A fotografia é de Fred Stevens
Quando hoje arranjava uns míscaros, lembrei-me, divertido, de uma das críticas mais eficazes e aparentemente certeiras que abundantemente eram feitas ao regulamento do Plano de Ordenamento do Parque Natural de Montezinho que me cabia defender.
A coisa explica-se: a proposta de regulamento do plano continha uma norma que proibia a colheita de cogumelos à quarta feira.
Parecia daquelas tolices sem sentido que às vezes a burocracia cria sem ninguém saber como e porquê. Porquê a proibição? Porquê à quarta-feira? Com base em que estudos? que tinha a quarta feira de especial?, por aí fora.
E no entanto era fácil de explicar.
A apanha de cogumelos é uma actividade em crescendo em muitas áreas do país, nomeadamente em Montezinho.
Se feita com meia dúzia de cuidados simples não tem grande problema. Não me lembro agora se o plano também previa que a apanha apenas se fizesse com cestos de verga, mas se não continha exactamente esta norma deveria ter outra semelhante que tinha como objectivo proibir o uso de "depósitos" estanques para que os esporos pudessem ir caindo e se fossem espalhando.
Mas se esta meia-dúzia de cuidados for esquecida e se intensificar a colheita teremos rapidamente problemas de conservação (e, já agora, de economia).
Portugal não tem regulamentação sobre a actividade.
Portanto o Plano acabou por incorporar uma regulamentação pioneira que se pretenderia simples e com efeitos reais.
Para além desta questão dos esporos pretendia-se que a apanha não se fizesse todos os dias, impedindo a total maturidade dos cogumelos, para permitir, pelo menos um dia por semana, o fecho dos ciclos reprodutivos e a consequente queda de esporos que garantisse colheitas futuras.
O dia da semana, deste ponto de vista, era irrelevante.
A escolha do dia tem no entanto a racionalidade que passo a explicar.
Pretendia-se interferir o menos possível com a actividade (visto não ser a intensidade o problema mas a estanquicidade da armazenagem e a recolha permanente) pelo que o fim de semana e a sexta feira foram excluídas por serem dias de maior intensidade na colheita.
A quinta feira foi excluída também por ser dia de caça e ser muito difícil fiscalizar a norma nessas condições (para além de muitos caçadores realizarem as duas actividades em simultâneo).
Sobravam segunda, terça e quarta, dias de menor intensidade da apanha.
Escolheu-se a quarta.
E eis como uma norma aparentemente ridícula feita por quem não tem a menor consideração pelas populações locais é afinal o produto de um processo de sensatez e atenção à realidade local.
Explicado isto cem vezes na discussão pública, cento e uma aparecia na boca de alguém como exemplo acabado da estupidez do plano.
"A vida tem destas exigências brutas"
henrique pereira dos santos
sábado, novembro 01, 2008
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3 comentários:
Caro Henrique,
É interessante a estória do dia da semana onde se proíbe a colheita de cogumelos. Há mais países ou regiões onde tal "descanso" se pratique?
Lembro-me que há uma dúzia de anos atrás os responsáveis pelos pinhais do Estado em Vagos e Mira conseguiram introduzir regras e taxas de apanha que, apesar do conflito inicial, lá se foram aplicando (pelo menos era o que diziam os jornais da época).
Mesmo em Montezinho, não era melhor começar por ordenar a colheita em áreas administradas pelo Estado ou em grandes propriedades privadas, já que os cogumelos (ao contrário da caça) não são res nullius?
Ainda quanto a Montezinho, olhe que, pelo menos os cogumelos da espécie da fotografia, não terão lá grande futuro. É que o Plano de Ordenamento, numa perseguição notável aos pinhais indígenas (P. pinaster e P. sylvestris), proíbe quase totalmente a sua permanência no Parque (salvo uns pinhalecos até 1 ha e só em certos sítios).
Quando não se consegue fazer, o melhor é desfazer... e quem sofre são os míscaros!
B. Gomes
PS: gostava que um dia o Henrique postasse um artigo sobre o efeito benéfico dos incêndios florestais na preservação dos cogumelos. Como contributo, não resisto a transcrever aqui um excerto de uma página da UTAD [http://www.utad.pt/salaimprensa/salaimprensa/index.aspx?id=97]:
"Segundo o presidente da Associação Micológica a Pantorra, Francisco Xavier Martins, “em Trás-os-Montes os míscaros e outros cogumelos eram o pão da terra, comida dos pobres e, apesar das intoxicações, os cogumelos continuaram a ser consumidos”. Este mesmo autor associa o desenvolvimento da produção [de cogumelos] à florestação da década de 70 do século passado, com a qual espécies como a cerejeira, o carvalho americano, o freixo, o castanheiro, o sobreiro, o pinheiro, a pseudotsuga, o cupressos e a nogueira se espalharam pelo território transmontano, algumas das quais importantes para a formação de cogumelos."
