sexta-feira, junho 17, 2011

Ciência e ideologia



Este post é dedicado aos meus amigos conservacionistas que me fazem lembrar o genial pessimista que definiu a vida como sendo uma doença sexualmente transmissível, sempre fatal.

Diz Alexandre Vaz num seu comentário ao post anterior: "A extinção ou redução crítica de populações de animais selvagens em consequência da actividade cinegética está bastante bem documentada. O caso do Ectopistes migratorius é um bom exemplo.".
É bem possível que o Alexandre tenha razão.
Simplesmente eu tenho dúvidas. Dúvidas, não certezas.
A situação deste pombo cai numa das poucas situações em que admiti explicitamente, no post anterior, que a caça pudesse ter um efeito relevante na extinção ("Mesmo em situações de abate indiscriminado e em massa, como aconteceu com os bisontes americanos, seria uma longa e difícil discussão saber se foi esse factor que quase levou à extinção da espécie ou sobretudo a alteração profunda da forma de exploração das pradarias americanas.", digo eu depois de antes ter identificado a chegada de uma nova população tecnologicamente evoluída a um novo sítio como uma das poucas situações em que a caça pode ser um factor relevante de extinção).
Isso não desarma a argumentação militante sobre a relação da caça com a extinção das espécies por uma razão simples: essa argumentação militante é mais ideológica que científica, e por isso a racionalidade da discussão é-lhe estranha.
Parece razoável admitir que o último bando de 250 000 pombos tenha sido dizimado pelos caçadores, sabendo que era o último bando, e não tenha sobrado nada para semente? Sim, eu sei que existe a questão da colonialidade, mas veremos este argumento à frente.
As minhas dúvidas sobre isto têm eco no artigo da wikipedia sobre este pombo. Vale a pena lê-lo despido de preconceitos e seguindo as fontes indicadas no artigo.
Será que uma frase destas "The extinction of the passenger pigeon is a poignant example of what happens when the interests of man clash with the interests of nature.", que não é da wikipedia mas de uma fonte de credibilidade indisputada, o smithsonian institute, pode ser lida como ciência e não como ideologia? Existe "o interesse da natureza", ou o que se pretende definir como o interesse da natureza é apenas um dos vários interesses do homem? É a discussão sobre esta pergunta uma discussão científica?
No excelente artigo da enciclopedia Smithsonian de que retirei a frase acima, verifica-se que a principal área de criação do pombo era a região dos grandes lagos, a este de Nova Yorque, ou seja, o coração industrial dos EUA do século XX e em grande parte integrando o famoso corn belt americano, sujeita a uma profunda alteração de paisagem ao longo de todo o século XIX e XX, em particular com um surto de desenvolvimento brutal após a guerra civil, exactamente o período da queda brusca no número de pombos.
"The interests of civilization, with its forest clearing and farming, were diametrically opposed to the interests of the birds which needed the huge forests to survive. The passenger pigeons could not adapt themselves to existing in small flocks. When their interests clashed with the interests of man, civilization prevailed. The wanton slaughter of the birds only sped up the process of extinction. The converting of forests to farmland would have eventually doomed the passenger pigeon."
A síntese feita pelo departamento de zoologia do museu nacional de história natural dos Estados Unidos da América parece longe da afirmação claramente ideológica do Alexandre Vaz. Tal como eu suspeitava (por razões que se prendem mais com as dinâmicas da paisagem que outras quaisquer, matéria a que grande parte da escola conservacionista portuguesa se mantém militantemente relapsa) o problema central é a alteração de habitat. É certo que essa alteração, se não fosse acompanhada pela matança desregrada dos pombos (evidentemente não se pode chamar caça à utilização de métodos como fumigações nas zonas de nidificação para os pássaros cairem tontos e serem apanhados), talvez, sublinho o talvez, tivesse permitido a não extinção do pombo.
Mas não se deve confundir a possibilidade de um elemento complementar da dinâmica das espécies (cuja eficácia no abate dos animais é aliás muito, muito aumentada pela concentração das áreas de nidificação a que a destruição das matas obriga) com a identificação da causa de extinção da espécie.
A causa é o arroteamento das imensas matas dos grandes lagos, o abate, mesmo que lhe queiram chamar caça, é simplesmente um elemento complementar do processo. E muito menos se deve, com base em distorções destas (a que se alude como sendo processos bem documentados, sabendo que pouca gente tem paciência e tempo para ir ler as fontes), eleger a caça como um problema de conservação que não é (para ser mais preciso, que de maneira geral, não é).
O problema é que muitos e muitos conservacionistas, muitos deles responsáveis nas suas organizações, estão mais emocionalmente ligados a argumentações simples que confirmam as suas convicções que à discussão racional de processos complexos.
Para além disso é muito mais difícil admitir que a extinção de espécies está muito mais relacionada com as opções alimentares das pessoas comuns (incluindo cada um de nós) que com uns energúmenos insensíveis que gostam de sangue (na cabidela o sangue é óptimo, mas umas morcelas também marcha bem) para quem é fácil passar responsabilidades que doutra maneira seriam nossas.

