domingo, maio 02, 2010

Contas, linguagem e realidade

Passo o tempo a mudar de ideias.
Achei que não respondia mais ao tretas mas a ideia que existe na cabeça de eventuais leitores de quem faz contas sabe e quem não faz não sabe leva-me a retomar a discussão sobre as enormidades que o tretas resolveu inventar com base em contas absurdas e sem nexo.
E leva-me a retomar a discussão porque é um excelente exemplo igual a muitos outros de manipulação de números sem significado, uma das técnicas mais usadas para distorcer a realidade quando os objectivos são arrebanhar prosélitos e não pensar sobre a realidade.
É o que tem feito uma boa parte dos negacionistas climáticos (como mais ou menos sofisticação), é o que têm feito os impulsionadores do manifesto por uma nova energia (não confundir com alguns dos seus subscritores enganados pela sua boa fé e fascínio por números que não analisaram e com que não estão familiarizados) e por isso vale a pena desmontar este exemplo evidente de manipulação sem pés na cabeça, mas aparentemente muito credível por estar cheio de números, contas e gráficos.
Convém lembrar que os números, como as palavras, os sons, as imagens, são apenas uma linguagem e como qualquer linguagem tanto servem para dizer asneiras como coisas de génio. A estúpida frase de que os números não enganam pretende negar este facto mas é apenas uma demonstração de como com palavras certas se podem dizer coisas erradas. Como com qualquer linguagem.
Recordemos o argumento do tretas:
"Segundo os dados da REN, durante o primeiro trimestre de 2010 foram gastos em bombagem no Alqueva, 33.995 GWh. No mesmo período, foram efectuadas descargas de 2769.83 hm3. Estes valores são um grande avanço sobre os dados que havia aqui relatado a 27 de Fevereiro. Para que o HPS tenha uma noção destes números, as descargas representam dois terços (2769.83/4150 => 66.743%) da capacidade de armazenamento total do Alqueva! E os 33.995 GWh gastos em bombagem dão para abastecer energia suficiente para 11300 famílias durante um ano completo, o equivalente a quase 4 meses e meio de produção da central solar da Amareleja!Quanta energia potencial se perdeu dá uma conta ainda maior! É que enquanto esteve a bombar, o Alqueva não esteve a turbinar! Portanto, para além dos 34GWh perdidos em bombagem, o Alqueva podia ter estado verdadeiramente a produzir energia!!! Quanta energia se poderia ter produzido com 2769.83 hm3 é uma conta apenas um pouquinho mais complexa. Cada um dos dois grupos do Alqueva turbina 200m3/s, pelo que o valor dos 2769.83 hm3 daria para turbinar mais de 80 dias sem parar! Como o Alqueva consegue produzir mais de 5500MWh num único dia (ver dados de eg. 3 de Março de 2010), perderam-se 440.8 GWh pelo rio abaixo!!! Somando este valor ao do desperdício de bombagem, a energia potencial perdida é de cerca de 5 anos de produção da central solar da Amareleja... Mas o HPS pode argumentar que nem toda a energia potencial seria aproveitada, porque não há tantos dias num trimestre. Resumindo, o valor real mais concreto é de um desperdício de produção de cerca de 200 GWh (entre o máximo teórico para o trimestre e o efectivamente produzido no primeiro trimestre), a que se deve somar os tais 34 GWh desperdiçados na bombagem. Ora isso dá para quase dois dias de consumo de energia eléctrica em Portugal!"
A quantidade de asneiras é assombrosa e por isso vou precisar de algum espaço para as desmontar.
Socorro-me de alguns gráficos com comentários para facilitar.

