"Por vezes, a compreensão da ideologia basta para restabelecer a "normalidade" de um comportamento. Recordemos um único exemplo: a imitação dos gritos dos animais. Durante mais de um século, acreditou-se que esses gritos estranhos do xamane eram a prova do seu desequilíbrio mental. Porém, tratava-se de coisa muito diferente: da nostalgia do Paraíso que assediava já Isaías e Virgílio, que alimentava a santidade dos padres da Igreja e que desabrochava, vitoriosa, na vida de São Francisco de Assis".
Estou convencido de que Mircea Eliade encontraria no Público de hoje matéria que lhe interessasse sobre os mitos do bom selvagem ou a nostalgia do Paraíso.
É muito interessante verificar como no coração do pensamento moderno se mantém vivo o pensamento selvagem, como desde sempre.
""Imagino-me a ser lobo agora e há cinquenta anos. Eles acabaram por se habituar a um novo meio onde há mais pessoas do que havia e há carros", diz Sara Roque, também bióloga do Grupo Lobo".
Deixando de lado a fascinante análise da relação com os grupos humanos e os animais totémicos adoptados, vejamos como o mito se encrava no seio do discurso dos cientistas, o que não é o mesmo que dizer no discurso científico.
É muito interessante como Sara Roque abandona a lógica científica (a compreensão dos animais enquanto animais) para encarnar a lógica da humanização dos animais, mesmo que disfarçada da animalização dos homens (a técnica genial de Walt Disney).
E é porque se abandona o campo do pensamento científico, trocando-o pelo pensamento selvagem e a clássica nostalgia do Paraíso que é possível ouvir Sara Roque falar de um tempo mítico em que os lobos não tinham de conviver com pessoas e carros.
O curioso é que os lobos não se preocupam excessivamente com os carros, sabem conviver com eles, têm sido encontradas evidências de reprodução muito próximo de áreas altamente perturbadas, como a construção de estradas ou de parques eólicos. Para além disso ninguém sabe se o lobo fica mais perturbado com um carro que passa com um trajecto definido e num espaço de tempo curto ou se com uma matilha de cães, por exemplo. Mas mais que tudo, há cinquenta anos aquelas serras tinham incomparavelmente mais gente e mais actividade que têm hoje.
Mas nada disto interessa muito porque na realidade o que se trata é de uma comunhão emocional com o animal e não de um trabalho científico como seja procurar compreendê-lo na sua irredutível diferença dos humanos.
O mesmo se diria de Francisco Álvares, quando compara a serra à nossa casa e fala de torres eólicos na sala e no quarto.
É de novo um pensamento que sai das regras estreitas do pensamento científico que lhe permite dizer que:
1) os lobos são muito fiéis ao seu território e já se constatou, nas áreas onde foram construídos parques eólicos, que eles não desapareceram desses locais (facto verificado);
2) mas alteram comportamentos (facto verificado);
3) com mais parques eólicos há mais dificuldade na obtenção de alimentos, de caça e na reprodução (facto não verificado em lado nenhum, mas coerente com a ideia de que alteração é sempre perda, muito comum na base ideológica da biologia da conservação).
O mais curioso é que o facto dos lobos se manterem alterando os seus comportamentos não é avaliado como positivo (embora na teoria a capacidade de adaptação a novas circunstâncias seja considerada como uma vantagem) mas sim como uma hipótese de problema, aliás não verificada empiricamente.
Voltarei provavelmente a este fascinante artigo do Público de hoje, mas não quis deixar de assinalar como é ténue a fronteira que separa o pensamento moderno do pensamento selvagem quando estão em causa fenómenos a que estamos ligados por profundas emoções.
henrique pereira dos santos
5 comentários:
Por acaso pareceu-me que tanto a Sara Roque como o Francisco Álvares estavam a fazer um esforço para descrever a situação em linguagem acessível e facilmente compreensível pelo público leigo.
Se falassem em linguagem técnica estariam a ser criticados por falar de maneira que nenhum leigo entende. Como tentam traduzir a linguagem técnica,levam logo com um rótulo Walt Disney. Sinceramente não me parece justo, mais a mais dada a natureza da reportagem.