É tão prático quando é possível estabelecer uma fronteira moral entre os puros (nós) e os impuros (os outros, com frequência, nesta discussão, os caçadores)
Na verdade muitas destas discussões são mais do domínio da moral que da ciência.
henrique pereira dos santos

PS Não nasci caçador, não sou caçador e a caça pessoalmente interessa-me pouco. O que não estou disponível é para pactuar, ainda que seja só por estar calado, com a imposição de uma moral minoritária a terceiros, descartando um poderoso instrumento de gestão da biodiversidade, a pretexto de argumentos técnicos mal amanhados

12 comentários:

Anónimo disse...

Não vou discutir :)

Alexandre Vaz

Gonçalo Rosa disse...

Alexandre,

O "pensamento" dogmático casa mesmo muito mal com formas de pensar racionais, como tão bem exemplificas ;)

Por isso, tens toda a razão. Não (te) valerá mesmo a pena discutir.

Gonçalo Rosa

Henrique Pereira dos Santos disse...

Eu percebo Alexandre.
Se depois de ter dito: "A extinção ou redução crítica de populações de animais selvagens em consequência da actividade cinegética está bastante bem documentada. O caso do Ectopistes migratorius é um bom exemplo." o departamento de zoologia de vertebrados do museu nacional de história natural dos EUA me respondesse: "The interests of civilization, with its forest clearing and farming, were diametrically opposed to the interests of the birds which needed the huge forests to survive. The passenger pigeons could not adapt themselves to existing in small flocks. When their interests clashed with the interests of man, civilization prevailed. The wanton slaughter of the birds only sped up the process of extinction. The converting of forests to farmland would have eventually doomed the passenger pigeon." também provavelmente abandonaria a discussão.
A diferença é que provavelmente eu mudaria de opinião e admiti-lo-ia sem problema.
henrique pereira dos santos

Jaime Pinto disse...

Terá sido alguma vez a caça a exclusiva causa responsável pela extinção de espécies?

O Henrique acha que não. Algumas pessoas acham que sim. Eu também acho que não, apesar de localmente isso poder ter acontecido.

Mas suponho que o mais importante é saber se nos dias de hoje, com habitats fragmentados, estradas a chegar a todo o lado, meios fantásticos à disposição dos caçadores, isso poder ser ou não possível. Acho que poderia, caso os caçadores não estivessem sujeitos a milhentas regras que defendem as espécies, como é o caso.

Para além disso a mentalidade do caçador, na generalidade, evoluiu de forma inquestionável. Basta entrar-se nos fóruns de caça (abertos a todas as pessoas, já que assistir-se a discussões entre caçadores, nos clubes ou no campo será muito mais difícil) para se percepcionar as diferenças abismais entre hoje e há 30 anos atrás. Por ex., caçadores são absolutamente contra a caça da rola comum em Portugal, organizando petições nesse sentido. Outro ex: o governo, este ano, vai permitir estupidamente a caça aos melro. Pois muitos caçadores, talvez até a maioria, é contra. E por aí fora.

Não tenho a mínima dúvida que a caça, hoje em dia, é de uma forma geral saudável para as espécies selvagens, retirando os infelizes que calham levar com uma carga de chumbo.

Custa a engolir a muita gente o facto de ninguém como os caçadores gastar tanto dinheiro na preservação dos habitas e espécies. Talvez uma canja de perdiz ajude a digestão :-).

Rui Pedro Lérias disse...

