sábado, janeiro 02, 1999

O equilíbrio de Aldo Leopold

Aldo Leopold é uma referência fundamental. O seu livro “Sand County Almanac”, escrito em 1949, é, para o bom e para o mau, fonte de inspiração de muito do pensamento conservacionista contemporâneo. A sua escrita tem o condão suscitar a adesão de quem o lê. Quem não terá, algum dia, pensado algo de semelhante ao que Aldo escreve no último parágrafo da sua obra?

“We are remodeling the Allambra with a steam-shovel (= escavadora), and we are proud of our yardage. We shall hardly relinquish the shovel, which after all has many good points, but we are in need of gentler and more objective criteria for its successful use.” (p. 226)

Talvez o aspecto mais inovador da obra de Aldo tenha sido a conjugação de dois olhares num só: o olhar de um investigador da gestão da fauna silvestre e o olhar de um pensador sobre, o que ele próprio apelida de, a “ética da terra”. Aldo é percursor de um movimento que valoriza o espaço rural (e/ou natural) do ponto de vista de valores relacionados com o usufruto do espaço para o lazer, inspiração e sanidade mental (“amenity values”). O reconhecimento (e afirmação) destes valores são, no meu entender, um dos contributos mais marcantes da sua obra e uma das sementes para a atitude actual em conservação da natureza. Uma atitude marcadamente antropocêntrica.

Porém, “não à bela sem senão” e Aldo Leopold é - conjuntamente com Rachel Carston e muitos outros - percursor de uma visão da Ecologia normativa - termo que uso para referir-me ao uso da ciência ecológica como sustentáculo para a criação de normas sociais - baseada no dogma do equilíbrio. Para que não restem dúvidas de terminologia, quando me refiro a equilíbrio refiro-me à ideia de equilíbrio dinâmico (não o estático, como sugeriu o Miguel Oliveira e Silva, que está associado a “constância” - Egerton, 1973), isto é, à ideia de que um ecossistema sujeito a uma perturbação regressa ao seu estado de equilíbrio inicial (Pimm, 1984).

A consequência mais conspícua - e nociva - da transposição do dogma do equilíbrio para o campo dos valores sociais é a ideia de que existe um referencial natural teórico a alcançar. A ideia de que haja uma espécie de lei científica, universal e inquestionável (como a lei da gravidade) que determine uma escala de valor associado aos ecossistemas naturais. Algo que apoie uma afirmação do género: - “Este ecossistema é melhor do que aquele porque é mais estável, mais complexo, mais resiliente, etc.” Nas palavras de Aldo Leopold:

“A thing is right when it tends to preserve the integrity, stability, and beauty of the biotic community. It is wrong when it tends otherwise” (p. 224-25).

Infelizmente, na hora de justificar uma opção em detrimento de outra, ninguém sabe muito bem o que seja a integridade de um ecossistema. A instabilidade é mais regra do que excepção num planeta cuja história se caracteriza pela mudança, adaptação e substituição mais do que pelo retorno. O que é belo para um pode não o ser para outro.

Não que não entenda a intenção de Aldo Leopold quando escreve o que escreveu. Não que não entenda o contexto em que o escreveu; um contexto de uma América com paisagens extraordinárias em que a intervenção humana do passado deixou marcas subtis ao olhar do Homem contemporâneo (isto é diferente de dizer pouco profundas como tentei demonstrar na última mensagem dos “mitos”). Como conservacionista partilho o mesmo tipo de inquietudes. As que Aldo resume no último parágrafo da sua obra e as que David Hales (in Conservation for the XXI Century, pp.139-44, 1989) refere num belo excerto de prosa:

“It has been said that, if we do not preserve wild nature, our children will never forgive us. That may be true, but an even worse fate is in store: our great-grandchildren will not care - they will have no way to comprehend what was lost” (...)

“The stakes could not be higher, for if we fail, there may be no children to ‘come out and wonder’, or worse, children, but no sources of wonder”

Porém, não é de equilíbrio ecológico que Leopold fala; nem de América natural que Rachel Carston fala. Tanto eles, como o Hales, como eu próprio e provavelmente como os que estão neste momento sentados em frente ao écran do computador, o que lhes/me/vos preocupa é o equilíbrio emocional - a necessidade que temos de saber que a realidade que conhecemos e com a qual nos habituamos a viver permanecerá imutável -. Não é a ciência ecológica que nos pode informar sobre quais os ecossistemas a preservar. A ciência ecológica ajuda-nos a classifica-los e a compreende-los mas não necessariamente a valoriza-los. Leopold roça esta perspectiva quando diz que: “our ability to perceive quality in nature begins, as in art, with the pretty. It expands through successive stages of the beautiful to values as yet uncaptured by language” (p. 96). Aqui ele reconhece que o processo de apreciação dos ecossistemas naturais tem uma forte componente estética (subjectiva). Apenas falta reconhecer, explicitamente, a origem do valor não capturado pela linguagem. Para ele é algo de exterior a nós; algo que se poderá encontrar nas “leis” da Ecologia (o dito equilíbrio). Para mim é algo de puramente emocional (domínio da noosfera). Algo em que se confundem o nosso “background” cultural e experiências pessoais (sistemas de valores e preferências), a nossa racionalidade (percepção utilitarista de valores naturais) e a componente inata do nosso sistema de preferências que faz com que, por exemplo, tenhamos mais “simpatia” por recriar parques (árvores dispersar tipo pomar) do que por florestas densas e desertos (há teorias que sugerem que o nosso sistema de preferências é condicionado pela nossa história evolutiva como caçadores recolectores nas savanas Africanas e que por isso temos uma preferência inata por paisagem que se lhes assemelhem).

