A análise do discurso oficial sobre fogos (e convenhamos, também do não oficial dominante, quer venha da oposição, quer venha nos jornais) ajuda a compreender por que razão não há esperança de resolver satisfatoriamente o problema da gestão do fogo em Portugal nos próximos tempos (coisa que de resto não tem nada com a tolice do "Portugal sem fogos depende de todos").
Vai ser preciso esperar por um novo óbvio ululante como o de 2003 para haver espaço político, social e mediático para redefinir outra vez o problema (esperemos que desta vez melhor que da última).
O último relatório provisório sobre fogos diz no seu sumário executivo: "A área ardida até à data (31 de Agosto) é inferior em cinco dos dez anos da última década (2000, 2002, 2003, 2004 e 2005) no período homólogo, num contexto de agravamento continuado do risco meteorológico de incêndio florestal durante este mês e que, neste momento, posiciona o ano de 2010 apenas abaixo de 2005."
Estou como o outro: não gosto de ser tomado por estúpido, é uma coisa que me chateia. O erro de Português dou-o de barato. Como é evidente para quem consultar o relatório a frase deveria ser "inferior à de cinco" e não "inferior em cinco", não é pois o português que me dá esta sensação de estar a ser tomado por parvo.
Qualquer pessoa que alguma vez se tenha debruçado sobre o assunto sabe que as condições meteorológicas em 2003 foram de risco máximo de incêndio (quase quinze dias de vento seco e forte), sem paralelo em qualquer outro ano para que existem registos. Pois apesar disso, o Instituto Meteorológico ou a AFN ou lá quem é, continua a insistir na ideia de que este ano é o pior meteorológicamente falando, só ultrapassado em 2005. Com base em quê? Num índice que diz que 2003 não foi assim um ano tão mau. É apenas o quinto ano em severidade meteorológica medida da forma escolhida pelos relatórios da AFN (2005, 2010, 2006 e 2004 são, por esta ordem, anos meteorologicamente piores que 2003, de acordo com este maravilhoso índice).
Mas vamos admitir que o burro sou eu e que sim, a realidade é um pormenor e o que verdadeiramente deve balizar o que fazemos é o tal índice que diz que 2003 foi um ano meteorologicamente médio do ponto de vista do risco de incêndio.
Em 2005 tinham ardido nesta altura 301 mil hectares, em 2010 (este ano) 105 mil, em 2006, 70 mil, em 2004, 115 mil, em números redondos. Conclusão possível, usando a lógica do parágrafo citado: de 2006 para cá o desempenho piorou.
É isto que me irrita, a esperteza de quererem usar lógicas diferentes em cada momento de análise e esperarem que as pessoas não reparem que no parágrafo citado bastaria acrescentar no fim, " e logo acima de 2006" para que todo o parágrafo passasse de um elogio ao desempenho para uma acusação evidente, sempre usando meias verdades.
Toda a informação produzida segue a lógica da propaganda e não a lógica da caracterização objectiva dos problemas. Como dizia um director de comunicação de uma grande empresa, na publicidade competente não se mente, mas isso não quer dizer que se diga tudo o que se sabe.
Por isso este ano se deixou de fazer comparações com o objectivo estabelecido no programa da Defesa da Floresta contra Incêndios, como se fez nos últimos anos, ou seja, 100 000 hectares ardidos anualmente, para passar a usar de novo a média dos últimos dez anos (123 000 hectares em período homólogo, 150 mil se no ano inteiro).
É claro que a escolha da média dos últimos dez anos também não é inocente: passou-se de cinco para dez anos quando 2003 ia sair da média rolante, mas não mais de dez (apesar de haver dados) para que os anos excepcionais de 2003 e 2005 não se diluam mais. Bastaria usar a mediana em vez da média, para diluir o peso dos extremos, opção perfeitamente razoável face a fenómenos de grande irregularidade, para concluir que os valores deste ano, em período homólogo, são 15 mil hectares acima da mediana dos últimos dez anos.
Mas como o ano ainda não acabou e não se sabe o que nos reserva o Outono, o Governo e a Administração já preparam um novo bode expiatório: as ignições nocturnas como demonstração de uma intensa actividade de fogo posto. Até se mudou o quadro das estatísticas da página da protecção civil para explicar melhor isto.
O resultado é este:
Por mais voltas que se dêem, as ignições nocturnas andam no essencial entre as 30 e 40% do total diário, qualquer que seja o número de fogos do dia (com desfasamentos pontuais em alguns dias, provavelmente por alteração das condições meteorológicas a meio do dia. Convém lembrar que as ignições nocturnas apanham dois períodos distintos de duas noites consecutivas, separados portanto por um dia inteiro, e não o conjunto de uma noite). Ou os incendiários coordenam muito bem a sua actividade, ou a meteorologia é que explica as variações e essa conversa dos fogos postos serve apenas para tapar o sol com uma peneira.
E o essencial permanece: o dispositivo de combate custa agora três vezes o que custava em 2005, aparentemente funciona muito melhor no ataque inicial e talvez no combate demorado, mas os resultados são essencialmente os mesmos: de acordo com as condições meteorológicas (que foram dificeis, mas não excepcionais, este ano) arde o que sempre ardeu.
Apesar disso tenho lido declarações de reforço dos meios. A Ministra do Ambiente diz que vai reforçar os meios do ICNB em matéria de fogos e eu deito as mãos à cabeça: com tanto problema sério de conservação e gestão das áreas protegidas ainda se vai concentrar mais os recursos numa matéria que, do ponto de vista de conservação dos recursos naturais, é marginal? Deus nos acuda e defenda das almas bem intencionadas que não estudam suficientemente os problemas com mais de duas incógnitas.
Por mim já tinha concluído há muito mas este ano foi uma boa demonstração: é tempo de procurar a solução noutro lado que não o reforço do dispositivo de combate.
henrique pereira dos santos
3 comentários:
Artigo magnífico e bem demonstrativo da verdadeira campanha de propaganda que foi feita por este governo para atirar areia para os olhos da população.
Magnífico! Parabéns!
Cumprimentos!
Completamente de acordo nos pressupostos da análise e na conclusão.
PS: Onde param os relatórios de execução do programa "escola na natureza " ?
Obrigado.
MR
Caro Manuel Rocha,
Tem de dirigir a pergunta do PS ao ICNB, eu já lá não estou. Tenho mesmo a convicção de que alguns projectos em que em empenhei ou perderam velocidade ou jazem inertes. Isso não é necessariamente mau, podiam ser maus projectos e foram substituídos com certeza por outros melhores.
henrique pereira dos santos
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