Por Pedro Martins Barata
Presidente da Euronatura - Centro para o Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável
Este artigo pretende, de uma forma algo pretensiosa (e pela soberba desde já me penitencio), expor o que considero ser mitos e falácias no discurso de muitos intervenientes no debate público sobre a energia em Portugal.
Uma primeira ressalva: como ambientalista que sou, as minha posições reflectem muitos dos possíveis preconceitos que essa posição política (e eu acho mesmo que ser ambientalista é tomar uma posição política) acarreta. Na medida do possível, contudo, tento distanciar-me o mais possível de muitas posições que outros reputariam como fundamentalistas, sejam elas “anti-nucleares” ou anti-renováveis” ou “pró-outra-coisa qualquer”. A meu ver, o debate sobre a energia em Portugal padece sempre do mesmo problema: o facilitismo de quem não quer pensar, mas antes gosta de se ater a “slogans”, sejam eles “Nuclear? Não, obrigado” ou outros. Acontece que, por exemplo, não acho que o nuclear sirva para Portugal (seja na forma de fissão ou na forma de fusão), mas baseio essa minha ideia em argumentos que nem sempre são coincidentes com muitos ambientalistas. Acima de tudo, não concordo com argumentos, como os de que o nuclear seria uma experiência “anti-natural” ou a de que a existência de resíduos sem alternativa de tratamento inviabilizam a sua utilização.
Uma política energética inteligente terá de conciliar múltiplos interesses - económicos, sociais, ambientais – e dificilmente se pode basear em ideias simplistas como: “a solução para o problema energético é (a fusão nuclear, a fissão nuclear/a energia das marés/a eficiência energética/a maior penetração das renováveis) “take your pick”). O problema é demasiado complexo para que qualquer uma destas potenciais soluções possam ser colocadas como “silver bullet”. Esse é o pior problema neste debate, comum, aliás, a muitos outros – o da simplificação extrema das decisões e a noção perversa, denotadora de um positivismo novecentista, de que existe um “fix” para o nosso problema. Só quando percebermos colectivamente que não existem fixes, e que os problemas da ineficiência energética, da dependência em relação ao exterior ou das emissões de dióxido de carbono não são compagináveis com esse tratamento, é que poderemos avançar.
Assim sendo, em seguida apresento algumas das ideias-chave que aparecem na imprensa e no debate público, muitas vezes sem substância.
Sobre o nuclear
“O nuclear é positivo para o clima”
Um dos principais estandartes para o renascimento do interesse na energia nuclear é o de que esta seria amiga do clima (já que, para ser amiga do ambiente, teria que ter resolvido de forma convincente a questão dos resíduos, do desmantelamento das centrais, e a eterna questão da segurança). Sem dúvida que, confrontados com a enormidade do desafio do protocolo de Quioto e, sobretudo, das reduções que efectivamente serão necessárias para alterarmos significativamente a trajectória das concentrações atmosféricas futuras de gases com efeito de estufa, o nuclear ganha algum encanto. Contudo, é necessário atentar que a energia nuclear não é inteiramente “carbon friendly”. Na verdade, só o seria se concentrássemos a nossa atenção na fase de produção energética na central. É certo que a geração nuclear não gera directamente quaisquer emissões de gases com efeito de estufa. Contudo, o ciclo de vida do urânio não compreende apenas a fase de geração de energia: o urânio tem que ser minado, enriquecido e armazenado seguramente. Qualquer uma dessas fases gera emissões de gases com efeito de estufa. Se fizermos contudo a comparação entre ciclos de vida, incluindo no ciclo de vida do nuclear também a mineração do urânio, o seu enriquecimento e o seu transporte, atingimos facilmente números da mesma ordem de grandeza que o ciclo de vida do gás natural. Um estudo recente e citado, entre outros, pela indústria nuclear, refere que o ciclo de vida de uma central alemã (com ligeiras variações adaptável para a realidade portuguesa) produz cerca de 35 g/kwh de produção, o que compara desfavoravelmente com praticamente quase todas as formas de produção em co-geração e produção renovável. Na verdade, mesmo a produção em ciclo combinado a gás natural parece ser favorecida por uma análise completa dos seus efeitos climáticos, quando comparada com a energia nuclear. O “ganho climático” não é, só por si, compensador. Uma possível defesa seria então que o urânio pode sempre ser importado, pelo que a nossa posição relativa enquanto emissor de gases com efeito de estufa seria melhorada. Para além do claro problema ético, acresce que, com esse argumento, desaparece uma das principais razões apontadas para a introdução do nuclear em Portugal – o seu contributo para a segurança energética é exactamente a nossa reserva de urânio, e a possibilidade de contribuir para a nossa independência energética.
