segunda-feira, maio 03, 2010

A morte e a conservação

Aposto que se o estudo fosse feito aqui encontrariam muito mais sapos mortos
Eu sei que já escrevi sobre isto, mas o Público de ontem leva-me a escrever outra vez.
Ricardo Garcia é um jornalista experiente e com boa formação em matérias ambientais (mesmo não sendo a conservação da natureza o que mais trabalha profissionalmente).
Por isso estranhei que aceitasse sem reservas esta ideia, expressa no seu artigo "Construção de estradas como factor de ameaça à biodiversidade":
"Um estudo realizado numa via municipal perto de Évora mostra que a possibilidade chegar ao outro lado da estrada sem um arranhão é mínima. Grande parte morre esmagada sob as rodas dos automóveis".
Procurei no artigo todo a fundamentação desta afirmação e não a encontrei.
O máximo que li foi que "Biólogos da Universidade de Évora foram verificar, em 62 noites entre 2003 e 2007, o que encontravam num troço de 7,1 quilómetros da EM 1708. ... Encontraram, no total, 2014 anfíbios... cerca de 65% tinham já sido atropelados. Os restantes ainda estavam vivos sobre a via".
Ora esta segunda citação que fiz tem muito pouca relação com a afirmação de que "Grande parte morre esmagada sob as rodas de automóveis" porque não se sabe que parte é aquela que não é encontrada na via.
Aliás, o mais próximo de uma conclusão lógica (sendo que o facto de ser lógica não significa verdadeira, podem simplesmente faltar premissas que permitam conhecer a verdade) é que as estradas não são problema nenhum para os anfíbios (ou mais precisamente, que aquele troço daquela estrada).
Repare-se que a estrada está lá há anos, os carros passam por lá há anos e mesmo assim ainda se encontram mais de trinta animais por noite na estrada. Se a estrada fosse um problema sério, os bichos já teriam desaparecido e não se encontrariam (nem vivos, nem mortos, porque para morrer é preciso antes estar vivo).
É um erro conceptual típico de muitos estudos sobre impactes que analisei: a confusão entre a mortalidade de indivíduos e a afectação da espécie. Sobretudo da mortalidade induzida por coisas que são muito pouco efectivas enquanto máquinas de morte: qualquer epidemia ou fome é muito mais eficiente a matar que os meios de impacto directo, como estradas, linhas, tiros, predadores e etc..
henrique pereira dos santos

10 comentários:

João Soares disse...

Henrique
É importante "relativizar" certos impactes ambientais, pois os esforços da sociedade civil e científica para os minimizar estão a ser feitos. Compreendo o raciocínio mas então quais os limiares e/ou índices mais adequados para minimizar os impactes antropológicos nomeadamente as estradas?

Anónimo disse...

A propósito recomendo:

Fahrig L., Pedlar J.H., Pope S.E., Taylor P.D. and Wegner J.F. 1995. Effect of Road Traffic on Amphibian Density. Biological Conservation 73: 177-182.

Abstract

We studied the effect of traffic intensity on local abundance of anurans. We counted dead and live frogs and toads per km and estimated frog and toad local abundances using breeding chorus intensities on similar roads through similar habitats, but with different levels of traffic intensity. After correcting for effects of date, local habitat, time, and region, our analyses demonstrated that (I) the number of dead and live frogs and toads per km decreased with increasing traffic intensity; (2) the proportion of frogs and toads dead increased with increasing traffic intensity; and (3) the frog and toad density, as measured by the chorus intensity, decreased with increasing traffic intensity. Taken together, our results indicate that traffic mortality has a significant negative effect on the local density of anurans. Our results suggest that recent increases in traffic volumes worldwide are probably contributing to declines in amphibian populations, particularly in populated areas.

Citando M.Rosenzweig: "Extinction takes a while"

Cumps

Henrique Pereira dos Santos disse...