Caro B. Gomes,
Não percebo nada de cogumelos mas vou tentar trazer algumas informações de que disponho.
A senhora com quem estive a falar este fim-de semana sobre os míscaros dizia-me que quando era nova, nesta altura do ano, rapazes e raparigas na terra dela (Fornos de Algodres) iam aos míscaros pelos soitos o que me leva a supor que não existem apenas no pinhais. Tanto mais que tendo a senhora 84 anos quer dizer que estaria a falar de um tempo em que os pinhais eram bem menos abundantes que hoje.
Também me parece depreender-se da afirmação de que os míscaros e outros cogumelos eram o pão da terra a falta de dependência estrita dos pinhais que são coisa relativamente recente (e em trás os montes razoavelmente rara).
A questão da propriedade que introduz é importante mas como sabe há extensas áreas de baldios que com o abandono rural deixaram de ter um controlo social eficaz, pelo que dificilmente se obteriam resultados ordenando apenas grandes áreas privadas (que praticamente não existem em Montezinho) ou administradas pelo Estado, mesmo que neste caso se incluíssem baldios sob administração dos serviços florestais (qualquer que seja o nome que agora lhes dão).
Como sabe, com excepção do Parque Nacional da Peneda Gerês, as competências de gestão florestal das áreas protegidas estão atribuídas aos serviços florestais.
Gostaria que me explicasse esta sua afirmação que, tanto quanto sei, não tem fundamento em nenhuma norma do Plano: "É que o Plano de Ordenamento, numa perseguição notável aos pinhais indígenas (P. pinaster e P. sylvestris), proíbe quase totalmente a sua permanência no Parque (salvo uns pinhalecos até 1 ha e só em certos sítios)."
Mas para lá da questão legal, gostaria de perceber a sua defesa de pinhais raquíticos, sem crescimento, não geridos e cheios de processionária como são a grande maioria dos que se encontram em Montezinho (nas partes mais altas, cá mais para baixo a coisa melhora e há uns pinhais razoáveis mas, por vezes, com produtividades semelhantes a castinçais, bastante mais valorizados).
Não sei o efeito dos fogos nos míscaros e outros cogumelos e gostaria imenso de ter informação sobre isso, sobretudo se resultar de observação de situações reais e não interpretações do que parece lógico que aconteça.
henrique pereira dos santos
Caro henrique Pereira dos Santos
Sigo atentamente as suas postagens aqui no Blog da Ambio, e gostaria de lhe escrever acerca de algo que me preocupa imenso e que tem a ver com o Parque Nacional da Peneda-Gerês.
Actualmente, encontra-se em revisão o novo Plano de Ordenamento do PNPG (PNPG) que visa, sobretudo, e tal como vem transcrito no seu artigo 2.º, ponto 3, alínea d : “assegurar o cumprimento das obrigações que decorrem para o PNPG com a sua integração na rede PAN-Parks, nomeadamente a criação de uma zona de protecção total com um mínimo de dez mil hectares (wilderness area) com ênfase exclusivo na manutenção e restauração dos processos ecológicos”.
Posto esta breve apresentação, gostaria de vos alertar para algumas questões que se prendem com as consequências para as populações locais, especialmente no que respeita à freguesia de Vilar da Veiga (embora muitas outras se encontrem na mesma situação, como por exemplo a Freguesia do Campo do Gerês) que, sendo já duramente “castigada” com o actual POPNPG, e recordando que este duro castigo já começou no tempo do Estado Novo com a questão dos Serviços florestais, passou depois pela vinda, por volta dos anos 50, da Albufeira da Caniçada que submergiu toda a riqueza (a Veiga ficou lá no fundo) da nossa freguesia. Passou, entretanto, pelo Plano de Ordenamento da Albufeira de Caniçada (POAC) que, imagine-se, já não bastava a Albufeira nos ter retirado as terras uma vez, voltamos a ter de ceder novamente, isto porque o POAC veio retirar área de construção e continua a fazer com que, ano após ano, os nossos jovens tenham de procurar outras paragens, por manifesta falta de terreno para construir.
Temos agora, uma nova proposta de POPNPG quase a sair.