Neste gráfico vemos como as descargas (a encarnado) não coincidem com a bombagem, como é evidente para quem partir do princípio de que as coisas feitas pelos outros se baseiam em decisões tão razoáveis como as nossas.
A bombagem é uma operação de optimização económica da exploração de barragens, não é uma operação de optimização da produção de energia (a segunda lei da termodinâmica explica por que razão há sempre perdas entre cada transformação energética. A quantidade de energia produzida na turbinagem é sempre menor que a energia necessária para elevar a quantidade de água a turbinar, pelo que a racionalidade desta operação é apenas económica: se o preço de cada unidade de energia for suficientemente diferente, pode compensar gastar mais energia a baixo custo para produzir energia de elevado valor).
Essa é a razão pela qual a racionalidade da bombagem não se mede em médias trimestrais mas hora a hora, nas condições concretas do mercado em cada dia do ano. E o que este gráfico mostra é o que é razoável: ninguém faz bombagem quando está a despejar água em descargas não turbinadas.
No fundo é o que este gráfico traduz, ao comparar a percentagem de utilização das turbinas de alqueva (a encarnado) com a bombagem. E o que vemos é que se as turbinas estão a ser usadas em percentagens elevadas, não há bombagem.

Neste gráfico, que relaciona a produção (a azul) com as descargas (a encarnado), o que verificamos é que as descargas apenas ocorrem porque não há mais capacidade de produção. Nessa circunstâncias, uma de duas coisas acontecem: ou se armazena, quando há capacidade para isso, ou se descarrega quando a albufeira já não tem mais capacidade de encaixe (que era o que acontecia em Alqueva desde o princípio do ano).

É o que está expresso neste gráfico, onde vemos um primeiro aumento de caudal (a verde) no início do ano, que não se traduz em nenhuma descarga (a encarnado) mas sim no aumento de percentagem de armazenamento na albufeira (a azul), mas a partir daí é evidente que havendo aumentos de caudal muito importantes é forçoso haver descargas. Para se ter uma ideia, convém ter a noção de que os caudais mínimos neste trimestre foram da ordem dos 30 m3/s, o mais vulgares na ordem dos 60 a 70m3/s e o caudal máximo passou dos 2000 m3/s. No Verão o caudal pode andar no 5 m3/s com frequência. A capacidade de turbinagem máxima em Alqueva é de 400 m3/s.

Para discutir a política energética e a racionalidade económica dos investimentos convém ter uma ideia da probabilidade de ocorrerem estes níveis de caudais afluentes (ou seja, com que clima lidamos) e não faz o menor sentido usar situações pontuais (isto é, condições meteorológicas concretas) para retirar conclusões gerais.

Ou seja, pretender que as descargas de Alqueva se devem ao excesso de eólicas e bombagens e não ao caudal afluente deste ano, e pretender com base em valores totais do trimestre que é lógico preparar Alqueva para turbinar 2000m3/ s (caudal que acontece em alguns poucos dias de alguns anos) tendo-se desperdiçado neste trimstre dois terços da energia disponível em Alqueva, pode ser embrulhado nas contas mais sofisticadas que se quiser que continua a ser uma estupidez tão grande como quando não se embrulha essa argumentação num único número.

Adenda: nem tinha reparado, mas uma asneira dita com muita convicção tem muita força. O tretas compara caudais (isto é, fluxos, ou volumes por unidade de tempo) com volumes para concluir que as descargas são dois terços da capacidade de alqueva. Só que para obter volumes teria sido necessário ao tretas verificar que precisava de multiplicar o caudal pelo número de segundos em que ocorre.

Adenda 2: a soma de caudais que o tretas faz para medir a energia desperdiçada em Alqueva é um excelente exemplo de operação aritmeticamente mas certa sem o menor significado físico. Se eu quiser encher a minha banheira e tiver duas torneiras abertas a debitar 2litros por segundo (se quiserem podem pôr 2m3, o que serão 2 mil litros) eu posso somar os caudais e dizer que a banheira está a ser cheia a 4 litros por segundo, porque as duas torneiras estão abertas ao mesmo tempo. No entanto se a banheira for enorme e eu tiver dois dias com uma torneira aberta, e souber que em cada dia o caudal foi de dois litros por segundo, não posso somar o caudal dos dois dias e dizer que a banheira nesses dois dias foi cheia a 4 litros por segundo, já que na verdade ela foi cheia durante dois dias a 2 litros por segundo. Se é verdade que o volume duplicou, também é verdade que o tempo que demorou a passar também duplicou e portanto o volume sobre o tempo manteve-se o mesmo.