Mais uma coisa:
"3) com mais parques eólicos há mais dificuldade na obtenção de alimentos, de caça e na reprodução (facto não verificado em lado nenhum, mas coerente com a ideia de que alteração é sempre perda, muito comum na base ideológica da biologia da conservação)"
Ora bem, abrem-se acessos onde antes não existiam, abre-se a porta à caça furtiva, aos passeios domingueiros feitos de automóvel e auto-caravana c/ picnic incluído. Não creio que se tenha publicado ume estudo, num revista científica com peer-review que relacione directamente este aspecto c/ o afastamento das espécies presa do lobo. Mas lá que é provável...lá isso é! E segundo me lembro, vem qualquer coisa na lei de bases do ambiente que cai aqui que nem uma luva...o princípio da precaução!
Caro anónimo,
O problema não é a linguagem não ser técnica, o problema é o que dizem estar errado (o que me espanta no Francisco Álvares porque conheço a qualidade do seu trabalho, na Sara Roque não sei porque não conheço o trabalho).
Dizer que há cinquenta anos havia menos pessoas naquelas serras é, pura e simplesmente, um disparate.
Comparar a colocação de aerogeradores no quarto das pessoas, quando é duvidoso que exista colocação de aerogeradores em zonas de reprodução (os lobos não escolhem normalmente as cumeadas cheias de vento para áreas de reprodução) é uma liberdade poética do Francisco que me espanta (deve ter explicação, que até pode ser o tratamento que a jornalista deu ao que ele disse).
Como disse voltarei com certeza a este artigo do Público.
Neste post quis apenas realçar a facilidade com que incorporamos em narrativas emocionalmente ricas pedaços de mundos irreais sem darmos por isso.
henrique pereira dos santos
Ainda um detalhe: as presas dos lobos daquela zona são em grande parte presas domésticas (penso que não muito longe está a freguesia do país com maior registo de prejuízos de lobo, pelo que o seu raciocínio não se aplica.
Ainda que as presas fossem quase exclusivamente selvagens os acessos podem ser limitados e já hoje existem pedreiras. O Norte do país tem bastantes lobos em áreas com imensos acessos e bem mais povoadas.
A alcateia de Sistelo tem gente por todo o lado (em comparação com a serra da Nave) e até tem uma empresa que organiza visitas aos lobos, o que não a impede de ter doze animais.
Ou seja, o problema da tranquilidade está mal equacionado: encaixa na ideologia da biologia da conservação mas não encaixa nos dados existentes.
henrique pereira dos santos
Esqueci-me: a referência a walt disney tem a ver com a Sara Roque raciocinar a partir do ponto de vista de um lobo, que é um mundo imaginário próximo do de walt disney.
henrique pereira dos santos
Caro Henrique,
Como terás já visto no Público de hoje o Miguel Esteves Cardoso dedica a sua crónica diária à mesma notícia dos lobos que referes no teu post. A meu ver o texto curto e incisivo que o MEC escreve levanta uma questão essencial da conservação da natureza em Portugal; a do pagamento de danos/compensações.
Por vezes as pessoas exteriores aos problemas têm uma perspectiva mais abrangente e sem preconceitos. De facto se queremos ter espécies como o lobo temos de fazer mais do que o que foi feito até agora e pagar para isso.
Actualmente existem fundos comunitários, disponibilizados através do PRODER que podem ser utilizados em acções de conservação da natureza pelos agricultores e promotores florestais mas é necessário fazer chegar esta informação aos interessados e, por outro lado, canalizar mais fundos para a conservação se isso for necessário.
Numa paisagem completamente humanizada como a nossa a conservação da natureza faz-se com as pessoas ou não se faz de todo. A história da conservação da natureza em Portugal nos últimos 30anos creio que me dá razão nesta afirmação. As posições apenas proibicionistas (e faço aqui um mea culpa pois eu próprio participei em algumas no passado), tanto do ICNB como das ONG’s contribuem sobretudo para pôr as populações contra os objectivos de conservação.
Penso que se o ICNB (e as ONG’s) conseguissem desenvolver uma relação de colaboração com as populações rurais, cuja existência é essencial para a manutenção de grande parte dos nossos valores naturais, apoiando-as na sua actividade, ajudando as pessoas (muitas delas com grandes dificuldades para navegar na burocracia da administração pública) a encontrar os apoios financeiros disponíveis para acções que favorecem comunidades animais e vegetais, disponibilizando técnicos para a elaboração de projectos, por exemplo, a sua relação com aquelas populações seria outra. Não é certamente demorando dois anos a pagar indemnizações que se conquista o seu apoio.
Mas, como diz o MEC “há que pagar ao pastor, como se tivesse ido ao Gambrinus”, caso contrário os valores naturais que estão sujeitos à concorrência de actividades produtivas, sejam parques eólicos ou olivais intensivos, não vão durar muito.
Bons posts,
Rui Rufino
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