Durante anos tive um ninho ocupado de águias de asa redonda mesmo em frente a um terreno onde vivo, perto da Arruda dos Vinhos. Em Outubro passado aconteceram duas coisas feitas por caçadores: um incêndio de uma zona de mato por cima da minha casa provocado por um engenho incendiário deixado - estou certo - por caçadores que ali andaram horas antes (o incêndio começou no exacto local onde tiveram e iniciou-se durante a noite); o aparecimento de vários nacos de carne e carcaças de coelho deixados à vista em cima de muros e postes e o consequente desaparecimento das águas de asa redonda que habitavam o ninho.

Sim, muitos caçadores mudaram muito. Mas os que não mudaram continuam a sentir-se profundamente impunes e com capacidade para pôr vida de pessoas em perigo e fazer 'controlo de predadores'.

É uma matriz muito complexa.

Anónimo disse...

Não, Henrique, não percebes. Os teus argumentos são falaciosos. As ciências naturais têm a particularidade de envolver tantas variáveis que isolar apenas uma se torna muitas vezes não apenas complicado, mas mesmo impossível... Ainda que seja possível encontrar extinções de espécies que nunca foram caçadas, duvido que seja possível encontrar extinções de espécies que foram caçadas mas sobre as quais não houve mais nenhuns constrangimentos decorrentes das actividades humanas.
Assim, a discussão sobre se o que matou os pombos foi a caça ou a destruição do habitat, ou a poluição o que quer que seja é uma discussão estéril se atendermos a essa abordagem mono-causal (a culpa é da caça ou não é?). Ainda assim é curiosa a leviandade com que dizes: "Parece razoável admitir que o último bando de 250 000 pombos tenha sido dizimado pelos caçadores..." como se de um pormenor se tratasse...

Mas eu não quero discutir porque não acredito que genuinamente estejas interessado em debater o assunto. Acho que sim que estás interessado numa vitória da retórica.

De qualquer das formas sugiro-te que consultes mais uma vez a Wikipédia e que vejas quais foram as causas da extinção do Pinguinus impennis (ou se preferires aqui mais perto da Cabra do Gerês).

Se preferires depois podemos largar os exemplos de aves e podemos passar aos ungulados...

Alexandre Vaz

Anónimo disse...

"Arabian Oryx were hunted to extinction in the wild by 1972. By 1980 the number of Arabian Oryx in captivity had increased to the point that reintroduction to the wild was started."

Alexandre Vaz

Anónimo disse...

"The Quagga went extinct because it was ruthless hunted down for meat and leather by South African farmers, also were they seen by the settlers as competitors, like other wild grass eating animals, for of their livestock, mainly sheep and goats."

Alexandre Vaz

Anónimo disse...

"Scimitar Oryx were hunted for their horns, almost to extinction. Where once they occupied the whole Sahara, they are now considered to be extinct in the wild, with no confirmed sightings in the wild for over 15 years."

Alexandre Vaz

Henrique Pereira dos Santos disse...

Rui Pedro,
O raciocínio sobre o fogo está muito difundido porque é muito lógico, mas atenção que pode laborar num erro que muda a visão das coisas: o incêndio pode começar no sítio onde estiveram os caçadores, pode começar de noite, várias horas depois de lá terem estado e ser simplesmente uma negligência. É que uma brasa deixada para trás pode estar horas por ali e de repente, por exemplo, numa virada do vento, frequentes à noite, encontrar condições de desenvolvimento e passar a ser um fogo. Daí a concluir-se que os caçadores provocaram um fogo para dar cabo de uma águia de ása redonda vai uma grande distância.
henrique

RioD'oiro disse...

http://fiel-inimigo.blogspot.com/2011/06/conservacionismo-ml.html

Anónimo disse...

Henrique, a história do fogo e da águia é diferente.
É verdade que os incêndios podem começar por negligência, e aceito que exista essa possibilidade. Mas o incêndio não foi por causa da águia (a águia sofreu pela 'plantação' de iscos envenenados, que até admito tivesse sido deixado para raposas). O incêndio teve como consequência a 'limpeza' de uma zona bastante fechada de carrasco, onde se abrigavam coelhos mas onde os caçadores não conseguiam entrar. É possível que tenha sido por negligência, mas tenho dúvidas face ao local e ao resultado.

Rui Pedro Lérias