Volta não volta aparece aqui e ali o tema da privatização das áreas protegidas.
Desta vez foi na lista da AMBIO há alguns dias, e resolvi retocar o texto que lá publiquei para caber num post deste blog.
Em primeiro lugar convém delimitar o que se entende por privatização das áreas protegidas, já que sob este chapéu se tem falado de coisas muito diferentes, sobretudo confundindo a privatização em sentido estrito (isto é, a alteração da detenção pública da propriedade para a detenção privada), com a participação de privados na gestão das áreas protegidas.
Esta participação pode ser feita de uma forma global, semelhante à que se passa com os concessionários de praia, para dar um exemplo, seja sob a forma de outsourcing de actividades concretas (por exemplo, em Espanha, grande parte da fiscalização de áreas protegidas é feita por empresas privadas num sistema semelhante ao que usamos, por exemplo, para a gestão de refeitórios de escolas ou hospitais).
As áreas protegidas em Portugal (o que não é o caso em muitos outros países, como os Estados Unidos ou a Finlândia) já são privadas, no sentido em que na sua grande maioria os terrenos são privados, sendo pois geridos numa lógica privada, em função dos interesses dos seus proprietários.
Há muita gente que identifica neste facto um problema central da gestão das áreas protegidas, visto que o interesse colectivo tenderia a ser preterido em função dos interesses privados (o mesmo tipo de argumento é também muitas vezes utilizado na discussão da gestão florestal).
Ora nada permite supor que a propriedade pública garanta melhor os interesses públicos que a propriedade privada (o pão, bem essencial, tem a gestão da sua produção, aprovisionamento e disponibilização assente na propriedade privada e não parece vir daí mal ao mundo para o interesse público).
A questão base é outra, e prévia à discussão da privatização: de onde aparecem os recursos para gerir as áreas de conservação?
Se os valores de conservação tiverem valor de mercado, o problema nem se põe, porque os beneficiários desse valor de mercado tenderão a mantê-lo, ficando o Estado com uma função de regulação do mercado.
Não tendo muitos dos valores de conservação valor de mercado (ou pelo menos um valor de mercado suficientemente atractivo face às alternativas à disposição dos donos dos terrenos), e sendo os terrenos privados, a gestão da conservação assenta normalmente em dois pilares: o pilar da regulamentação/ repressão, e o pilar da negociação/ contratualização.
O primeiro é eventualmente mais eficaz na gestão passiva da conservação (não matar exemplares de um animal, por exemplo o lince);
O segundo é mais eficaz quando a conservação de um determinado valor exige acção concreta e permanente para manter um status quo ou um caminho de um processo evolutivo (por exemplo, a diminuição de combustíveis), porque o Estado é muito menos eficiente que quem lá está todos os dias a realizar essa tarefa.
Este aspecto é central quando se comparam modelos de gestão de áreas protegidas que assentam em sistemas naturais em equilíbrio (como acontece em grande parte da América, África e Ásia) ou sistemas semi-naturais com intervenção humana, mas cuja produtividade primária baixa não implica necessidade de gestão intensa, como acontece no Norte da Europa, com os sistemas fortemente humanizados e de produtividade primária elevada como na Europa do Oeste ou Mediterrânica, em que a paragem brusca de intervenção humana pode dar origem a rupturas funcionais, de que o fogo em Portugal parece ser um exemplo (cheias, derrocadas, avalanches são outros possíveis exemplos noutras condições geográficas).
Pode discutir-se se é mais eficaz proibir a caça ao lince para preservar os poucos que sobram ou, pelo contrário, integrá-lo nas espécies cinegéticas, atribuindo-lhe assim valor de mercado (nesse caso o mercado associado à caça) para garantir a existência de recursos e de interesse dos privados na produção de mais linces (em espécies no estado de conservação do lince a hipótese parece totalmente absurda e é aqui usada provocatoriamente, mas é bem real em relação ao lobo, que é caçado em algumas regiões de Espanha, ou, mais mediático, aos elefantes, por causa do marfim).
Nas várias legislações internacionais de conservação que estudei, encontrei, numa delas, um princípio que me parece adequado: a regulamentação só pode ser usada quando a via contratual não fôr possível.