João,
Quais impactos? Essa é a questão.
Anónimo,
A citação do artigo apenas diz que há uma correlação entre intensidade de tráfego e desaparecimento de anfíbios na envolvente das estradas (e mesmo assim, depois de uma data de correcções). Não diz rigorosamente nada sobre a afectação das espécies pelas estradas. Aliás, o resto é especulação.
Por exemplo, não diz nada sobre o efeito da concentração de movimento nas estradas deixando largas áreas do território sem perturbação. Sim, é uma hipótese especulativa. Tão especulativa como outras.
Repare-se que eu nem sequer estou a dizer que não há efeitos negativos, estou só a dizer que mortalidade de indivíduos e afectação das espécies são coisas substancialmente diferentes. Pode acontecer que os sapos e rãs que se safam estejam mais bem preparados para conviver com estradas e no longo prazo isso venha a significar que haverá populações mais adaptadas ao tráfego. Totalmente especulativo. Sem dúvida, mas a teoria permite especular assim. Só quando se avalia a afectação é que é possível discuir a afectação. Se só se avalia a mortalidade, só se pode discutir mortalidade.
Como poderia dizer eu: survival of species takes a while.
henrique pereira dos santos

Anónimo disse...

Caro Henrique,

Além das correlações existe a lógica que é uma ferramente útil para separar especulações legítimas de expeculações que o não são.

De resto a sua última frase que não faz qualquer sentido. Alguma vez ouviu falar de "random walk"?

Anónimo disse...

Estava a referir-me a esta frase: Como poderia dizer eu: survival of species takes a while.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Anónimo,
Explique então onde está a falta de lógica das minhas especulações e explique lá por que razão a minha frase não faz sentido.
henrique pereira dos santos

Anónimo disse...

Caro Henrique,

A sua frase é meramente retórica e no contexto desta discussão disparatada pois não conduz a lado nenhum. Apenas gera confusão põe-nos a discutir o sexo dos anjos. Possivelmente é por aí que quer ir pois no meio da confusão costuma sair-se bem. Não faz sentido pôr em igual pé de igualdade a frase que o outro anónimo citou "Extinction takes a while" com a frase "survival of species takes a while". A primeira tem sentido: as extinções raramente ocorrem num ápice. A segunda nem se percebe bem o que quer dizer. O óbvio? Que as populações duram algum tempo antes de se extinguir? Se sim isto é dizer exactamente o mesmo que a frase anterior (extinção e sobrevivência são os dois extremos do mesmo gradiente) mas sem a agudeza da mesma.

Quanto às especulações, leia o que escreveu e leia o artigo que critica. Compare o que chama serem as especulações do artigo (que faz uma análise empírica de dados, encontra correlações que à luz da lógica revelam a existência de um factor de ameaça das populações) com as suas especulações ("Pode acontecer que os sapos e rãs que se safam estejam mais bem preparados para conviver com estradas e no longo prazo isso venha a significar que haverá populações mais adaptadas ao tráfego").

Finalmente aconselho-o a ler umas coisas sobre "random walk" e "extinção". Se se der ao trabalho de estudar um pouco entenderá que num mundo das probabilidades a existência de factores que induzem mortalidades elevadas e regulares aumentam a probabilidade de extinção das populações o que, seguindo uma trajectória de "random walk", levará à extinção das mesmas antes do que seria normal num processo meramente aleatório. Ou seja, a questão é que com as estradas as populações de rãs e sapos se extinguirão antes do que aconteceria se elas não estivessem lá.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Anónimo,
O argumento do "vai estudar que não percebes nada disto" não faz o meu género.
E o argumento "tu queres é confusão", também não.
A frase que eu disse quer simplesmente dizer que é preciso tempo para as espécies se adaptarem a novas realidades. Se isso é ilógico o melhor é apresentar a reclamação ao Sr. Darwin, não a mim.
Vamos agora à substância:
A correlação entre mortalidade de indivíduos e afectação da espécie não tem a menor lógica: são incontáveis os exemplos na natureza de elevadas mortalidades e grandes prevalências, desde as espécies cujos indivíduos morrem todos em determinadas circunstâncias, mas a espécie sobrevive até espécies de elevada mortalidade associada a elevada fecundidade. O que é lógico é associar o saldo à afectação das espécies, e não a mortalidade.
Ora nos artigos em causa nem sequer se tem a noção da dimensão das populações e portanto nem sequer se sabe qual o grau de mortalidade na população.
Por último e muito mais sério: o mundo das probabilidades diz respeito à matemática, não diz respeito à biologia. Portanto modelos estatísticos que simplificam a realidade para prever como se comportam organismos vivos têm de ser vistos com muita, muita cautela e, sobretudo, não provam nada, no máximo, quando são bem suportados em informação empírica (o que é raro), ajudam-nos a pensar, o que já não é pouco.
Mas ainda que a biologia fosse do mundo das probabilidades (que não é) repare que o modelo assume que mortalidades significativas e regulares têm um determinado efeito (o que em si é muito pouco por não entrar em linha de conta com as respostas das espécies a essas condições). Ora em lado nenhum a notícia do Público (e a investigação que lhe dá origem) demonstra que as mortalidades são significativas e regulares (ao contrário do outro estudo, cujos pormenores precisaria de ver com mais atenção, que estou muito escaldado).
henrique pereira dos santos