“O nuclear melhora a nossa situação de dependência energética”
Aqui, é preciso reiterar algo que, de tão óbvio, não se percebe porque não é tão facilmente entendido por vários comentadores, que persistem no erro: o problema de dependência petrolífera em Portugal é, na sua enorme maioria, um problema de dependência em relação às formas não-eléctricas de energia. Na verdade, Portugal, apesar do acréscimo substancial do consumo de electricidade que se tem verificado nos últimos anos, e da ausência quase absoluta de políticas de gestão da procura de electricidade, é facilmente exportador de electricidade, tendo até uma percentagem de electricidade de fonte renovável razoavelmente significativa. A dependência, no que ao sector eléctrico diz respeito, centra-se essencialmente na importação de combustível, essencialmente carvão e crescentemente gás natural, para o funcionamento das centrais térmicas. O petróleo já quase não faz parte do “mix energético” do sector eléctrico (embora presente na co-geração e nas duas últimas resistentes centrais térmicas a fuelóleo.
Assim, a nossa dependência do petróleo no sector eléctrico é essencialmente, neste momento, fruto das condições contratuais que regem a importação do gás natural, e que são essencialmente a indexação do preço do gás natural importado a um cabaz de preços de petróleos. Mesmo assim, essa indexação tem o mérito de amortecer, para o sector eléctrico, as subidas e descidas do preço do petróleo.
Em última análise, a dependência energética portuguesa no sector eléctrico será sobretudo melhorada com a diversificação das fontes de gás natural (proporcionada em grande medida pelo terminal de GNL de Sines), a diversificação de fontes de energia, incluindo as renováveis, e o incremento das ligações eléctricas com Espanha, tornando o sistema eléctrico mais resiliente. Acresce ainda a possibilidade de melhorar a performance da rede eléctrica e, “last but not least”, o incremento da eficiência energética na utilização. Todos estes caminhos são possíveis, desejáveis e estão de alguma forma a ser concretizados, pelo que uma aposta no nuclear tendo como motivo principal a independência energética é efectivamente um “non-starter”.
Acresce ainda que as reservas de urânio do país, repetidamente classificadas como significativas, não o são se tivermos em conta as necessidades em urânio de uma só central nuclear. Se assumirmos, por exemplo, que Nisa tem 2000 toneladas de urânio utilizável (dados da WISE), a um ritmo de exploração de 200 toneladas/ano para uma central tradicional de 1000 MW, teremos urânio para 10 anos de exploração, no mais importante filão nacional!
Resta a questão do consumo energético não-eléctrico. Aí, a independência energética é uma miragem impossível: as necessidades crescentes energéticas no sector dos transportes só podem ser colmatadas, no estado actual tecnológico, com o consumo de derivados do petróleo. Aqui, ainda mais do que no caso do sector eléctrico, o nuclear é um absoluto “non sequitur”.
“O nuclear é competitivo e não necessita de subsídios”
Este é um dos mitos que se pretende incutir na actual discussão sobre o papel da indústria nuclear nos dias de hoje. Essencialmente, o argumento é o seguinte: com a actual estrutura de custos e com a internalização dos custos climáticos (através do mercado de emissões europeu), o nuclear é já hoje uma tecnologia concorrencial, sem necessitar de apoio estatal.
Aliás, o paralelo é muitas vezes estabelecido, pelos seus proponentes, com as energias renováveis que, na sua maioria, recebem subsídios avultados através do apoio ao investimento e a criação de uma tarifa especial para a electricidade. Os custos dessa política seriam incomportáveis a prazo, argumenta-se, pois que, na sua maioria, estas tecnologias nunca serão viáveis senão num prazo de décadas.
O argumento em causa é totalmente falacioso.
