quinta-feira, maio 06, 2010

Darwin e Lamarck


Nos comentários ao post anterior reforça-se uma ideia comum:

"Ora no caso dos sapos que tipo de gene permitiria adaptação ao pisoteio dos carros? Tanto quanto se sabe, nenhum. ... Especulações cujo único suporte é a imaginação (que por definição é infinita). Nada do que propõe aqui tem base empírica. Nada está baseado no estudo do comportamento de anfíbios. ... a mortalidade nas estradas, nomeadamente as que fala o artigo do Ricardo Garcia, são mortalidades associadas a fenómenos migratórios de curta distância. Migrações necessárias para completar o ciclo de vida das espécies. Portanto não existe seleção pelo mais fraco ou doente. ... Sabia que a capacidade de adaptação das espécies está directamente associada ao tamanho do seu cérebro? Dê lá algum exemplo de um anfíbio que tenha alterado o seu comportamento para se adaptar a uma pressão humana?"

A ideia subjacente a estes comentários é a de que as adaptações das espécies são forçadas pelos factores envolventes. Até aqui, nada de novo. Lamarck e Darwin estão de acordo neste ponto.
Mas o processo subjacente às citações que fiz é o que Lamarck descreve: os indivíduos adquirem características que transmitem à descendência (é isso que permite ao comentador dizer que não "existe seleção pelo mais fraco ou doente." no atravessamento de estradas).
Mas é na descrição do processo pelo qual se faz a selecção que Lamarck e Darwin se afastam. Darwin descreve um processo diferente: há uma variabilidade genética dos indivíduos que faz com que alguns resistam a umas condições, e outros a outras (o facto de serem doenças, estradas ou secas é irrelevante e seria para mim surpreendente, se não tivesse visto esse erro de raciocínio dezenas de vezes em biólogos da conservação, que biólogos ou pessoas que trabalham em biologia tenham tanta dificuldade em perceber que pode haver genes que permitam evitar o pisoteio de carros, em vez de resistir ao pisoteio dos carros, como errada e ironicamente se diz e, por essa razão, ganharem uma vantagem competitiva determinante em relação ao parceiro do lado).
Já me surpreende menos esta frase: "Especulações cujo único suporte é a imaginação (que por definição é infinita). Nada do que propõe aqui tem base empírica.", porque na verdade todos nós temos dificuldade em entender e aceitar que o futuro não tem, nem nunca terá, base empírica. É mesmo aleatório.
É curioso como uma discussão sobre o que significa para a conservaçao da espécie a mortalidade absoluta detectada numa estrada se transformou rapidamente numa discussão especulativa sobre evolução. O responsável fui eu porque para ilustrar por que razão não era certo que mortalidade tivesse que ver com afectação das espécies eu criei uma especulação teórica assente no que hoje se aceita como certo na teoria da evolução. O máximo que eu pretendia era que se tomasse em atenção a incerteza e o desconhecimento inerentes a este tipo de processos, não era que a especulação fosse tida como uma verdade explicativa alternativa.
Para se ter uma ideia de como estes processos são bastante menos lineares do que é comum ler em artigos científicos que usam a modelação matemática como substituta da realidade cito um exemplo concreto.
Numa linha eléctrica na zona de Castro Verde foi detectada uma elevada mortalidade de abetardas. Como nesse caso existem estudos independentes sobre a dimensão da população, no mesmo período, é possível verificar que desde a instalação da linha, que inegavelmente criou uma elevada mortalidade, a população de abetardas aumentou 50%.
A mortalidade favoreceu o crescimento da população? Claro que não, tinha era pouca importância na dinâmica da espécie, face a outros factores muito mais relevantes (como com a informação dada pelo comentador anónimo se pode admitir para os anfíbios alentejanos: a mortalidade nas estradas deve crescer bastante, porque como reajem muito à disponibilidade de locais de reprodução e como este ano tem sido muito húmido, é natural que exista mais matéria prima para processar nas fábricas de morte que são as estradas).
PS Estou a ler um livro que me indicou o Miguel Araújo e que me foi útil nesta discussão: O Cisne Negro.
henrique pereira dos santos

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