Anónimo disse...

Caro Henrique

As duas referências que o incomodam não são argumentos, são comentários.

Quanto a esta frase:
"A frase que eu disse quer simplesmente dizer que é preciso tempo para as espécies se adaptarem a novas realidades. Se isso é ilógico o melhor é apresentar a reclamação ao Sr. Darwin, não a mim."

Continuamos na retórica. De que tempo falava Darwin? Das décadas em que situa este post? Ou dos milhões de anos em que se situam os processos de seleção natural que levam à criação de novas espécies? E de que adaptação fala o HPS? De que os sapos e rãs desenvolvam carapaça que os protejam do peso dos carros quando lhes passam por cima? Ou das asas que lhes permitam sobrevoar as ditas estradas? Parece ridículo? Sim mas é o que decorre dos seus comentários pouco reflectidos sobre evolução de sapos e rãs à mortalidade que sofrem nas estradas. Penso que não preciso de reclamar junto de Darwin, apenas juntos dos seus professores de biologia.

Quanto ao resto fico-me por aqui pois de nada serve continuar a discutir com quem nem se dá ao trabalho de entender as matérias sobre as quais escreve. Deixo apenas algumas notas soltas. Não voltarei a elas a menos que veja da parte do HPS algum progresso argumentativo. Quer dizer, que resolva estudar um pouco e deixar de lado as armas da retórica que tanto gosta de usar.

Primeiro é óbvio que existe correlação entre mortalidade de indivíduos e afectação da espécie. A extinção é a morte do último individuo. Portanto, aumentar a mortalidade dos indivíduos duma população numa dada região tem como resultado o aumento da probabilidade de que esta se extinga. Estou a falar de probabilidades, entende? Sobretudo se essa mortalidade não decorrer de processos naturais para os quais a espécie vai tendo mecanismos adaptativos, mas de mecanismos externos ao sistema biológico para os quais as espécies não têm, nem terão, qualquer mecanismo de adaptação.

Segundo diz que há muitos casos em que as espécies sobrevivem apesar de elevadas taxas de mortalidade mas isso é uma generalidade sem qualquer sentido se não for contextualizada. É verdade os ratos e as formigas, por muito que os matemos, continuam a ter populações crescentes. Mas os ratos e as formigas não são o grupo de vertebrados mais ameaçado do mundo!!

Terceiro, não me faça chorar de rir com disparates pouco dignos de si: "o mundo das probabilidades diz respeito à matemática, não diz respeito à biologia"?!? Caro, a teoria das probabilidades foi desenvolvida no âmbito da estatística mas o fenómeno das probabilidades diz respeito a praticamente tudo o que é observável. A extinção de uma espécie é um fenómeno probabilístico. Quantos mais factores contribuírem para a mortalidade menor as densidades populacionais, quanto menores as densidades menor a probabilidade de contacto entre indivíduos de sexo oposto, quanto menos contactos existirem entre indivíduos de sexo oposto menor a fecundidade, quanto menos a fecundidade (e mantendo-se uma mortalidade elevada) maior a probabilidade de, na sequência do "random walk", os últimos exemplares de uma população desaparecerem. Isto é elementar e não há retórica que dê a volta a isto. Quer provas no caso dos sapos de Évora? Geralmente não as há até que as populações desaparecem. É desse tipo de provas que está à espera para mudar de opinião e retratar-se das palermices que diz no post?

Paulo Barros disse...

Alguém sabe de algum artigo que mostre a evolução temporal dos efectivos populacionais em zonas de elevada mortalidade de anfíbios.