terça-feira, dezembro 28, 2010

O princípio do utilizador pagador e o dinheiro público

A propósito do efeito económico positivo das touradas na conservação de ecossistemas relevantes para a prestação de serviços ambientais, ou a propósito da recente discussão sobre o financiamento do ensino privado pelo Estado, encontro sempre a mesma questão: por que razão devem os impostos dos mais pobres financiar a prestação de serviços individuais aos mais ricos?
Na verdade a questão é um dos fundamentos teóricos mais esquecidos do movimento ambientalista: o pagamento pela utilização de bens (públicos ou privados) é sempre um forte estímulo ao seu uso racional.
Chama-se a isto o princípio do utilizador-pagador.
Nesta querela sobre o financiamento público de escolas privadas (nem vou discutir a querela religiosa que lhe resolveram acoplar, de tal maneira fico envergonhado por ser de um país que por duas vezes na sua história destruiu o melhor do ensino que tinha com base nessa mesma querela religiosa e que hoje parece não ter aprendido nada com as duas expulsões dos Jesuítas e a destruição das melhores escolas do país de então) há um conjunto de pessoas que pura e simplesmente acham que o ensino deve ser gratuito, como se existissem almoços grátis.
Na verdade não existe ensino gratuito, existe sim ensino pago pelos contribuintes e pagos pelos seus utentes, mas em qualquer caso é sempre um ensino pago. Ora o dinheiro público inclui o dinheiro dos impostos dos mais pobres e é por isso da maior exigência ética no seu uso (João César das Neves tem razão neste particular).
Argumentar que o ensino deve ser gratuito para todos os seus utentes é forçosamente admitir que o dinheiro que exigimos de todos, incluindo os mais pobres, deve ser usado num investimento com efeitos individuais muito concretos (a educação não é um bem abstracto ou difuso, é um benefício concreto para as pessoas concretas que o recebem), mesmo para aqueles que poderiam pagar esse serviço. O que deve ser discutido é a forma como o Estado garante um acesso universal à educação, mesmo para aqueles que não podem pagar esse serviço que lhe é prestado.
O projecto escola na natureza (Deus o tenha em sua companhia) é um bom exemplo da forma como a ideia de gratuidade de serviços públicos conduz a lógicas perversas ineficientes.
Quando na altura se resolveu desfazer o imbróglio em que tinha mergulhado a execução do projecto escola na natureza, optou-se por uma abordagem economicamente sustentável.
O que implicaria o pagamento dos serviços de alojamento, transporte e alimentação por parte das famílias dos miúdos participantes no programa.
Sabendo isso todo o esforço foi posto na redução desses custos, por várias vias, e o preço anual para a família era bastante moderado para uma participação de duas noites, quatro refeições e transporte.
O Ministério da Educação imediatamente se colocou fora do projecto porque não era gratuito. Não se dispôs a pagar as despesas mas recusava-se a participar num programa que violava o princípio da gratuididade do ensino.
Por mais que se explicasse que a opção não era entre o projecto ser pago pelas famílias ou pelo Estado, porque nenhum dos organismos do Estado tinha 10 milhões de euros por ano para o programa, mas sim entre haver o programa voluntariamente pago pelos seus beneficiários (com uma situação excepcional para os beneficiários do apoio escolar) ou não haver programa nenhum, nada fez demover o Ministério da Educação da sua posição de princípio, mesmo sabendo que muitos e muitos meninos com famílias que podiam pagar iriam criar rendimentos e trabalho para zonas economicamente deprimidas.
O programa jaz morto e arrefece, não tendo criado mercado para as estruturas de alojamento existentes no interior (e hoje sub-utilizadas), para os produtores de refeições, para os produtores de serviços e ainda para os fornecedores dos produtores de refeições, que se poderia ir dirigindo no sentido de serem produtores locais com mais valias de biodiversidade.
O exemplo serve para a factura energética (com o movimento ambientalista adormecido face aos preços administrativamente deprimidos da electricidade, nomeadamente para as empresas) ou qualquer outro bem ou serviço.
Hoje parece absurdo, mas quando em 1997 se determinou que todas as visitas às áreas protegidas teriam de ser pagas (incluindo as das escolas) foi um clamor enorme, com direito a notícias de jornal, sem que nenhum dos opositores a esse pagamento explicasse por que razão deveria estar o ICNB a desviar verbas dos programas de conservação para a visitação de pessoas que na sua maioria poderiam pagar esse serviço.
Substituir actividades económicas por pagamentos do Estado (isto é, também com o dinheiro dos mais pobres) é uma má solução, de maneira geral.
Seria bom que se percebesse em toda a sua extensão o princípio do utilizador-pagador, cuja aplicação razoável e sensata diminuiu em 50% o uso de sacos de plástico no Pingo Doce, só para dar um exemplo caro ao movimento ambientalista.
É que na área da gestão das áreas protegidas sempre que se pretende usar este princípio base parece que alguém está a cometer um sacrilégio, porque prevalece a ideia que área protegida quer dizer área necessariamente financiada pelo dinheiro público, em todas as suas actividades, mesmo naquelas em que é possível materializar o princípio do utilizador pagador, como a visitação, a fotografia de natureza, a prestação de serviços na emissão de licenças e por aí fora.
henrique pereira dos santos

5 comentários:

João Paulo Magalhães disse...

De facto, o utilizador-pagador, e de forma mais geral, o meio da propriedade privada ou do mercado livre são modos eficientes de ter um ambiente mais são. Creio que
este artigo lhe pode interessar - nem que seja para discordar.

João Paulo Magalhães disse...

Este artigo também.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Oa artigos são interessantes, se bem que a agenda ambiental global seja ligeiramente diferente da agenda da conservação da biodiversidade, mais localista e com menos posicionamento político definido.
henrique pereira dos santos

Luís Lavoura disse...

"a educação não é um bem abstracto ou difuso"

Não posso concordar com isto.

A educação, sobretudo a básica, é um bem, não apenas para aqueles que a recebem, mas para a sociedade no seu conjunto.

Aliás, é em parte por isso mesmo que essa educação básica é obrigatória.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Luís,
Tqambém os elevados rendimentos são um bem não só para quem os recebe mas para toda a sociedade, e não é por isso que passam a ser bens abstractos e difusos. São bens concretos que dão vantagens competitivas a quem os tem. A razão pela qual a educação básica é obrigatória é porque o acesso a esse bem não deve ser impedido numa idade em que os beneficiários ainda não podem defender esse seu direito.
Não há nenhuma incompatibilidade em os bens serem concretos e individuais e, ao mesmo tempo, serem benáeficos para a sociedade como um todo.
henrique pereira dos santos