Isto é, o Estado tem o direito de impôr uma solução, mas só depois de verificar que não é possível obter o mesmo resultado por via da concertação.
Naturalmente a via contratual implica que existam os meios para estabelecer contratos, isto é, pretendo-se que exista gestão de matos para que determinado habitat se mantenha, ou determinada espécie prospere, e se o mercado não remunera o dono da terra o suficiente para que ele faça essa gestão de matos, então terá de haver recursos para cobrir essa diferença de remuneração (isto é, para colmatar essa falha de mercado).
Ou seja, ou há actividades suficientemente lucrativas para suportar a política de conservação e pode de facto discutir-se a privatização pura e dura (embora não privada, é assim que se organiza a política de áreas protegidas na Finlândia, em que uma empresa pública gera recursos a partir da exploração florestal e do turismo que lhe permitem ser também responsável pela gestão das áreas protegidas, ou é assim que os enormes rendimentos turísticos gerados pela conservação na Costa Rica ou no Quénia poderiam apontar nesse caminho), ou é necessário que o Estado disponibilize esses recursos, na medida em que o mercado não remunera os serviços prestados.
Portanto, primeira questão, que recursos podem ser gerados nas nossas condições com a política de conservação, que passos podem ser dados para a sua integração no mercado?
Segunda questão, e bem diferente desta: uma vez definidos os recursos, eles são mais ou menos eficientemente geridos numa lógica privada ou de Estado?
Claramente esta é uma discussão com um peso ideológico enorme e muitos mal-entendidos.
A Inglaterra, por exemplo, tem milhares de hectares consagrados à conservação com uma gestão privada (normalmente de organizações de interesses, como os vários trusts existentes), porque as pessoas se juntam para fazerem o que acham que está certo, mas também porque o tratamento fiscal destas situações é muito interessante para os proprietários.
Em Portugal este tipo de intervenção está muito pouco desenvolvido, conhecendo-se os exemplos da LPN em Castro Verde ou da QUERCUS no Tejo Internacional e poucos mais.
Mas há alguma razão de fundo para que uma área protegida (como um hospital ou uma prisão) não possam ter uma gestão privada (no sentido em que é concessionada, e não no sentido da verdadeira privatização que consiste em montar todo o negócio com base na detenção da propriedade e gerando os seus próprios recursos)?
Penso que não.
Seja optando por uma concessão geral da gestão da área (por exemplo, a gestão da reserva do Boquilobo ser concessionada à LPN ou à QUERCUS é uma ideia totalmente absurda?), seja optando por executar funções em oursourcing (como hoje fazem grande parte das áreas protegidas espanholas com a vigilância), ou associando a concessão de aspectos lucrativos da actividade, nomeadamente decorrentes do potencial de visitação das áreas protegidas, a obrigações de serviço público, como hoje se faz com as concessões de praia.
Mas o que é fundamental na discussão é que nada disso permite ao Estado demitir-se da sua função de guardião do património da nação, o que significa que seja qual for o modelo (ou os vários modelos) adoptado, o Estado é a única garantia de que os interesses de longo prazo e os contratos intergeracionais são respeitados, aspectos em que o mercado é claramente insuficiente (daí a famosa frase, utilizada com frequência por alguns economistas mais liberais “no longo prazo estaremos todos mortos”).
Como o Estado, ele próprio, se comporta muitas vezes como um vulgar especulador, o parágrafo de cima só é verdadeiro num Estado democrático e fiscalizado pelos cidadãos.
henrique pereira dos santos
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8 comentários:
Ou talvez não, visto que por exemplo o problema dos fogos é, em grande parte, causado pelos próprios cidadãos. Não teríamos então um novo problema, com o custo das indemnizações aos proprietários?
HPS diz:
"Ora nada permite supor que a propriedade pública garanta melhor os interesses públicos que a propriedade privada (...)"
E' verdade mas eu diria que a questao nao e' tanto a detencao da propriedade mas a estrutura da mesma.
Se as areas protegidas fossem publicas seria facil contratualizar a sua gestao a privados.
