A madrugada outoniça foi num rendilhado mimoso, mesmo que disfarçado pelas nódoas urbanísticas e os rasgões das infra-estruturas fora da escala minhota.
O ataque ao anfiteatro de alturas responsável pela omnipresença da água e pela diferença de cota que permite o mais intenso regadio do país faz diminuir gradualmente a presença de nódoas e rasgões, ao mesmo tempo que o rendilhado se vai afundando nos vales, mais nítido e localizado, e os cabeços e encostas acolhem melhor a escala das infra-estruturas que encolhem o território.
O planalto da Lameira (alô, alô, Ilídio de Araújo) é a primeira amostra daquela economia do milho de média montanha, em que os animais ganham peso e os carvalhais subsistem melhor, por falta de terra que estrumar.
E depois a montanha russa de uma das zonas mais interessantes do país, tão interessante como pouco visitada, ali naqueles vales e alturas que começando no Marão acabam no Barroso, num mar de prados de lima e pastagens pobres intercaladas com a produção da melhor batata que se pode produzir no país, e onde o rendilhado minhoto da economia do milho ressuscita a cada vale mais fundo.
O viaduto junto do qual não consigo passar sem me rir para dentro das várias histórias que provoca: depois das pessoas insultarem os responsáveis pela loucura daquela obra eu costumo explicar o meu papel na sua génese e de como são ínvios os caminhos da avaliação de impacte ambiental e da gestão da biodiversidade.
A partir daí, descendo para o vale fértil que o viaduto atravessa, é um mundo diferente que se abre e que se acentua à medida que se volta a subir à procura do vale seguinte que nunca mais chega, da aldeia seguinte que nunca mais aparece, dando sentido ao tributo de mãos de urso previsto em vários forais que D. Diniz outorga na região.
É no coração desta terra de pouca gente que me cruzo com uma das mais interessantes paisagens desse dia de Outono: os soutos, castinçais e que tais que rodeam a aldeia da Padrela, na suas cores de gala, nos amarelos vivos e castanhos encarnados que pelo dia fora irei encontrar várias vezes, mas não na forma daquela quase monocultura da Padrela.
Carrazeda (carrascal?) marca quase o fim desta paisagem e sem mais transição que uma encosta que se desce num repente entra-se num mundo de oliveiras e olivais, contínuos, sempre diferentes e sempre iguais.
O resto da manhã foi à volta da albufeira que iria suportar o regadio que traria a riqueza sem fim à região, o regadio demonstrou ser uma miragem difícil de alcançar, e mais ainda o desenvolvimento da agro-indústria que iria criar valor sobre valor.
Mas ficou o recreio, o turismo, a conservação, uma albufeira cuja escala ainda lhe permite ser bonita, cheia de meandros que cortam a tristeza habitual das albufeiras, em especial das albufeiras que suportam a produção de electricidade criando uma margem desolada e inóspita.
Meia posta, um esparregado de nabiças, um copo de vinho, uma empregada antipaticamente eficiente e dez euros depois, é tempo de retomar caminho, por esse outro mundo onde o trigo e o centeio já foram reis, onde rebanhos de ovelhas e cabras, mais ovelhas que cabras, se casavam com olivais, amendoais e figueirais, sem que se percan de vista castanheiros, carvalhos e prados de lima, quando a qualquer passo se sobe qualquer coisa na estrada.
Tudo isso é interrompido pela varanda de Trás-os-Montes, a serra de Bornes (alô, alô, Robert de Moura), que se flanqueia numa estrada meia desolada, meia bonita, a meia encosta, que se debruça quase sem aviso sobre o milagre do vale da Vilariça, terra rica, quente e plana, com alguma água, que antecede os vinhedos do Douro.
E depois, depois dos vinhedos do Douro, os planaltos da Beira fria, de caos de blocos de granito, com a sombra da Estrela por perto e, sim, com castanheiros aqui e ali, mas mais frequentemente o tom derrotado do castanho dos carvalhos no Outono, a aproveitar a trégua do gado e do centeio deste fim de século demasiado rico para perder energias a fazer das pedras pão.
Só nas raras encostas em que o Sol de fim de tarde apanha os carvalhos de costas é que o castanho mortiço das folhas quase a cair ganha alguma vivacidade.
É tarde para um desvio para pastéis em Vouzela, nesse Lafões que é uma espécie de Minho incrustado na paisagem beirã, mas vale o resto do dia, o consolo de comprovar, mais uma vez, que Portugal é um país muito bonito.
E mais que isso, é muito bonito de muitas maneiras diferentes.
henrique pereira dos santos
1 comentário:
Muito, muito bonito.
IsabelPS
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