Diga-se em primeiro lugar, que existe alguma verdade na alegação de que as industrias renováveis podem estar a receber um subsídio desproporcionado aos seus benefícios sociais: pode inclusivamente ser o caso da energia eólica, onde a tarifa tem levado a uma verdadeira corrida à construção de aerogeradores. Convém contudo sublinhar que, mesmo no esquema generoso que existe em Portugal, há limites: o subsídio não prevalece para sempre, sendo diminuído ao longo do ciclo de vida do aerogerador. Acresce ainda que o custo de investimento em Portugal na indústria em causa tem sido agravado por vários constrangimentos, entre os quais o licenciamento ambiental, que penalizam o investimento em causa. Seria preferível provavelmente baixar a tarifa e facilitar o licenciamento, dentro de limites de razoabilidade.
O nuclear, argumenta-se portanto, é livre de subsídios. Nada pode estar mais longe da verdade. Para começar, a I&D em energia nuclear tem sido subsidiada, mesmo em Portugal, em valores que nada tem a ver com a I&D em eficiência energética, tecnologias de transmissão ou energias renováveis, mesmo tendo em conta que Portugal, como não nos cansamos de ouvir, é especialmente dotado para algumas tecnologias renováveis.
Em segundo lugar, toda a electricidade nuclear tem sido suportada, ao longo dos anos, por condições absolutamente vantajosas no tratamento da responsabilidade civil. Ao contrário de qualquer investidor tradicional, as empresas detentoras de centrais nucleares têm, ao abrigo de convenções internacionais, limites objectivos ao volume de compensações a atribuir em caso de acidente nuclear. Este tratamento invulgar (semelhante ao tratamento jurídico dos acidentes marítimos com derrames de óleo) foi inicialmente invocado como uma forma de colmatar a impossibilidade, pelo mercado segurador, de calcular correctamente o risco envolvido na construção e operação de centrais nucleares. Essa protecção, que nos Estados Unidos é conhecida como “Price-Anderson Act”, existe desde 1947. Seria portanto de esperar que a indústria nuclear pudesse já hoje apresentar o seu “track record” e sujeitar-se à apreciação do mercado segurador. Qual a razão por que não o faz? Porque sabe que o mercado segurador muito provavelmente não seguraria a grande maioria dos desenhos de centrais em causa. Este subsídio americano, repetidamente concedido através de autorizações do Congresso, foi recentemente revalidado pela Administração Bush. Mas mesmo o libertário “Cato Institute” advoga a sua revogação. Na Europa, as Convenções de Paris e de Bruxelas têm essencialmente o mesmo efeito. Muitos investigadores suspeitam que, na ausência dessas Convenções e do subsídio imenso que podem co-substanciar, a energia nuclear europeia não seria comercialmente viável.
A última prova deste argumento da viabilidade comercial do nuclear vem do recente projecto privado finlandês (TVO) de construção de uma central nuclear (a única em construção na Europa, após uma “seca” de 20 anos). Argumenta-se repetidamente que se trata de um projecto integralmente privado, que não recebe subsídios para a sua construção e que não terá tratamento preferencial no mercado eléctrico finlandês. O site dos promotores da central é: www.tvo.fi e as suas “claims” podem ser vistas em http://news.bbc.co.uk/1/hi/scotland/4683248.stm.
Contudo, uma visão mais fina do projecto revela que:
- um dos promotores, a empresa AREVA, subsidiária nuclear da EDF, recebeu uma garantia estatal francesa através da agência de crédito COFACE, no valor de 610 milhões de euros;
- a agência de crédito à exportação SEK, pública, concedeu cerca de 100 milhões de euros de financiamento, abaixo da taxa de mercado;
- o consórcio bancário que financiou a operação inclui um banco público alemão, e a taxa de juro utilizada é claramente abaixo da taxa de juro de mercado; e a taxa foi concedida, mesmo tendo em conta o baixo “rating” de crédito da TVO;
- Decorre neste momento uma queixa por violação do direito comunitário em matéria de ajuda de Estado, sobre a qual a Comissão ainda não se pronunciou. Seja como for, para o projecto privado, “exemplo” de como o sector privado pode construir e operar uma central nuclear sem subsídios, este parece um verdadeiro contra-exemplo de como se pode mascarar subsidiação sob formas mais inocentes.
