quinta-feira, março 24, 2011

O paraíso natural de Chernobyl

Já por várias vezes tenho referido a extraordinária recuperação natural da zona de exclusão de Chernobyl.
Isso foi até usado num comentário pró-nuclear como sendo a demonstração de que a radiação não é um problema de maior (dentro da linha de argumentação pró-nuclear que pretende apenas reduzir afectação a morte por radiação directa, uma desonestidade imensa).
A recuperação que está a transformar a zona de exclusão de Chernobyl num paraíso para a conservação, sendo um facto e um facto positivo para a conservação, carece de alguns comentários de enquadramento.
O primeiro é o de que recuperação de sistemas e afectação de indivíduos (tal como nos impactos dos eólicos nas aves, tal como a caça, tal como os fogos) são duas coisas totalmente distintas. Os sistemas estão a recuperar do ponto de vista natural ao mesmo tempo que muitos indivíduos têm mal-formações e outros tipos de afectação. Se estas mal-formações ou afectações várias em indivíduos de raposa, lobo, urso ou outra espécie qualquer, são-me iguais ao litro, já a afectação de pessoas não é. Esta é uma distinção essencial.
O segundo comentário prende-se com a tolice de se pretender medir a afectação com base nos dois mortos por exposição directa a radiações muito elevadas num pequeno espaço de tempo. Chernobyl criou cerca de duzentos mil refugiados e destruiu (não no sentido físico, mas no sentido social) quase duzentas comunidades hoje quase desertas (algumas pessoas voltaram, as crianças estão proibidas). Estamos pois longe de poder medir a afectação provocada por Chernobyl às pessoas que comprovadamente morreram por exposição a elevados níveis de radiações num curto espaço de tempo. Este foi o preço da criação do paraíso natural. Dizer que existe um paraíso natural como benefício marginal de um prejuízo maior não pode ser entendido como inexistência ou minimização do prejuízo.
O terceiro comentário é sobre um aspecto em que a argumentação pró-nuclear está cheia de razão: a radiação não cria desertos por centenas de anos, nem pode ser confundida com um processo destrutivo. É um processo transformador, com ganhadores e perdedores. Os sistemas naturais absorvem bem os efeitos da radiação, os indivíduos é que são o problema. Ou mais precisamente, o risco para os indivíduos é que é um problema. É no passo seguinte que a argumentação pró-nuclear perde o pé: pretende reduzir este risco e as suas consequências sociais, a meras questões estatísticas, desvalorizando os indivíduos em concreto (mesmo que estatisticamente irrelevantes) e desvalorizando o medo social de uma ameaça invisível, inodora, incolor de que é difícil alguém defender-se por si só. Esta desvalorização atira sempre este medo para o domínio da irracionalidade, mas tendo, como tem, componentes de irracionalidade, o facto é que é tudo menos irracional.
O quarto comentário é uma evidência: as consequências para o património natural de um acidente como Chernobyl são incomparavelmente mais pequenas que o uso quotidiano que fazemos desse património natural em actividades aparentemente tão pouco impactantes como a agricultura, a exploração florestal e a pastorícia.
Se me perguntarem se no futuro a zona de exclusão de Chernobyl deve voltar ao que foi antes do acidente eu tenderei a dizer que não, que estando os custos da exclusão já saldados, mais vale reter a mais-valia de uma enorme área de não gestão, como tem defendido o Miguel Araújo, inicialmente com a minha oposição, hoje com a minha concordância (divergências existem no modo, tempo e lugar como, mas para aqui isso é irrelevante).
henrique pereira dos santos

1 comentário:

JKL disse...

Há uns tempos atrás, num documentário "O mundo depois de nós" creio que no canal História, referiram exactamente Chernobyl como exemplo. E a conclusão foi tão simples quanto isto: o impacto de um acidente nuclear foi menos devastador para o meio-ambiente do que a acção humana continuada.
Claro e conciso.