Com a referida integração do PNPG na rede PAN-PARKS, e tal como demonstra o artigo supra citado, existe a necessidade de alterar,consideravelmente, alguns pontos fulcrais no (plano) que actualmente vigora. Nomeadamente, no ponto 4 do art.11º, em que o novo POPNPG prevê que “As áreas demarcadas como de protecção total, quando não integrem o domínio público ou privado do estado, estão sujeitas a expropriação nos termos da lei, devendo ser, prioritariamente, objecto de contratualização com os proprietários ou, no caso de terrenos comuns, com os compartes, tendo em conta os objectivos de conservação da natureza”.
Ora, aqui reside a minha maior preocupação. Dentro dessa área de protecção total (10 mil hectares) e, como muitos de vós sabeis, existem terrenos comunitários que pertencem a baldios e também a particulares e às vezeiras de gado que, dando o exemplo da de Vilar da Veiga, conta mais de 400 anos, constituíndo um património histórico e sócio-cultural de valor incalculável, pelo menos para as gentes que o percorrem à centenas de anos e, também, porque é património que nos pertence, e que nos foi transmitido de geração em geração pelos nossos antepassados!
Desde já, defendo que o ideal seria a conciliação de interesses. Concordo com a adesão à rede PAN-Parks, desde que essa mesma adesão não interferira com as actividades quotidianas das populações locais. Mas, questiono-me acerca de como vai ser resolvida esta questão, ainda mais porque a população tomou apenas conhecimento, muito recentemente, da possibilidade da perda de direitos consagrados há séculos.
Será que não se poderá encontrar uma solução favorável a todas as partes? A pastorícia não desempenhou em tempos passados um factor determinante na preservação daquilo que é hoje o PNPG?
Vou ainda mais longe...e pergunto se a pastorícia é incompatível com a protecção da natureza dentro do PNPG? Para dar um exemplo, o insuspeito Prof. Dr. Jorge Azevedo (antigo Presidente do Conselho Científico da UTAD) argumentava o seguinte relativamente à pastorícia: “(...) A importância desta prática, ao longo dos séculos, não só ao nível do bom funcionamento dos sistemas agro-florestais, mas também como modo de redução dos incêndios florestais”.
Posto tudo isto, não terá a população ainda mais razões para se sentir traída e enganada? Não estão todas as sucessivas direcções do PNPG já avisadas para o facto de a população viver de costas voltadas para o parque?! Fartas de perder direitos?! Será que não fomos nós, os residentes do PNPG que o preservamos até o mesmo ser constítuido? Será que a população está a mais, e agora estes novos “gestores” apenas se preocupam com a fauna e a flora? Caminhamos para uma política de desumanização do PNPG? Será que o objectivo do PNPG em contribuir para um desenvolvimento sustentável da população já não existe, e afinal o importante é perder população o mais depressa possível?!
Permito-me transcrever aqui o que o Prof. José de Almeida Fernandes dizia acerca de questões similares: “Que reacção se espera do cidadão a quem um estranho, representante da autoridade, venha obrigar a utilizar o que é seu segundo critérios que lhe são alheios e que não entende? Que colaboração se pode pedir a este cidadão para a correcta gestão da utilização da sua propriedade privada? Onde pára o preceito constitucional do direito de propriedade?
(...) Desçamos à realidade concreta. Há que pagar, indemnizar, todos aqueles que tiveram o “azar” de se verem incluídos nos perímetros das áreas classificadas, e se perguntam porque lhes coarctam os direitos e lhes mantêm os deveres, ou até os aumentam, em relação aos que tiveram a “sorte” de ficar fora desses perímetros. Supomos que não há um mínimo de justiça equitativa neste caso, mas é isto que tem acontecido no nosso país” in Do Ambiente Propriamente Dito, IPAMB, Lisboa, 2001, p. 145.
Acrescentaria que, e não querendo ser pessimista, a aprovação deste Plano de Ordenamento, dada a revolta que concerteza provocará nas populações locais, pode significar a destruição de zonas tão importantes como a mata da albergaria, todos os currais da vezeira, a zona da Bouça da Mó, a zona da Pedra Bela, etc... isto porque sem diálogo, e com as populações a sentirem-se injustiçadas, acredito e temo que recorrerão a tudo o que estiver ao seu alcance para defender as suas terras e sobretudo as suas raízes. E quem sabe, a mais valia que constitui a adesão ao PAN-PARKS hoje, não seja, afinal, o princípio do fim do PNPG.
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