terça-feira, julho 13, 2010

L'État c'est moi

Lembrei-me desta frase, atribuída a Luís XIV, aparentemente sem razão, ao ler o Regulamento de Gestão do Fundo para a Conservação da Natureza e da Biodiversidade publicado hoje.
O fundo tem algumas coisas no sentido certo, por exemplo, a proibição do ICNB ser seu beneficiário, e tem bastantes coisas no sentido errado.
O modelo de gestão é unipessoal.
Tudo passa pelo director do fundo, por inerência o Presidente do ICNB, como elaborar o plano de actividades, autorizar abertura de concursos, analisar as propostas a concursos, submeter à tutela as decisões sobre a atribuição ou recusa do de apoios, acompanhar, avaliar e controlar os projectos apoiados, até esta coisa extraordinária: "2 — Os resultados obtidos com a implementação de todos os projectos, investimentos e acções apoiadas devem ser obrigatoriamente apresentados ao director do Fundo previamente à sua publicitação".
Embora o ICNB não possa ser beneficiário do Fundo, o resto do Estado pode, pelo que o resultado expectável não será melhor que o do Fundo Florestal Permanente, transformado em grande parte na fonte inesgotável de financiamento da paranóia dos fogos (aposto cem contra um como daqui a meia dúzia de anos esta paranóia, se entretanto não for temperada por um ano de fogos violentos que obrigue a repensar o sistema, estará a ser financiada pelo Fundo de conservação dentro das áreas protegidas, não através do ICNB, se a boa regra se mantiver, mas de juntas de freguesias, câmaras, bombeiros, associações várias).
O processo concursal para atribuição dos apoios não é obrigatório, existem lá uns protocolos, que dão suporte a umas parcerias, reservados ao Estado, associações e afins (não fosse alguma empresa ou proprietário de uma área importante para a conservação querer fazer uma parceria com o ICNB para produzir voluntariamente biodiversidade) que por decisão exclusiva do director do fundo (homologada pela tutela, que é preciso dividir responsabilidades sem perder o controlo da coisa) podem ser feitos sem concurso nenhum (mais uma vez a história do Fundo Florestal Permanente é a este título notável).
A comissão de 3% para o ICNB gerir o fundo parece razoável, mas se existe esta fonte de suporte para a gestão não percebo porque não se adoptou um modelo de gestão efectivamente independente e autónomo, mas isso sou eu, um perigoso liberal a pensar. E sendo assim, também não percebo a previsão de mais um ordenado para um gestor do fundo, que está fora destes 3%.
Penso que o artigo 13º do fundo traduz bem a postura ideológica em que assenta este regulamento. Este artigo tem um título: "Publicitação dos apoios". Qualquer pessoa normal, mesmo não conhecendo a convenção de Aarhus (a meu ver evidentemente violada por este regulamento) pensará que um artigo com este título serve para criar uma obrigação de transparência na gestão do fundo, obrigando à publicitação dos apoios prestados. Engano, meus caros, o artigo serve para criar nos beneficiários a obrigação de publicitação do apoio dado pelo Fundo, usando o logótipo do Fundo (a aprovar pelo Director, by the way), mas com a ressalva do seu número 2, que já citei acima, de que os resultados passam previamente pelo director do fundo.
Talvez no artigo 16º, sobre Acompanhamento e controlo, se estabeleçam os mecanismos de transparência e escrutínio público que seriam normais na gestão de um fundo financeiro público, sobretudo quando os seus orgãos de gestão se resumem a um director, sem intervenção de rigorosamente mais ninguém a não ser pessoas por si nomeadas. Engano, vós não conheceis a natureza da coisa no que toca a dinheiro. O acompanhamento e controlo a que o artigo diz respeito é o acompanhamento e controlo dos beneficiários, sujeitos a acções de acompanhamento, controlo e auditoria, "a realizar pelo director do Fundo ou por entidade designada para o efeito", para citar directamente o texto do regulamento. Os beneficiários têm de apresentar relatórios de execução, o que é razoável, mas curiosamente a gestão do fundo não.
Relatórios de gestão obrigatórios, publicitação das decisões, acompanhamento público? Minudências a que o regulamento não se dedica.
Saí do ICNB sem gosto quando percebi, felizmente cedo, que uma cortina de ferro se iria abater sobre a sua gestão.
Infelizmente cada tiro, cada melro, confirmando uma mentalidade pré 25 de Abril na gestão da coisa pública. Preferia ter-me enganado.
É caso para usar a velha frase anarquista: e quem nos defende dos polícias?
As ONGAs, claro, tinha-me esquecido de como têm estado atentas e activas em relação a este modelo de gestão cada vez mais fechado, obscuro e sem qualquer relação com prioridades reais de conservação da biodiversidade.
henrique pereira dos santos

1 comentário:

Ricardo Ramalho disse...

Gostei particularmente da alusão ao "Processo" do Kafka. É que realmente com esta realidade em que nos encontramos, e com a redundância dos controlos dos fundos e da gestão dos interesses públicos ficamos desprovidos de qualquer vontade de lutar contra o sistema...É o que diz o ditado e bem, "o que nasce torto não mais se endireita"!