* * *
A história dos subsídios ao nuclear é enorme. Segundo a OCDE, nenhuma fonte de energia foi tão beneficiada. A energia nuclear foi inclusive, mais beneficiada, nos seus estados iniciais, do que as energias renováveis estão a ser neste momento. Portugal pode neste momento escolher entre uma tecnologia altamente subsidiada, de rentabilidade duvidosa em mercado liberalizado, e outras tecnologias ao seu dispor, que ainda merecem subsidiação, no seu estado actual.
“O risco de uma central nuclear é aceitável em Portugal; afinal, já temos centrais aqui mesmo ao pé de nós, sem ter os benefícios”
Este argumento é, em boa verdade, falacioso e francamente…tolo. Resume-se este argumento a dizer que, dado que o que interessa é o acréscimo marginal de risco com a construção e operação de uma central nuclear, o facto de termos centrais nucleares em operação razoavelmente perto da fronteira significaria que o aumento seria mínimo. O argumento é errado, não na sua lógica, mas porque assume que a gama de riscos envolvidos é:
- Facilmente mensurável;
- Directamente proporcional à distância.
Não cabe aqui fazer uma análise de risco, mas parece óbvio perceber que, na sua maioria, os riscos de dispersão atmosférica têm a ver com regimes de ventos, natureza e densidade dos contaminantes em causa, impactes ambientais em causa, etc; que um dos riscos mais comuns tem a ver com contaminação radioactiva das águas de arrefecimento, o qual depende, entre outros, do caudal dos rios em causa… A simplificação de tudo isto em relação a um único descritor é claramente “not warranted”. Basta pensar, por exemplo, que no caso da dispersão atmosférica, o regime de ventos predominante na Península afasta do nosso território, na maioria dos casos, os poluentes atmosféricos; ou que, no caso da poluição das águas, uma central nuclear portuguesa teria certamente impactes significativamente mais altos do que uma central nuclear espanhola, apenas porque os troços nacionais dos nossos rios (se estivesse em causa uma central localizada junto a um rio) não são provavelmente suficientemente compridos para permitir a diluição dos contaminantes.
Sobre o petróleo
“Vai acabar – estamos a chegar ao fim da era do petróleo”
Este é um mito bastante mais duradouro do que poderia parecer à primeira vista: as primeiras previsões sobre o fim do petróleo são já dos anos 70 e contudo continuamos a ver, ler e ouvir o mesmo argumento: as reservas estão a esgotar-se. A verdade é que, embora as reservas de petróleo conhecidas e economicamente viáveis aos preços recentes estejam a esgotar-se, e em particular as reservas americanas e europeias pareçam estar a esgotar-se, os “neo-malthusianos” têm repetidamente minimizado o papel que a subida de preços tem no fomento da investigação tecnológica e consequentemente na viabilidade dos depósitos mais difíceis. Um caso claro do que actualmente está a acontecer: os “oil shales” do Canadá, até recentemente inviáveis, com o preço do barril de petróleo a 20 dólares, são hoje o objectivo de uma corrida ao “ouro negro” nas planícies do estado de Alberta. Se as intenções de investimento se concretizarem, o Canadá poderá vir a ser um dos maiores produtores de petróleo e talvez até o segundo maior fornecedor de petróleo para os Estados Unidos. Obviamente, existe um limite para este processo de crescente sofisticação na obtenção de petróleo. Esse limite, conhecido nos modelos de economia como “backstop technology” determinará efectivamente a transição para outras formas de energia, e não o esgotamento das reservas. O mundo terá saído da era do petróleo, muito antes de se esgotar o petróleo. Como disse em tempos o xeque Yamani, ministro do petróleo da Arábia Saudita, “a Idade da Pedra não acabou por falta de pedra”.
Sobre as energias renováveis
"As energias renováveis são/ não são comercialmente competitivas"
Dependendo do lugar na barricada, existem duas opiniões sobre o custo das renováveis: a de que estas não são comercialmente rentáveis, pelo que os subsídios de que usufruem deveriam ser terminados; e a de que as energias renováveis são ou irão ser comercialmente rentáveis, pelo que a sua subsidiação justifica-se como forma de ultrapassar os constrangimentos que o mercado lhes impõe.