A questao de existencia de mercado seria pouco relevante pois os privados nao se degladiariam sobre a decisao de plantar um mega-eucaliptal ou fazer turismo de baixo impacte.
As opcoes (concorrencia de usos diversos) estariam limitadas a' partida facilitanto a instalacao de agentes economicos especializados na gestao de ambientes semi-naturais e rurais.
A questao e' saber se e' praticavel gerir de forma consensuada dezenas de milhar de hectar de terrenos privados que pertencem a centenas se nao milhares de proprietarios.
Provavelment nao e' e a solucao de gestao por coacao afigura-se conveniente para o Estado.
Se quisermos adoptar politicas de gestao proactivas teremos de dar um passo no sentido da contratualizacao da gestao das areas.
Mas para que isso aconteca seria conveniente que das duas uma: 1) se procedesse a' nacionalizacao de grandes porcoes de territorio; ou 2) os proprietarios se reunissem criando estruturas empresariais ou cooperativas de gestao das areas.
E' provavel que esta ultima sugestao seja a unica viavel no quadro actual. O que nao parece ser possivel e' contralualizar a gestao a centenas de proprietarios, a maior parte deles absentistas.
Muito bem, nacionalizam-se vastas porções do território. E gerem-se com base em que recursos? Nos que são gerados nesses territórios ou em recursos externos? Se são com base nesses territórios como se garante que os objectivos de conservação não são triturados pelos objectivos de sustentabilidade financeira? Se são com base em recursos externos como se garante que são imunes a flutuações de conjuntura essenciais às políticas de longo prazo, como por definição são as políticas de conservação?
Volto a insistir que discutir o modelo de gestão sem discutir o modelo de afectação de recursos é uma armadilha de que convém fugir a sete pés.
henrique pereira dos santos
henrique pereira dos santos
Respondo 'as questoes levantadas pelo Henrique com dois pontos:
1 - Esta' escrito nos manuais e demonstrado pela pratica que o custo de gestao de uma area para conservacao e' inversamente proporcional a' sua area total. Nao tanto pelas economias de escala que se poderiam obter com areas grandes mas pelo facto de a gestao do territorio poder ser menos intensiva quando as areas sao grandes. Obviamente que estas contas sao feitas quando se gere o territorio de forma proactiva o que nao tem sido propriamente a pratica das entidades responsaveis pela conservacao deste Pais.
2 - Estou convencido que a actividade economica primordial das areas protegidas deve ser o turismo. Os recursos para a gestao das areas deve provir de duas fontes: internas (venda de servicos por parte do estado ou taxacao da venda de servicos por parte de privados) e externas (para accoes de conservacao pura e duras).
Como se garante que a logica de remuneracao interna nao triture os objectivos de conservacao? Com planos de gestao bem feitos.
A questao nao faz muito sentido para mim pois existem inumeros exemplos no hemisferio norte e sul de areas protegidas que compaginam uma gestao economica activa com a conservacao. Nao precisamos de inventar nada. Basta copiar bem.
Ainda sobre a questao do turismo: E' surpreendente que um turista que chegue a Lisboa tenha tao pouca informacao sobre a oferta turistica que o Pais oferece em materia de natureza e mundo rural.
Querem viabilizar a gestao das areas protegidas?
Pois concentrem-se na promocao de um turismo de qualidade nas areas protegidas e encontrem formas de internalizar os custos desses turismo (p.e., via politica fiscal) por forma a permitir o re-investimento das receitas do turismo em actividades de conservacao.
Ou entao, nacionalizem as areas protegidas e adoptem uma polotica tipo parque Americano/Africano com uma gestao centralizada de tipo publico ou privado (por contratualizacao com o Estado).
Ha' varias mais ou menos criativas de proceder. O importante e' fazer depender a receita turistica dos valores de conservacao das APs pois se assim nao for a actividade turistica pode simplesmente matar a galinha dos ovos de ouro.
O modelo propoto pelo Miguel é o do PAN PARKs na Europa, e acho-o um bom modelo.
Simplesmente tem sido impossível aplicá-lo na europa mediterrânica e mais ocidental.
As razões são históricas (a intensidade de uso é ainda muito elevada e a fragmenação do território é enorme), mas são também da própria natureza do património natural de que dispomos.
