas últimas quatro décadas).

Vale a pena fazer um esforço taxonómico em torno deste rendimento súbito do GES, da ordem dos 20 000% (merece a pena insistir nesta magnitude percentual). Peço aos especialistas em Economia que me corrijam, se necessário. Usando as definições de Schumpeter, ter-se-á tratado de um lucro ou de um juro?

De um lucro seguramente que não, dado que um lucro resulta de actividades directamente produtoras de bens ou serviços, ao passo que esta emissão de um alvará pelo Estado, causadora do rendimento, não se pode classificar de serviço prestado pelo GES.

De um juro também não se terá tratado, já que o juro deveria ser a recompensa do risco corrido pelo capitalista ao realizar um investimento ou um empréstimo, e neste caso não houve qualquer risco de desvalorização de capital em 20 000% assumido pelo GES ao adquirir o imóvel rústico da Herdade da Vargem.

Este rendimento de 20 000 % tratou-se, isso sim, de uma fortuna imediata concedida pelo Estado a um particular, à custa da alteração da malha urbana nacional que a todos afecta. Este rendimento sem causa válida constitui uma modalidade de "rent-seeking activities", as quais constituem um “crime de colarinho branco" à luz da legislação económica mais esclarecida. É por esta razão que todos os países desenvolvidos, para não dizer civilizados, combatem por Lei, explicita e vigorosamente, a apropriação de mais-valias urbanísticas e, de modo concomitante, controlam draconianamente ou interditam mesmo as urbanizações particulares, ao passo que a ordem jurídica interna de Portugal omite toda esta questão. Enquanto continuar a omiti-la, qualquer proprietário de um terreno periurbano, ou litoral, ou de interesse paisagístico, sabe que bastarão uns quantos despachos, ministeriais ou autárquicos, para lhe trazerem uma fortuna imensa sem risco nem esforço…

Nada, no caso da Vargem Fresca, se distingue do regabofe político-administrativo que caracteriza a expansão urbana em Portugal, à excepção do facto de ter havido necessidade de abater sobreiros. Nos arredores noroeste de Lisboa, por exemplo a famosa região saloia, encontram-se os prados mais ricos em orquídeas autóctones de todo o Portugal e, por extensão, da região mediterrânea, que vêm sendo destruídos para dar lugar a urbanizações cujos rendimentos são imensamente maiores do que os da Vargem Fresca; mas ninguém se tem indignado com isso, aparentemente porque neles já não existem sobreirais nem cercais (embora tenham em tempos sido essas as florestas climácicas do local, de facto). Dezenas de outros ecossistemas, tão notáveis como o sobreiral, têm estado a ser urbanizados sem que se dê idêntica indignação da opinião pública. E em todos esses locais os promotores imobiliários têm ganho fortunas “trazidas pelo vento”, graças a uns poucos despachos administrativos que recompensam de modo principesco actividades económicas directamente improdutivas, vulgo parasitários, como sejam a facturação por meio de operações particulares de loteamento.

Estes crimes ecológicos e estas imoralidades económicas, onde se observa o enriquecimento sem mérito produtivo, são da mesma natureza dos que se observaram na Vargem Fresca: um mero alvará faz a fortuna instantânea do promotor, mas ninguém se indigna com isso...

No nosso país, o proprietário de um imóvel não-urbanizado tem apenas que seguir o seguinte algoritmo para se apropriar de mais-valias urbanísticas:

1) se o seu terreno for dado como urbanizável em sede de PDM, há que solicitar à autarquia alvará de loteamento, e vendê-lo a preços dezenas ou centenas de vezes superiores ao inicial;

2) se o seu terreno não for dado como urbanizável em sede de PDM, e não estiver afecto à RAN ou à REN, deverá pedir uma suspensão do PDM alegando “excepcional interesse público”. A suspensão é feita por mero despacho do presidente da Câmara, o loteamento é efectuado, após o que se recoloca em vigor o PDM. Entretanto, o proprietário factura as mais-valias urbanísticas;

3) se o seu terreno estiver afecto à RAN ou à REN, solicita desafectação, acto após o qual pode ter lugar o alvará de loteamento e a facturação de mais-valias urbanísticas.

Como disse, o caso da Vargem Fresca apenas difere destes casos gerais por ter envolvido o abate de sobreiros e a abertura de uma excepção duvidosa ao DL 169/2001. Muitos se sentem indignados por se ter contornado a protecção legal daquelas quercíneas. No entanto, creio que devemos olhar com mais atenção para o verdadeiro móbil desse subterfúgio, nomeadamente a possibilidade legal de um proprietário enriquecer colossal e imediatamente com o loteamento dos seus terrenos rústicos, apropriando-se das mais-valias urbanísticas. Se não houvesse essa possibilidade este crime ( por enquanto apenas o é em termos morais, dado que a Lei ainda não o contempla) nem sequer se teria dado. Não teria havido motivação para cometê-lo. Se não houvesse essa possibilidade, não seríamos o país que nos últimos quarenta anos conseguiu destruir a sua paisagem (sub)urbana, a sua economia fundiária, e a idoneidade das estruturas administrativas do território. O que sucedeu na Herdade da Vargem Fresca é idêntico ao despautério que se verifica por todo o país, com uma única diferença: neste caso foi necessário abater sobreiros para facturar mais-valias astronómicas e imerecidas.

O problema das mais-valias urbanísticas (junto com o da tributação do património imobiliário), é a causa mais profunda do total desastre do ordenamento e da falência da economia do território português. Quando irão os legisladores portugueses emendar o erro cometido em 1965, revogando o DL 448/91 e emendado a legislação conexa? Quando irão os nossos deputados emendar a nossa Constituição, o nosso Código Civil e consagrar de modo inequívoco e justo, num futuro Código de Urbanismo, a função social das mais-valias urbanísticas?

5 comentários:

Ponto Verde disse...

Excelente artigo, sobretudo pelos exemplos dados que permitem uma avaliação mais terra a terra. Escandaloso é o termo, mas tal até nem é novidade, veja-se autarquias como o Seixal, a mesma formula, o mesmo principio... e raramente se investiga e se põem cobro a estes estratagemas.

Anónimo disse...

O Meio Ambiente deve ser mais do que apenas a preocupação, a conservação e a protecção. O Meio Ambiente deve ser a base filosofica para a Evolução da Humanidade e continuidade da Vida no Planeta Terra.

Alexandre Ataíde disse...

Parabéns pelo artigo...

Anónimo disse...

informe-se e cale-se... ou procure qualquer coisa util para fazer, se tiver competência para isso..

Anónimo disse...

Mais interessante fica este assunto so for por aqui que passará o TGV e a estacao do novo Aeroporto de Lisboa ... eu nao disse nada ...