O Público de hoje tem uma longa notícia sobre conservação do lince, tendo como pretexto imediato a chegada amanhã do primeiro lince ao centro de reprodução do Algarve.
Há já alguns anos que vou acompanhando o que é feito para a conservação do lince, de maneira geral com bastantes dúvidas sobre a afectação de recursos que é feita com base na conservação do lince.
E lendo as notícias mantenho as minhas dúvidas.
Há bastantes anos tive várias discussões porque defendi que a reprodução em cativeiro não era prioritária, sendo um gasto de recursos brutal com pouco efeito real na conservação da espécie.
A situação progressivamente mais desesperada das populações de lince convenceu-me a mudar de posição e achar que era preciso ter um bom programa de reprodução em cativeiro, no mínimo como seguro de vida da espécie, quer ela se extinguisse ou não na natureza. O que não significa que ache a reprodução em cativeiro em Portugal prioritária mas admito que Portugal participe nesse esforço que é fortemente consumidor de recursos, e de resultados muito incertos.
As minhas dúvidas prendem-se com o meu desconhecimento do modelo de gestão do centro do Algarve (não sei quem paga, quanto paga e com que objectivos) mas sobretudo com as medidas de conservação in situ.
O conservação do lince depende inteiramente da conservação do coelho. Convém compreender bem o que se passou com estas populações de coelho para perceber a minha perplexidade quando ouço dizer, a propósito da conservação do lince, que a tranquilidade e a ausência de pessoas é uma condição favorável à sua recuperação.
No Mediterrâneo o coelho, animal de clareira como nós, co-evoluiu connosco, tornando-se, durante milhares de anos, um animal abundante com um grande peso não só na dieta humana como na de muitos outros predadores, com especial destaque para o lince de que é praticamente a única presa.
Poucos anos depois da introdução do primeiro vírus na Austrália com o objectivo de controlar as populações de coelho que são uma praga naquela zona do mundo, o vírus foi introduzido acidentalmente em França. Menos de cinco anos depois, mais de 90% da população de coelhos de França e Inglaterra tinha sido dizimada.
Para o Mediterrâneo e para a área de distribuição do lince não existem dados com a mesma precisão, mas é consensual a ideia de que há uma queda acentuada do número de coelhos, o seu desaparecimento, mesmo que temporário, de muitas zonas e, sobretudo, uma rarefacção brutal, com diminuições de densidade que tornam inviável a existência de populações de lince (seis a sete coelhos por hectare é considerado o limiar mínimo de densidade de coelhos para sustentar populações viáveis de lince, situação que em Portugal ocorre em muito poucos sítios, fortemente geridos com objectivos cinegéticos).
Nestas circunstâncias confesso que não percebo a preocupação com os matagais mediterrânicos (importantes para refúgio do lince e do coelho, mas incapazes de por si sustentarem elevadas densidades de coelho e, de qualquer maneira, em expansão face ao abandono agrícola) em vez de preocupações com a manutenção das clareiras que sempre foram mantidas pela agricultura e o gado, esses sim, em clara retracção.
Parece evidente, para quem tem consciência do custo de manter paisagens em estados de evolução iniciais, contrariando pois a tendência natural de evolução progressiva para matos e matas, com colmatação de clareiras, que não é com projectos parcelares de apoio temporário suportados em financiamentos elevadíssimos por hectare que se consegue manter o mosaico necessário à elevada densidade de coelhos em áreas muito vastas.
A única solução é encontrar economias que suportem esse trabalho diário de formiguinha que consiste em todos os dias contrariar a natureza. Não é por acaso que as últimas áreas onde encontramos linces na natureza correspondem a habitats particulares onde a rarefacção da vegetação é uma característica que resulta das condições naturais e não da longa interacção do homem com a natureza.
Essas economias podem ser antigas (a complementaridade de áreas agrícolas, pastagens pobres e matagais resultante de mão de obra intensiva, fogo e gado), com podem ser modernas (a actual gestão cinegética), como podem ser para lá de modernas (as economias assentes na criação de valor de mercado a partir da biodiversidade, seja pelo turismo, seja pela valorização de produtos, seja pela caça ao lince, seja pelo mercado das doações, etc.).
Para isso os estados da União Europeia dispõem de instrumentos: os instrumentos de financiamento do mundo rural.
É por isso que a frase mais significativa do artigo do Público me parece ser esta:
""As pessoas não têm nada contra o lince mas contra a falta de coordenação e de informação." Turíbio exemplifica que uma das exigências para a atribuição de subsídios da Política Agrícola Comum é não ter mato com mais de 50 centímetros de altura. "Consideram que está abandonado, por isso tenho que o cortar. Mas isso não ajuda à recuperação do lince"."
É isto, andamos a fazer marouços, pastagens que ninguém pasta, sensibilizações e rodriguinhos tais, ao mesmo tempo que os verdadeiros instrumentos de gestão de paisagem em larga escala trabalham ignorando olimpicamente a gestão da biodiversidade.
henrique pereira dos santos
2 comentários:
Existe outra parte do artigo que merece atenção e reflexão.
Perguntaram ao proprietário porque é que tinha decidido colaborar com a LPN. E ele respondeu: "De início, desconfiei. Mas apercebi-me que não eram extremistas nem prepotentes. Foi fácil chegar a um consenso"
Ora, onde terá ido ele buscar a ideia de que a malta da conservação do lince poderia ser extremista??
Cumprimentos
Pedro Santos
De uma notícia do Público:
""A mais-valia da Malcata é o seu isolamento e tranquilidade", comenta Fernando Queiroz. Na verdade, só vivem cinco pessoas na zona limite da reserva. Em Barrancos, a situação muda."
Desde que lhes sirvam coelhos à mesa... :S
Gonçalo Rosa
ver: http://ecosfera.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1406750
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