quarta-feira, janeiro 06, 2010

Copenhaga: reflexões


Copenhaga: reflexões
por Pedro Martins Barata*



Desde o final da cimeira de Copenhaga, vários foram já os balanços da cimeira, feitos por uma multiplicidade de actores. Essas análises têm-se focado sobre as causas do colapso negocial em Copenhaga, bem como sobre as suas consequências geopolíticas. Isto porque é hoje, parece-me, incontroverso, que as alterações climáticas deixaram há muito de ser um problema ambiental stricto sensu, compaginável com o tipo de soluções e instituições elaboradas para os problemas ambientais internacionais tradicionais, como sejam a poluição transfronteiriça. A natureza global do problema, o questionamento que inevitavelmente coloca às estratégias e à própria noção de desenvolvimento, faz com que desde há muito, a negociação do quadro internacional de política de clima seja uma negociação sobre as questões mais profundas dos sistemas políticos actuais: a eficiência das soluções negociadas, a equidade e democraticidade dos processos e resultados negociais.
Tentarei, em traços tão breves quanto possíveis, dar o testemunho da minha observação pessoal de Copenhaga. Uma primeira observação é a de que a grande maioria das análises efectuadas até ao momento tenta analisar o porquê do colapso negocial com base num pressuposto essencial, típico da análise jornalística: a de que há desígnio negocial, i.e. inevitavelmente vencidos e vencedores, estratégias negociais claras e menos claras e acima de tudo, culpas a atribuir pelo fracasso. A realidade é mais complexa do que isso: há uma multitude de factores que levaram ao descalabro negocial, muitas delas escalpelizadas e bem: a actuação americana, algo errática, a teimosia e mesmo hipocrisia de alguns negociadores do G-77, a falta de flexibilidade (alguns chamar-lhe-iam arrogância) chinesa, a apatia europeia. Contudo, é tão ridículo apontar as baterias ao Presidente Obama pela sua tentativa mal alinhavada de salvar a Cimeira, como a Wen Jiabao ou a Hugo Chávez. Qualquer um deles contribuiu, no âmbito de um acontecimento mais complexo do que qualquer um deles poderia dominar, para a solução encontrada.
Tentemos então fazer uma análise, evidentemente pessoal, do papel que diferentes actores tiveram no final de Copenhaga, para melhor perceber onde estamos actualmente e quais as vias próximas de actuação possíveis, em particular para a Europa.

A Presidência Dinamarquesa

Primeiro: os hóspedes. A Dinamarca tinha, desde há dois anos, assegurado a organização da COP-15, mesmo que a custo de re-organizar a tradicional rotação regional dos hóspedes da conferência (este ano teria sido a vez da América Latina). O investimento negocial e de prestígio na organização foi imenso. É por isso surpreendente a evidente falta de preparação da organização para lidar com os volumes de delegados e manifestantes, como foi amplamente noticiado. Mas mais chocante do que a falha organizativa foi toda a postura diplomática do país organizador, apostado em ter um resultado positivo, sob a forma de um acordo político que fosse alinhavado em conferência de líderes. Note-se que todas as negociações internacionais não comportam a possibilidade de serem negociados entre 193 países com iguais direitos de negociação, pelo que a maioria dos acordos são feitos entre representantes de países com iguais interesses. É assim, absolutamente hipócrita pretender que Copenhaga poderia ser uma negociação de igual para igual entre os 193, como sugerido por algumas das Partes presentes em Copenhaga. Contudo, o que choca foi a forma como a Dinamarca não cuidou de criar as condições necessárias para criar a confiança entre as diferentes Partes, de que seria um árbitro equilibrado. Pelo contrário, as diferentes peripécias negociais que se sucederam, incluindo a fuga de informação sobre um texto (aliás já velho de duas semanas quando saíu), ou a mal explicada mudança de presidência a meio da segunda semana, tudo conspirou para retirar à Dinamarca legitimidade, sobretudo aos olhos dos países que mais desconfiariam sempre dos propósitos dinamarqueses (visto como demasiado próximos dos europeus): o G-77. Por último, o fraco desempenho da Presidência e do primeiro-ministro dinamarquês foi dolorosamente visível na última noite de Copenhaga, quando foi directamente acusado em plenário de ser parcial e ineficaz.

