quarta-feira, setembro 26, 2012

(Mais uma) Reflexão sobre o mundo rural

Em nome do Carlos Aguiar que se esqueceu dos códigos:
Nos últimos dez anos assisti, aqui no nordeste, a um lento, mas crescente, retorno à ruralidade. São o neto de agricultor, a segunda geração na cidade – ou o urbano desenraizado, regra geral reformado sem chegar aos sessenta, eventualmente mais jovem com um trabalho compatível, ou um cultor de estilos alternativos de vida com mesada garantida do pai. Muitos, influenciados pelo bucolismo queirosiano, pelos fundadores da ecologia profunda ou, simplesmente, enganados por recordações de juventude que o tempo branqueou e elevou a elemento identificador, venderam os haveres da cidade e desbarataram a poupança e a herança na restauração de uma casa esbarrocada. Os não herdeiros arriscaram uma compra às cegas, sobrevalorizada pela ânsia de ter, porque, nas aldeias, assim como não há mercado da terra, também o não há do barracão ou do palheiro.
A ilusão é fácil de resumir. Na grande cidade ninguém se conhece: cada um por si, dizem-me. Ensimesmadas, nos transportes públicos, as gentes pisam-se, resmungam, suam, e roçam-se com aspereza. A crise reprime, os grafitis oprimem. O susto do puxão, da faca de ponta e mola condiciona o comportamento. O progresso, a mais perigosa das ideias da modernidade, está em causa. Não há espaço, nem oportunidades. A cidade pesa. No campo, nada disso: resiste a liberdade da porta aberta e dos laços de vizinhança, a entre-ajuda, a troca direta, o bicho que vem comer à mão, as vistas largas, a floresta que se expande, e a horta, o símbolo maior da auto-suficiência, que liberta das volatilidades do mercado e das ameaças das depressão económica. No campo não é preciso ouvir notícias, e tomar decisões que determinam uma vida. Os dias fluem sem grandes oscilações, e sem perigo. Será?
Anteontem aprendi um conceito interessante: capital-social, assim se chama, ensinou-mo um amigo das sociologias. Embora não seja consensual – como raramente o é qualquer conceito de humanidades ou ecologia – será uma espécie de medida das interações (conexões) no interior de uma determinada rede social, por exemplo de uma comunidade de aldeia. Quanto maior o capital-social, quanto mais as pessoas interagirem umas com as outras, menor a desconfiança, a conflitualidade e a agressão, mais propício o ambiente social para a cooperação,  a troca comercial, o investimento, a inovação, o melhoramento e o bem-estar. Se o capital-social é isto, então as nossas aldeias estão socialmente descapitalizadas.
Nas aldeias do interior sobram os velhos e os desadaptados. Os poucos que praticam uma agricultura comercial têm muitas vezes as famílias na sede de concelho, e vivem demasiado ocupados para investir em laços sociais sem retorno. Ninguém depende de ninguém: o estado, apesar de tudo, oferece melhores cuidados na doença e a pensão cobre a utilidade da entre-ajuda. Os direitos de propriedade são cada vez mais difíceis de defender. Há pouca gente, mas os marcos movem-se. Desaparecem as cebolas na horta e as máquinas agrícolas no telheiro. Sucedem-se os roubos de habitações. Desaparece o ouro, a joia e a galinha. A GNR abalou para a vila e a insegurança apressa. O baldio, teimosamente regulado por uma lei que já em 1975 versava uma sociedade extinta, é devassado, diminuído e as suas rendas desaparecem sem rasto. O ressentimento, a desconfiança e o azedume acumulam-se. Crescem os conflitos com posses, confrontações e heranças. Quando não, explodem em crime. Os “novos colonizadores” ou vivem protegidos no seu pequeno grupo, isolados das tricas de aldeia, ou rapidamente amargam no arrependimento.
A sociedade camponesa exaltada pelos Jorges Dias acabou. Sobrou um pastiche meio cidade, meio campo, decadente, triste e improdutivo. Mas que ninguém se atreva a por em causa os direitos dos terratenentes ausentes (a maioria): do médico, do doutor em leis, do professor, do polícia ou do funcionário de repartição. A terra agrícola tem esta coisa: o abandono aumenta a sua fertilidade, e quanto menos lembrada menos impostos paga.  Depois o estado está sempre disponível para apagar os incêndios, a defender as elites e não faz perguntas.
A aldeia nasceu como uma unidade de autossuficiência, uma nave que sulcava o mar de pobreza e opressão que caracteriza as sociedades malthusianas. Nas sociedades industriais atuais a aldeia é um resíduo histórico, uma forma desatualizada de uso e ocupação do espaço. A pequena vila rodeada de uma constelação de explorações agrícolas, mais ou menos agregadas em comunidades de explorações agrícolas, prontas a responder aos sinais do mercado tem muito mais futuro, pelo menos no curto médio-prazo. As aldeias retêm ainda gente a mais, e estas políticas de transferências de recurso do litoral para as zonas de desfavorecidas do interior são contraproducentes, de tão ineficazes e ineficientes.
Carlos Aguiar

4 comentários:

aeloy disse...

Um post muito interessante, mas há também que referir novas tipologias de aldeias que se desenvovem em torno de um eixo externo, como livros, artesanatos, velharias, ou outros momentos tradicionais ou não, como enchidos ou queijos.
Bem sei que são, ainda muito poucas, mas talvez nessas articulações possamos ir empurrando o "apocalipse"...
AEloy

Nuno disse...

Conheci ainda este mês um presidente de junta que, em privado, falou de como prevê que todas as aldeias sob a sua freguesia desapareçam em 20 anos, a não ser que a sua esperança se concretize e os emigrados em França façam daqueles espaços o seu local de reforma, quando já não é sequer o local de férias para 3ªas e 4ªas gerações. Aucune chance..

Anónimo disse...

Verdade, com excepções obviamente, mas verdade.

Anónimo disse...

Não compreendi tanto azedume contra a aldeia, as suas gentes e os baldios. Uma forma de diluir o crescente mal-estar das massas citadinas, nestes tempos de crise, seria precisamente a solução aldeia. Conheço algumas pessoas que optaram por essa vida digna e austera e não estão arrependidas.