É possível, num futuro mais ou menos alargado, admitir a hipótese do Miguel de ter pelo menos cem mil hectares sem intervenção, mas ainda que encontremos essas circunstâncias, isso nem de perto nem de longe resolve toda a nossa política de áreas protegidas e muito menos a nossa política de conservação da biodiversidade (que são coisas muito distintas).
Não por acaso o miguel fala em modelos de parques americano/ africano (poderia acrescentar asiático) mas também não por acaso raramente esse modelo é aplicado na Europa fora de circunstâncias muito especiais (o mais longíquo Norte da Europa e o mais historicamente alterado oriente europeu, que veremos quanto tempo aguenta a pressão e os conflitos).
E sobretudo esse modelo funciona no excepcional, não no mediano.
E a política de áreas protegidas deve potenciar o excepcional, mas não pode alienar o mediano, que é onde se joga o essencial.
henrique pereira dos santos
Nao escondo a minha preferencia pelo modelo PAN PARKS, mas nao negligenciei outras opcoes como seja as APs serem geridas por agentes privados sujeitos a taxacao.
Um caso extremo mas ilustrativo desta ideia e' o que se passa nas Baleares em que os turistas pagam uma taxa nas unidades hoteleiras que reverte para a gestao do patrimonio natural das ilhas.
O principio e' que o valor turistico destas ilhas passa pela sua qualidade ambiental e a manutencao deste valor tem um custo publico que tem de ser internalizado pelas actividades economicas.
Isto nada tem a ver com os PAN PARKS mas e' uma forma de gerar receita para o beneficio das areas protegidas.
Em Portugal temos problemas graves do ponto de vista da captacao de receita fiscal que dificultariam uma opcao destas.
Por exemplo, quando veraneio na costa SW costumo ficar em "bed and breakfast" que abundam pelas aldeias da costa vicentina. Mesmo pedindo, explicitamente, um recibo raramente este me e' facultado. Porque? Porque as pessoas, tao avessas ao parque natural, sabem exigir direitos sem no entanto estar preparadas para assumir responsabilidades.
Mas eu nao acredito em fatalidades. A dificuldade nao deve ser um obstaculo para que as medidas correctas sejam tomadas.
Quanto a' questao dos PAN PARKS, nao creio que a paucidade de exemplos na Europa (no Norte da Europa existem areas geridas de forma semelhante aos grandes parque Americanos excepto o facto de terem custo zero para o visitante) sirva de justificacao para nao avancar com o conceito por ca'. Dado o padrao demografico Portugues, com crescente abandono do espaco rural no interior, teremos num futuro muito proximo possibilidades reais de o implementar assim haja vontade politica.
A ideia de uma taxa para pagar a conservação tem vindo a ser exaustivamente estudada a avaliada, partindo do pressuposto de que a rede fundamental de conservação é uma infra-estrutura básica do país (como as estradas, as linhas eléctricas ou a rede de telecomunicações), mas é preciso reconhecer que nas actuais circunstâncias não é fácil tomar decisões desse tipo.
Para além disso há o triste precedente da taxa sobre os combustíveis para a gestão florestal cuja aplicação levanta as maiores dúvidas.
Portanto de acordo quanto à discussão das formas de financiamento da política de conservação, mas em simultâneo com a discussão dos métodos de controlo e avaliação pelos cidadãos da aplicação dos meios gerados.
A questão do PAN PARKS em Portugal não tem nada a ver com falta de vontade política. Numa altura de severas restrições orçamentais o ICN tem investido seriamente na questão, tendo inclusivamente estado em Portugal o responsável pela área de conservação da PAN PARKS foundation para avaliar preliminarmente as áreas por nós propostas.
O problema central, e não dolado português, é que a PAN PARKS foundation não aceita a argumentação portuguesa quanto à definição da core area de 10 000 ha sem qualquer uso extractivo, sem estradas, sem barragens, etc.
Continuamos à procura de 10 000 ha compactos e numa unidade só em Portugal que possam caber nos critérios PAN PARKS.
Aceitam-se sugestões.
henrique pereira dos santos
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