Obama na aldeia climática

Muitas esperanças foram colocadas no desempenho do presidente americano. Essas esperanças eram claramente infundadas. Quem conhece o ambiente político em Washington saberá que Obama tem uma estreita margem de manobra para actuar internacionalmente, se não quiser repetir os erros de Clinton. E Obama foi agressivo e corajoso: anunciou um pacote de financiamento climático bastante substancial, vinculou a sua Administração a um resultado no Senado de uma lei ainda em discussão, determinou que o acordo futuro a ser celebrado pós-Copenhaga deveria ser um acordo juridicamente vinculativo (seguindo assim as pretensões europeias). O que Obama aparentemente não contava era com o estado deplorável a que tinha chegado a negociação no momento da sua chegada a Copenhaga (a coordenação entre o Departamento de Estado e a Casa Branca não terá sido a melhor, diz-se). Seja como for, Obama tinha essencialmente um objectivo: negociar cedências com a China que permitissem vender um Acordo domesticamente como respondendo às exigências que os senadores centristas americanos não deixarão de fazer: acções com significado em reduções de emissões, internacionalmente verificáveis, por parte da China. Obama conseguiu isso, no Acordo de Copenhaga, e tal foi o suficiente para declarar o Acordo como um relativo sucesso.

A actuação chinesa

Era sobre a China que caíam todas as decisões e questões. Até onde pode a China ir no compromisso internacional pela redução de emissões? A resposta foi clara e até algo brutal: a China demonstrou, pela sua actuação, que o seu objectivo estratégico será sempre o de assegurar as condições máximas para o seu crescimento económico, sem constrangimentos internacionais. Na medida em que é afectada pelas alterações climáticas, a China contribuirá para o esforço global, mas não sente a necessidade de se vincular a um regime internacional de reduções. Mais: a China não aceitou sequer a inclusão de metas para 2050 para os países desenvolvidos, pela natureza do precedente que assim se abriria para futuros tratados. Contra a estupefacção, diga-se, dos próprios líderes europeus.
Convém no entanto compreender esta actuação à luz do regime chinês, das suas prioridades e do papel que a China pretende ter no mundo. De pouco serve demonizar a China, ou pretender que de alguma forma foi ela a culpada do colapso. Antes deveríamos atentar ao porquê de não termos, colectivamente, levado a China a alinhar o seu interesse estratégico por uma solução vinculativa em Copenhaga?

Os “radicais” do G-77

No grande e heterogéneo grupo que são o G-77, sobressaíram pelo seu papel crucial nas últimas horas, as posições radicais pró-transparência de Sudão, Bolívia, Venezuela e Nicarágua. Pretendendo falar em nome do G-77, recusaram-se a contemplar aceitação do documento final como um documento das Nações Unidas, denunciando de forma consistente a legitimidade do processo negocial em que redundou a conferência de líderes convocada pela Presidência dinamarquesa no último dia. É contudo uma situação cheia de hipocrisia, porquanto alguns dos seus membros foram efectivamente convocados para a conferência de líderes, tendo depois acusado a falta de transparência do mesmo. Mais gravoso, depois de acusações pouco diplomáticas aos líderes em causa (nomeadamente, de genocídio comparável ao Holocausto), ficou claro que se tratava de uma minoria dentro do grupo do G-77, apesar de tudo capaz de bloquear o consenso desejável.

O desempenho de Lula

No meio de Copenhaga, surge um líder carismático, e não é Obama: o discurso praticamente ad lib de Lula é uma lição de poder comunicacional (veja-se discurso em http://www.youtube.com/watch?v=hhL_fsp_Ufw). A sua oferta de financiamento (não especificada) uma jogada de mestre, obrigando os países desenvolvidos a irem mais longe nas suas ofertas. Contudo, importa reconhecer: muita da agenda climática brasileira tem claramente um objectivo interno, de ocupação do campo por parte dos potenciais candidatos à Presidência do Brasil. E tanto o Ministro do Ambiente, Carlos Minc, como Dilma Roussef, foram a Copenhaga posicionar-se já para as suas futuras corridas eleitorais. Nisso, nada de mal, faz parte do jogo democrático. E a prova da coerência do Brasil está na recente aprovação da lei que vincula o Estado brasileiro a metas de redução particularmente ambiciosas.

Na segunda parte do "post" analiso a prestação europeia, e o futuro do regime climático pós-Copenhaga.

* Membro do Comité Executivo do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo do Protocolo de Quioto e da delegação portuguesa à Conferência de Copenhaga. Consultor da Comissão para as Alterações Climáticas. As opiniões expressas são da responsabilidade do autor e não vinculam de forma alguma as instituições acima citadas.

1 comentário:

José M. Sousa disse...

Perspectiva de James Hansen sobre a Cimeira de Copenhaga:

«JAMES HANSEN: What we have now is 387 parts per million. But we’re going to have to bring that down to 350 parts per million or less. And that’s still possible, provided we phase out coal emissions over the next few decades. That’s possible. We would also have to prohibit unconventional fossil fuels like tar sands and oil shale.
But if you look at what governments are doing, the reason that you know that the kind of accords they’re talking about are not going to work is because, look at what they’re actually doing. The United States had just agreed to have a pipeline from the tar sands in Canada to the United States.»

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