Chegados a este ponto fico sempre na dúvida sobre se estamos perante uma ignorância do tamanho do mundo (eu já fiz muitos erros básicos deste tipo pela vida fora e tenciono fazer mais alguns) ou se é mesmo má-fé. Eu inclino-me para a ignorância: não só tenho uma opinião de princípio favorável às pessoas, como a má-fé tinha de vir associada a uma estupidez enorme para se acreditar que a asneira passava sem que ninguém reparasse.

Adenda 3: o tretas protestou com as duas adendas anteriores e tem razão, a asneira foi minha. Por qualquer razão pensei pensei que as descargas tivessem apresentadas em caudais e na verdade estão em volume hm3. Por isso não se aplicam as adendas. Aplica-se só o post.

henrique pereira dos santos

6 comentários:

EcoTretas disse...

Continuas-te a confundir com a tua argumentação. O problema foi justamente quererem manter a barragem do Alqueva cheia, para aparecer nas notícias:

http://ecotretas.blogspot.com/2010/01/porque-esta-o-alqueva-cheio.html

Tal é claramente evidente no teu quarto gráfico, na linha "percentagem de armazenamento".

Por isso, começam a bombar, logo depois das descargas, como é evidente no primeiro gráfico!

Se tivessem turbinado enquanto estavam a bombar, como eu já provei, não era preciso estar a ter o sobrecusto com as eólicas, o nível da albufeira reduzir-se-ía, e permitiria o encaixe do volume de águas, que passados dias foram descarregados!

Este post havia aliás sido previsto:

"Mas o HPS pode argumentar que nem toda a energia potencial seria aproveitada, porque não há tantos dias num trimestre"

Por isso, mantém-se integralmente válida a frase final, que tu próprio citaste, Q.E.D.:

"Resumindo, o valor real mais concreto é de um desperdício de produção de cerca de 200 GWh (entre o máximo teórico para o trimestre e o efectivamente produzido no primeiro trimestre), a que se deve somar os tais 34 GWh desperdiçados na bombagem. Ora isso dá para quase dois dias de consumo de energia eléctrica em Portugal!"

Ecotretas

EcoTretas disse...

HPS,

Quanto às tuas adendas, sinceramente não percebo o que queres dizer que eu tenho mal nas minhas contas. O meu post que referenciaste têm os seguintes números:

33.995 GWh
2769.83 hm3
dois terços (2769.83/4150 => 66.743%)
11300
4 meses e meio
200m3/s
80 dias
5500MWh
440.8 GWh
5 anos
200 GWh
dois dias

Qual deles te mete confusão?

Ecotretas

Henrique Pereira dos Santos disse...

Tretas, quanto ao primeiro comentário, far-te-ei uns posts por estes dias para te explicar o absurdo do que dizes. Enrtetanto vê se te lembras para que foi feito Alqueva e por que razão a produção de electricidade é um uso secundário de Alqueva.
Quanto ao segundo comentário tens razão, as descargas são em hm3 (ou seja em volume). Não admira por isso que primeiro não tivesse reparado num erro que não existe.
assim as coisas são mais claras e é mais fácil discutir, podes por isso esquecer as adendas, excepto a terceira que vou fazer.
henrique pereira dos santos

EcoTretas disse...

HPS,
Eu só quero discutir isto como deve ser; aliás, a maioria destas contas nasce dum desafio teu, conforme te recordas.
Os fins múltiplos do Alqueva são uma realidade, e a electricidade é realmente secundária, excepto num Inverno chuvoso, como foi o caso!

Ecotretas

Manuela Araújo disse...

Boa noite

Será que algum dos autores do ambio que tenha alguma informação correcta sobre energia magnética pode dar uma ajuda no blogue Sustentabilidade É Acção?

É que levantei a questão para ver se aparecia alguém para ajudar a da umas pistas no sentido de obter informação fidedigna, mas os comentários que aparecem são também a procurar saber, e eu continuo sem respostas!

Muito obrigada

Anónimo disse...

Oh ecotretas! vens para aqui comentar o blog dos outros, mas no teu não deixas ninguem comentar. Para quando a possibilidade de comentarios no teu blog da treta?