domingo, dezembro 04, 2011

Acerca da fusão do ICNB com a AFN

Tenho estado algo surpreendido com o silêncio nos meios ambientais sobre a planeada fusão do ICNB com a AFN. Vejo essa fusão com alguma preocupação, não tanto pelo princípio, mas pela forma como aparenta estar a ser feita. Penso há algum tempo que haveria vantagens se a gestão das áreas protegidas pelo ICNB integrasse também as competências que estão atribuídas à AFN: gestão da caça, gestão da pesca e gestão da floresta. Em teoria esta fusão permitirá essa integração, embora vá bastante mais longe pois todo território passa a ser abrangido. Poderá também permitir aumentar os parcos recursos financeiros do ICNB com as fontes de receita própria da AFN (Fundo Florestal Permanente, taxas de caça, venda de madeiras, entre outros).
Quais são então os perigos dessa fusão? Penso que uma questão essencial é qual irá ser o grau de paridade das estruturas herdadas da AFN e do ICNB. A área principal de intervenção da AFN teve o seu auge há algumas décadas, e o declínio dos Serviços Florestais tem sido marcado: de uma organização com uma força policial própria e brigadas de sapadores próprios passou-se a uma organização reduzida essencialmente ao corpo técnico. Esta redução foi excessiva, e veio acentuar o problema da gestão dos baldios, devolvidos fora de tempo a populações cada vez menos rurais, mas penso que em parte era inevitável. As competências do Estado são hoje menos no sector da produção florestal e mais nos serviços de regulação da floresta e da proteção da biodiversidade. É em parte por isso que o ICNB (ou o SNPRCN e o ICN) teve uma ascensão meteórica em termos de importância na sociedade portuguesa nas décadas de 80 e 90. O ICNB representa o futuro e a AFN o passado, estando ainda à procura de um novo papel num país com apenas 2% de área florestal do Estado contra 40% de média europeia (um problema gravíssimo que em vez de despoletar iniciativas no sentido de aumentar a floresta do Estado parece passar ao lado de quem ainda quer entregar estes 2% a parcerias publico-privadas...).
Não tenho a certeza que quem nos governa tenha estas noções bem claras. E mais preocupado fiquei ao ouvir recentemente o Secretário de Estado das Florestas, Daniel Campelo. Deduzi do seu discurso que se pretende devolver a conservação da natureza aos seus guardiões: os proprietários florestais e os agricultores. Eu defendo realmente que devemos premiar os melhores gestores florestais e os melhores empresários agrícolas pelos serviços de ecossistema que prestam à sociedade. Mas daí a assentar toda a política de gestão da biodiversidade na premissa de que são eles os guardiões da biodiversidade vai uma grande distância.
Mais preocupado fiquei quando soube que a fusão do ICNB e da AFN pretende integrar as suas estruturas de gestão de Áreas Classificadas nas Direcções Regionais de Agricultura. Se a fusão do ICNB e a AFN tem os seus prós (gestão mais integrada da biodiversidade nas Áreas Classificadas) e contras (filosofias de gestão do território muito diferentes, união de duas instituições que não estão bem de saúde), não consigo antever grandes vantagens nessa amalgama que passariam a ser as Direções Regionais de Agricultura.
No limite corremos o risco de recuar várias décadas na gestão da biodiversidade em Portugal: no tempo em que os serviços ecossistémicos de regulação e de suporte são cada vez mais valorizados, diluímos a sua gestão em organizações, Agricultura e Florestas, que historicamente enfatizaram os aspetos de produção. Um dos papeis que eu temo ver menosprezado é o da Comunicação e Educação Ambiental. O Estado investiu milhões de Euros em centros de interpretação das áreas protegidas pelo país fora. O que vai acontecer à gestão desse centros é uma incógnita, mas espero que não se virem para promover uma imagem idílica das tradições rurais, como no mapa de imagens regionais de Amorim Girão da década de 1940. Esse tempo já lá vai.

Henrique Miguel Pereira

5 comentários:

G.E. disse...

Henrique,

Gostaria de deixar dois comentários ao teu post:

"um problema gravíssimo que em vez de despoletar iniciativas no sentido de aumentar a floresta do Estado parece passar ao lado de quem ainda quer entregar estes 2% a parcerias publico-privadas..."

Sinceramente não vejo qual é o problema de as florestas estarem nas mãos de privados. Há alguma evidência concreta de que as (poucas) florestas que estão na mão do Estado sejam mais bem geridas que as que estão nas mãos de privados? São um bom exemplo em matéria de gestão florestal e da biodiversidade?

"O Estado investiu milhões de Euros em centros de interpretação das áreas protegidas pelo país fora. O que vai acontecer à gestão desse centros é uma incógnita"

Pois é. E muitos desses centros (a maioria, creio), fecham ao fim-de-semana - que é precisamente a altura em que a sua utilidade seria maior em termos de promoção de biodiversidade e valores naturais, junto do grande público.

Nunca consegui compreender porque é que com os museus é possível ter um calendário adaptado à disponibilidade da maioria dos visitantes (os museus abrem ao fim-de-semana, encerrando à segunda-feira) e com os centros de interpretação isso parece não ser possível. Parte da utilidade desses centros de interpretação perde-se devido a este "horário de repartição pública"...

Gonçalo Elias

Henrique Miguel Pereira disse...

Gonçalo,

O problema é que o papel ambiental da floresta (e.g. serviços ecossistémicos de regulação e suporte) é melhor assegurado pelo Estado, pois os privados estão essencialmente interessados nos produtos florestais que têm mercado (e.g. madeira). O problema da baixíssima percentagem de floresta publica leva ainda a que acabemos por impor regras de conservação da natureza quase sempre em propriedades privadas.
Em relação aos centros de interpretação, o problema que levantas é extremamente pertinente. Em parte prende-se com a dificuldade de pagar subsídios de turnos a funcionários (desconheço se nos museus há algum regime de excepção). Nos Centros de Interpretação geridos por Camaras Municipais este problema não acontece com tanta frequência.

Henrique

Anónimo disse...

Alguns dos centros de interpretação de algumas áreas protegidas deveriam encerrar por questões de bem estar psicológico dos respectivos funcionários. Morre-se por lá de tédio.

Anónimo disse...

Apesar de em certas épocas do ano os visitantes serem poucos, os Centros de Interpretação recebem muitas visitas ao longo do ano.
Além disso, nas suas instalações funcionam os serviços administrativos, técnicos e de vigilância das áreas protegidas.
Ao longo do ano expõem diversas exposições e dão também apoio às populações locais, colaborando na divulgação do artesanato e dos produtos regionais.
No futuro poderão também dar apoio logístico a diversos serviços do MAMAOT, nomeadamente na área agrícola,desenvolvimento regional,florestal, e veterinária.

minha serra, minha terra disse...

Henrique,
A avaliar pelo número de comentários bem podes continuar surpreendido!
É coisa que também eu não compreendo. Poderíamos pensar que todos estão na expectativa de ver para crer, mas não, falar sobre o assunto é, neste momento, tabu.
Na verdade, não só estamos a atravessar um processo de empobrecimento (que compreendo e aceito) como também um retrocesso civilizacional de décadas.
Assumir políticas em prol da conservação da natureza e da biodiversidade na conjuntura actual é tanto quanto o que é possível visionar nas fotografias do cabeçalho do site do MAMAOT.
Luís.