Na maior parte dos casos, a energia renovável para produção de electricidade é ainda hoje, não comercialmente rentável, a preços inteiramente livres, pelo que a sua subsidiação só se justifica se tiver em linha de conta co-benefícios que advém a curto e médio prazo, da sua utilização. Em alguns casos, esses co-benefícios são claros, e alguns estão repercutidos (se calhar, até de forma excessiva) na estrutura da tarifa eléctrica que é concedida às energias renováveis, como é o caso da contribuição da energia renovável para a diminuição das emissões de gases com efeito de estufa (inexplicavelmente, um caso de dupla subsidiação, dada a inclusão da produção eléctrica no mercado de emissões). Noutros casos, é duvidoso que a subsidiação das energias renováveis contemple todas as barreiras ao seu desenvolvimento, face às energias fósseis. É o caso, por exemplo, da escandalosa distribuição dos dinheiros concedidos em Portugal à investigação e desenvolvimento em diferentes formas de energia, onde as renováveis só recentemente têm lugar de destaque e, onde, de forma inexplicável, predomina, em Portugal, a investigação sobre a energia nuclear.
Sobre os preços da electricidade / energia
“Os preços da electricidade são caros em Portugal”
Ao longo dos últimos anos, a indústria portuguesa, através dos seus representantes, vem clamando por uma intervenção estatal nos preços da electricidade, claramente mais altos em Portugal do que em Espanha, o que atentaria contra a concorrência espanhola.
Infelizmente, o Governo decidiu atender aos desejos da indústria, compreendendo as suas razões.
A Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos tem, contudo, uma publicação curiosa, de seu nome “Comparação Internacional dos Preços da Energia Eléctrica a 1 de Janeiro de 2005”, onde é possível ler o seguinte: “Em média, considerando a estrutura de consumos estimada para Portugal, os preços em Portugal, são 7,2% inferiores aos preços praticados em Espanha. Considerando a estrutura de clientes, os preços para usos industriais, situaram-se 5,3% abaixo dos de Espanha”, isto para os preços com impostos. Com a diferença da taxa de IVA sobre a electricidade entre Portugal (5%) e Espanha (16%), os preços isentos de IVA (aqueles que são relevantes para a indústria, eram, à data de Janeiro de 2005, e em média, considerando a estrutura de consumos, 0,9% acima dos de Espanha. Ponderando os preços pela estrutura de clientes, estes situam-se 2,6% acima dos de Espanha. É caso para dizer que este não é de certeza o factor mais relevante de falta de competitividade. Acresce ainda que apenas para três classes de clientes industriais, correspondentes a cerca de 55%, o preço em Portugal era superior (embora, em abono da verdade, uma destas classes incorpora os maiores consumidores industriais).
Por último, tudo isto tem por base os clientes do sistema regulado. Resta acrescentar que, para muitos clientes industriais, os benefícios do sistema liberalizado já funcionam: os putativos menores custos de produção eléctrica em Espanha, a existir, podem ser usufruídos pelos maiores consumidores industriais portugueses.
E contudo, persiste a ideia de um défice de competitividade entre consumidores industriais portugueses e espanhóis. E na base disso, facilitou-se a subsidiação cruzada entre consumidores domésticos e industriais. Atente-se agora no mesmo documento: nele está patente o preço mais alto em Portugal (e que aliás poderia ser ainda mais alto, caso o IVA fosse imposto à mesma taxa que no resto da Europa). A verdade, nua e crua, é que os consumidores domésticos portugueses, embora protegidos de maiores aumentos de preços por uma portaria que limitava os aumentos à taxa de inflação (Índice dos Preços no Consumidor) eram, efectivamente, os consumidores que tinham custos mais altos com a electricidade. Mas, e no interesse da competitividade, são estes que vão agora subsidiar os industriais para que estes tenham preços de electricidade apenas marginalmente mais baixos do que os de Espanha. E viva o empreendedorismo!
