domingo, agosto 15, 2010

Conversa de café em salão de chá

Raramente compro o Expresso. Mas ontem fi-lo e percebi, pela enésima vez, por que razão raramente o compro.
Um dos temas de fundo eram os fogos: uma reportagem, um editorial e um comentário de Fernando Madrinha. Os criminosos dos incendiários, a mais inútil maneira de discutir o assunto, era a trave mestra de todos os textos.
Comento aqui partes do texto de Fernando Madrinha porque é exemplar de como a conversa de café sobre fogos ganha facilmente carta de alforria para se passear em salões que a caucionam como coisa intelectualmente aceitável.
O texto chama-se "O fogo e o crime".
Tem por isso a vantagem de não enganar ninguém ao dizer logo ao que vem.
"Não se sabe quantos são ateados com intenção criminosa, embora suceda, como sempre, que muitos deflagram em vários pontos simultaneamente o que, só por si, indicia crime organizado".
O esplendor da conversa de café reflecte-se nesta frase. Fernando Madrinha esquece-se que a sua ideia de que muitos fogos deflagram em pontos simultâneos é de fontes de maneira geral muito pouco fiáveis (por exemplo, bombeiros em stress de combate ao fogo), esquece-se que as condições de propagação do fogo tem padrões locais muito marcados, o que facilita a ocorrência de fogos na mesma altura em locais muito próximos e esquece-se, finalmente, que um fogo que deflagra, mesmo em fase iniciais, pode provocar projecções de material incandescente que criam novos focos na proximidade. E esquecendo tudo isso tira uma conclusão definitiva cuja fundamentação é, na realidade, nenhuma. Mas vai mais longe e fala em criminalidade organizada, coisa que nenhuma investigação sobre fogos até hoje detectou. E nem se percebe para que é preciso organização para um indivíduo que queira deitar fogo num lado qualquer o faça em vários pontos com intervalos de poucos minutos. Ou seja, a ideia de crime organizado não está suportada em lado nenhum e a fundamentação apresentada é pueril.
"Metade que sejam os fogos postos - e basta ouvir os bombeiros para se perceber que esta é uma avaliação por defeito -". Um jornalista experimentado acha que bombeiros em stress de combate ao fogo são uma fonte mais fiável que a investigação específica e racional do fenómeno? Pelos vistos acha, o que é extraordinário. Provavelmente também acha que os taxistas são uma fonte muito mais fiável para discutir a criminalidade urbana que a investigação especializada.
Depois faz umas contas verdadeiramente delirantes: "teremos 3320 [fogos criminosos] em 20 dias. Agora repare-se: as autoridades detiveram 10 suspeitos, alguns deles já seus conhecidos. Cinco foram mandados em paz. Serão os outros cinco os autores dos 3320 fogos espalhados por dois terços do território nacional? Claro que não. Falta prender muito criminoso. E falta, sobretudo, descobrir os seus mandantes."
Insisto, isto que transcrevi não vem de um anónimo da caixa de comentários de um blog ou jornal, é mesmo escrito por um jornalista experiente e supostamente informado.
É só por isso que vou perder tempo a desmontar este parágrafo sem a menor aderência à realidade.
A teoria da conspiração mais básica começa na existência de uns mandantes que não se identificam, cujo móbil credível ninguém percebe qual seja e de cuja existência nunca nenhuma investigação séria identificou o mínimo traço. É exactamente assim que se discute futebol em qualquer tasco do país, mas com a vantagem de que todos sabem que ninguém está verdadeiramente a falar a sério. Depois fala-se em dois terços do país a arder quando o que está a arder é apenas uma faixa oblíqua entre Guarda e Coimbra e que exclui grande parte de trás-os-montes. Depois ignora-se esta diferenciação regional que deita por terra a teoria dos incendiários (ou será que se deslocam em grupo de uns anos para os outros, onde vai ardendo em diferentes regiões de acordo com diferentes condições meteorológicas?). E perante o absurdo de ter 3220 fogos para cinco incendiários em vez de concluir o óbvio, que é preciso procurar a explicação das ignições noutro lado, Fernando Madrinha força uma teoria conspirativa, que implica que há centenas de incendiàrios à solta associados numa ou várias organizações, teoria essa sempre desmentida pelas investigações e bem caracterizada neste post de Helena Matos, que se esqueceu das famosas teorias de Armando Vara, quando responsável pela área, que teimava em dizer que ardia sempre que havia eleições.
Por fim, o pormenor do costume: "velhíssimos fatores de desleixo - matas por limpar...".
É curioso como alguém que tem obrigação de ter um mínimo de informação engole a ideia de que os proprietários são desleixados com as matas e deixam-nas por limpar só porque sim.
Mas quem vê os fogos como um caso de polícia é natural que nunca tenha pensado na economia associada à gestão de combustíveis.
Por isso é natural que adopte uma conversa de café sem qualquer consistência e nenhuma aderência à realidade.
O grave disto é que este modelo mental está por todo o lado (é tão apelativo, tão fácil e tão desresponsabilizante), e já hoje é o Público a ceder à central de comunicação do Governo e a repetir que as condições são semelhantes às de 2003, concluindo que foi feito um grande trabalho que pode não ser perfeito mas que agora o que é preciso é aprofundá-lo (note-se bem como o conteúdo geral, incluindo do editorial do Público, é semelhante ao que um adjunto do Governo aqui disse nos comentários a este post há alguns dias. Quer isto dizer que foi o Governo que escreveu a peça do Público? Não, evidentemente, quer simplesmente dizer que o Governo definiu muito bem a linha de comunicação, todos os ministros a seguiram à risca, e que por muitas vezes repetida ganhou uma credibilidade insuspeitada. Apesar dos índices usados dizerem que 2003 foi um ano mau, mas nem foi o pior, o que diz bastante da sua aderência à realidade, para efeitos de identificação da dificuldade de extinção dos fogos, não nego a sua utilidade para outras utilizações).
Ou seja, para sairmos de onde estamos em matéria de fogos, a receita é melhorar a eficácia do combate e convencer as pessoas a fazer menos ignições, que é, de acordo com o que o Público diz que o Paulo Fernandes diz, o que está a resultar no Pinhal Interior.
Claro que quando vier um vento de Leste e o Pinhal Interior arder que nem um fósforo já ninguém se lembrará da lamentável peça feita hoje pelo Público e por Mariana Oliveira.
É que mesmo que tudo o que dizem fosse verdade, a supressão do fogo é a receita para o desastre.
É bom que quando ele vier, e um dia virá, volto a dizer, este ano é uma brincadeira de crianças comparado com o que acontecerá com uma semana de vento Leste típico (esta madrugada havia humidades atmosféricas acima dos 90% na área que tem estado a arder, mais que suficiente para que os combustiveis finos adquiram baixa combustibilidade por algumas horas, permitindo controlar os fogos quase todos com relativa facilidade), os senhores jornalistas responsabilizem quem quiserem entre os políticos, mas não se esqueçam das suas responsabilidades na criação de um ambiente favorável à adopção de políticas erradas.
henrique pereira dos santos

1 comentário:

Gonçalo Rosa disse...

Henrique,
Vale a pena dar uma olhada na crónica de Luís Ferreira Lopes, editor de Ecxonomia da SIC, disponível em:

http://sic.sapo.pt/online/noticias/opiniao/Incendios+e+bermas.htm

Tem pontos que certamente discordará, mas a virtude de centrar o problema no item menos sexy: o ordenamento do território.
Gonçalo Rosa