“A liberalização do mercado eléctrico vai fazer baixar os preços da electricidade”
Um dos argumentos avançados para a liberalização da electricidade é a ideia implícita de que os ganhos de eficiência são tais, que os preços da electricidade não poderão senão baixar. Há aliás argumentos ambientalistas de que isso, só por si, justifica a posição à liberalização do mercado – menor custo implica menor incentivo à poupança e portanto, maiores consumos, donde maiores emissões.
Em primeiro lugar, é preciso perceber que a criação de um mercado de electricidade tem em conta múltiplas opções para o desenho e configuração do mercado, e que a liberalização “à espanhola” pouco tem a haver com a liberalização “à inglesa” e ainda menos com a liberalização californiana. Existe uma diversidade de soluções de liberalização, pelo que é difícil defender uma tese geral sobre os mercados liberalizados de electricidade.
Em segundo lugar, o mercado, por muito eficiente que seja (e a maioria dos mercados eléctricos são notoriamente ineficientes) não podem falsear os dados de base sobre os custos de produção. Ou seja, a menos que haja intervenção estatal (ou comportamento predatório), os custos de produção de electricidade fixam o limiar mínimo para os preços que vigorarão no mercado. Esses custos de produção variam com uma quantidade enorme de factores (p.ex. pluviosidade) e é difícil, embora possível, prever o que o mercado fará. O que é certo é que, em relação à situação actual, em que as tarifas no consumidor final são reguladas, i.e. calculadas pelo regulador em função de informação dada pelos produtores sobre os custos que podem ser “levados à tarifa”, não é possível determinar se os preços futuros num mercado liberalizado serão necessariamente mais baixos. Pode até ser, caso a regulação seja boa (como é o caso em Portugal), os preços num mercado sejam efectivamente mais voláteis e potencialmente mais altos do que na situação actual. Acresce que, se o mercado for ineficiente (caso notório de Espanha), os preços serão claramente mais altos. As promessas feitas por políticos sobre os benefícios do MIBEL neste âmbito são, por isso, e apenas, “wishful thinking”.
Sobre o hidrogénio
“O hidrogénio é a próxima fonte de energia”
Outra falácia típica dos jornalistas menos experientes na área da energia: o hidrogénio não é uma fonte de energia, visto que ele não existe, na sua forma natural, numa forma utilizável para a conversão em energia eléctrica. A grande vantagem dos processos de hidrogénio reside na possibilidade de, obtido o hidrogénio a partir de qualquer uma das fontes tradicionais (hidrocarbonetos ou nuclear) ou renováveis (solar, eólica), este poder ser utilizável em processos não-poluentes de produção de energia em dispositivos conhecidos como “células de combustível”.
O importante a reter, contudo, é que, dada a indisponibilidade do hidrogénio na sua forma natural, o hidrogénio tem que ser produzido a partir de outros compostos que o incorporem (um processo conhecido como “reformação”). A reformação pode ser feita através da decomposição do metano, da gasolina, ou mesmo da água, mas esse processo, bem como o transporte e armazenamento do hidrogénio são ainda complexos e terão de, a prazo, ser objecto de padronização. De qualquer forma, o mais provável é que uma transição para uma economia de hidrogénio passe pela utilização, em fases intermédias, de processos de reformação a partir de hidrocarbonetos, pelo que o hidrogénio, só a prazo poderá ajudar efectivamente à segurança no abastecimento energético. O hidrogénio poderá ainda ter um efeito a médio prazo na viabilização de algumas fontes intermitentes de electricidade (éolica, por exemplo), constituindo-se como tecnologia de armazenamento de electricidade.
Sobre a independência energética
"O gás natural piorou/melhorou a nossa dependência energética"
O gás natural foi apresentado aos portugueses como o projecto que iria decididamente melhorar a situação de dependência energética do país em relação ao petróleo, fonte primária mais importante do país. Aliás, já o investimento em centrais a carvão (Pego) na década de 80, foi justificado pelo aumento da nossa dependência tendo em linha de conta a vulnerabilidade revelada por Portugal face aos choques de 1973 e 1979.
Assim sendo, pareceria que o gás natural, e a sua penetração rapidíssima no sistema energético português, teria cumprido a sua missão de diminuir a dependência energética do país. Mas eis que, subitamente, e para justificar outros investimentos energéticos em Portugal, se defende agora que o país está sobre-dependente em relação ao gás natural. Argumenta-se agora, por exemplo, com o risco político de instabilidade na Argélia (como se essa instabilidade fosse de agora, e não tivesse havido uma guerra civil durante todo o período em que Portugal teve como único importador a Argélia).
O estado da independência energética depende essencialmente do modo como a definirmos, pelo que precisamos de clarificar: se por independência queremos falar de controle sobre a matéria prima e produção, então nem mesmo o nuclear está a salvo, e apenas teríamos potencial na área das renováveis. Mas esse desiderato corresponde ao ideal do regime autárcico, corporizado entre nós pelo regime salazarista, ou noutras paragens, por exemplo, pelo ideal do senhor Ceausescu. Se, pelo contrário, reconhecermos que nunca será possível sermos autárcicos em energia, então colocaremos a questão noutros moldes, nomeadamente: como pode o País assegurar, sem grandes quebras, a energia primária útil de que necessita para as suas actividades. Se o fizermos dessa forma, algumas coisas parecem de repente mais claras: o que importa é diversificar o risco de quebra de fornecimento de qualquer um dos combustíveis, por forma a que, qualquer que seja o “abalo” que exista numa parte do mundo, ele seja compensado por outras fontes de energia. Aqui estamos muito perto da ideia de gestão de risco de carteira, tão cara aos analistas financeiros: por cada Joule que estou dependente de uma fonte arriscada, devo programar a compra de Joules de outras fontes com menos risco. Nessa óptica, o mais valioso instrumento para assegurar a nossa dependência energética (mas que quase ninguém cita), foi a construção do terminal de regaseificação de gás natural de Sines, possibilitando a importação de outras paragens, bem como a ligação em Espanha da nossa rede à rede transeuropeia. E o que verdadeiramente aumentaria as nossas posições relativas face ao exterior, seria a multiplicação das possibilidades de trocas de gás (como com a electricidade) com Espanha e França. Ou seja – a criação do mercado europeu de gás. Muito mais importante aliás, do que a eterna reconfiguração empresarial do sector. Infelizmente, fala-se mais em Portugal da privatização da Galp, ou do perigo da Iberdrola, do que do problema real do abastecimento e reserva de gás. Esses assuntos não vendem jornais, nem mostram os nossos empresários no seu melhor.
terça-feira, abril 11, 2006
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
8 comentários:
Parabéns pelo excelente artigo, bastante elucidativo e pedagógico. Pena que este tipo de artigos argumentados não chegue aos "prime-time" televisivos, que preferem homens engravatados ou jovens acorrentados, todos demagogos e com outros interesses, a dizer os mesmos disparates, todos os dias.
AG
Sem dúvida, o mais elucidativo texto sobre energia que já li nos últimos tempos. Parabéns pela clareza de raciocínio. Só tenho uma pequena crítica a fazer; será mesmo necessário usar tantas expressões "inglesas" pelo meio de um texto em português? Todas as expressões inglesas que utilizou entre aspas são facilmente exprimidas em português, na sua maioria mais eloquentemente até. Penso que seria levado mais a sério sem esses típicos tiques de inferioridade nacional em relação à nossa língua.
...Parabéns ao Pedro por um artigo tão bem fundamentado. Ficamos alertados para a "contabilidade creativa" que tem presidido à elaboração de muitos pareceres sobre as viabilidades ecológicas, económicas e técnicas das diferentes fontes de energia.
Depois desta leitura, creio que não serei o único a querer colocar a magna questão: e agora? Que alternativas temos pela frente? Iremos continuar a recorrer ao petróleo nas próximas décadas, como sugeriu um administrador da BP recentemente? "Business as usual", apesar do protocolo de Quioto?
A fusão nuclear poderá ajudar-nos?
Um artigo de fundo para reflectir, analisar e consultar.
Sobre os parques eólicos o artigo propõe:
"Acresce ainda que o custo de investimento em Portugal na indústria em causa tem sido agravado por vários constrangimentos, entre os quais o licenciamento ambiental, que penalizam o investimento em causa. Seria preferível provavelmente baixar a tarifa e facilitar o licenciamento, dentro de limites de razoabilidade."
Não seria preferivel não senhor! Só pode defender esta ideia quem percebe de energia por estudar alfarrábios, compêndios e internet. Demonstra contudo inexperiência e ignorância sobre a realidade dos parques eólicos nos locais onde são implementados.
Gostaria de acrescentar o seguinte relativamente ao mito da independência energética para o qual o nuclear supostamente contribui: mesmo que se conseguisse extrair em Portugal todo o urânio necessário para a operação de uma central durante o seu período de vida, não se pode esquecer que este urânio teria sempre de ser exportado para ser enriquecido (não temos tecnologia nem "know-how" que nos permitam fazê-lo) e depois novamente importado. A dependência face ao exterior só seria agravada (e a balança de pagamentos do país também)!!!
Gostei do post, parabéns pelo "insight" sobre a questão energética, mas não concordei com quase nada do que dizes. Só vou abordar algumas coisas que vi erradas (e nem sequer pela ordem correcta), porque não tenho muito tempo:
1. “A liberalização do mercado eléctrico vai fazer baixar os preços da electricidade”
Dizes que não. Claro, a curto prazo os preços não reflectiam o real custo. No entanto a longo prazo os benefícios da liberalização já são reconhecidos internacionalmente, com apenas poucos casos de excepção. Ler:
http://www.capgemini.pt/novidades/arquivo2002/12112002.htm
2. “Vai acabar – estamos a chegar ao fim da era do petróleo”
Dizes mais uma vez que não. Com toda a razão, pelo menos um trilião de barris foram gastos até hoje desde o séc XIX, e faltam pelo menos outro trilião de barris. O problema é outro: existe um pico de produção o que quer dizer que a procura crescente do produto não terá a correspondência da produção da mesma num futuro bastante próximo. O resultado é a presente volatilidade dos preços de petróleo e futura crise energética. Negacionistas falam constantemente sobre "oil shales", mas nem dão uma olhadela pelos números. A ideia de que a quantidade de petróleo disponível pode chegar aos níveis de 110 mb/d é simplesmente ridícula. Hoje estamos nos 83 e com enormes dificuldades. Negacionistas apenas acreditarão quando um dia quiserem ir ao trabalho e virem que pagam mais pela mobilidade do que recebem de ordenado. Ver:
www.lifeaftertheoilcrash.net
3. “O nuclear é positivo para o clima” Népias? 35 g/Kwh? Painéis solares fazem o mesmo número. E restantes valores para podermos comparar já agora? Ficamos no ar...
4."O petróleo já quase não faz parte do “mix energético” do sector eléctrico"
Irrelevante. O futuro não pode depender do petróleo nem do gás. Necessariamente, a não ser que se descubra algum milagre, a melhor opção de energia nos transportes é eléctrica. A sobrecarga é imensa.
Já para não falar da crescente procura de electricidade que é geométrica por natureza. Estamos perante uma crise de energia. Só não vê quem não quer.
4."as necessidades crescentes energéticas no sector dos transportes só podem ser colmatadas, no estado actual tecnológico, com o consumo de derivados do petróleo."
GPL? Atinge pico de produção em 2015. E depois o que vais fazer?
Plantar batatas e ligar-lhe uma bateria?
Aumentar a variedade de proveniências energéticas não me parece de todo uma má ideia, incluíndo (e sobretudo) a electricidade.
5."Para começar, a I&D em energia nuclear tem sido subsidiada, mesmo em Portugal, em valores que nada tem a ver com a I&D em eficiência energética"
Não percebi. É "mais" financiada ou "menos"? E qual a diferença para qualquer fonte de energia não renovável? ficamos outra vez no ar.
6. "O mundo terá saído da era do petróleo, muito antes de se esgotar o petróleo."
100% Wishful thinking com uma dose de confiança cega na que é possivelmente a maior mentira do mundo do petróleo: a disponibilidade de recursos da Arábia Saudita. Newsflash: Ghawar, o poço rei de petróleo, está muito possivelmente a atingir o estado de depleção. Os árabes negam-no. Mas com os seus números sobre os seus recursos como segredo de estado, vamos nós confiar no que esta gente nos diz? Belo. E estúpido também.
etc. Cumprimentos.
A produçao de energia é atualmente suficiente para a populaçao do planeta?justifique.
Enviar um comentário