Como é que esta conversa se relaciona com o tema tão discutido das alterações climáticas? O problema é o mesmo mas a escala é outra. A constatação de que o clima está em constante mudança é elementar. Há cerca de 6 mil anos o clima na Europa era mais quente do que actualmente, com valores médios 2º C superiores aos actuais e 5º C superiores em altitudes elevadas (Huntley & Prentice. Science, 687-90, 1988). As tendências regionais - face aos padrões actuais - eram de maior aquecimento no norte da Europa e de maior arrefecimento na região Mediterrânea. Ainda que bastante semelhante às previsões do IPCC que apontam para um aquecimento global de 1-3.5º C até 2100 com o mesmo tipo de variação altitudinal e regional, este aquecimento em nada se deveu às emissões antropogénicas de CO2. Tão somente ao ciclo inter-glaciar do momento.

As flutuações climáticas foram então - e provavelmente hoje (ver excelente revisão por Hughes, Trends of Ecology and Evolution 15, 56-61, 2000) - factor de extinção de muitas espécies. A questão que coloco é a seguinte? Com ou sem emissões de CO2 o clima altera-se (a um ritmo que ainda hoje desconhecemos). Para mais quente ou para mais frio existe uma mudança e uma mudança implica riscos. Esses riscos foram e serão sempre encarados de forma pragmática. Isto é, a nossa espécie fará tudo o que estiver ao seu alcance para minimizar as perdas materiais que daí advirem. Falo de perdas materiais porque é pouco provável que, qualquer que seja o cenário de alterações climáticas, a sobrevivência da humanidade esteja em causa. Como espécie sobrevivemos, no passado, a temperaturas mais frias (nos Glaciares) e temperaturas mais quentes (em certos inter-glaciares). Isto num tempo em que a nossa tecnologia era a pedra e o fogo e a nossa capacidade para prever os acontecimentos era a do dia seguinte. Hoje, somos a espécie mais cosmopolita do planeta demonstrando que a nossa capacidade de adaptação desafia os climas mais rigorosos.

Quero com isto relativizar o risco inerente às alterações climáticas? Criticar a redução de emissões de CO2? A resposta é um não rotundo às duas perguntas. Quanto ao risco, defendo que deva ser encarado com pragmatismo. Se há risco importa quantifica-lo e adoptar as medidas concretas que o minimizem. Numa das minhas mensagens anteriores pasmava-me pela apatia dos centros de decisão face, por exemplo, à esperada subida dos níveis do mar. Quanto às emissões de CO2 sou totalmente a favor da sua redução. Como dizia o Joanaz de Melo e o Miguel Oliveira e Silva, existem mil e umas razões para os reduzir. A única dúvida que coloco - e que me parece legitima - é se entre essas mil e umas razões as alterações climáticas sejam a mais - ou das mais - importantes. Não é óbvio que esta seja a causa principal - ou sequer uma das causas - dos padrões climáticos actuais, como não é óbvio que uma redução, hoje, das emissões tivesse algum efeito imediato na regulação do clima i.e. na redução do risco. Logo questiono que esta seja a grande bandeira a acenar face ao problema sério que pode ser uma mudança rápida e acentuada das condições climáticas. Reconheço que nesta minha posição possa estar algo de ingenuidade política. Não creio, porém, que seja um posicionamento disparatado como se tem, por vezes, querido fazer crer por aqui.

Quanto à biodiversidade. Sim é de esperar que, a haver uma alteração climática substancial, se operem processos de extinção acelerados. Sempre foi assim e sempre será. Esta é a história de uma planeta que já perdeu mais de 99.99999999% das espécies que o povoaram. Este processo pode, agora, ser agravado devido aos padrões de fragmentação de habitats que impedem ou dificultam os processos de migração, necessários para a persistência das espécies. Porém, esta é apenas uma gota no oceano. O processo de extinções actuais é um facto irreversível, com ou sem alterações climáticas. A magnitude exacta deste processo é desconhecida mas prevê-se que seja grande. É falso, porém, que as extinções antropogénicas sejam atípicas no quadro da história do planeta. É frequente afirmar-se que o que distingue este processo de extinções, em relação a outros, seja a sua magnitude e rapidez. Porém as reconstruções de padrões de extinção no passado indicam processos estocásticos de extinção, a nível global, com perdas muito elevadas de espécies (Lawton & May eds. Extinction Rates, 1995):

Ordoviciano (439 milhões de anos) ---------------- ~85% perda de espécies
Devoniano (367 milhões de anos) ------------------ ~83% perda de espécies
Permiano (245 milhões de anos) -------------------- ~95% perda de espécies
Triássico (208 milhões de anos) -------------------- ~80% perda de espécies
Cretácio (65 milhões de anos) ---------------------- ~76% perda de espécies

O único dado que podemos usar para distinguir o processo contemporâneo de extinções, do passado, é a causa. Mesmo assim esta não é recente, já que desde antes do neolítico os humanos foram responsáveis por extinções em massa nos novos continentes que povoava. Apenas o continente Africano parecem ter escapado ao grande processo de extinção de origem antropogénica do tardo-Pleistoceno.

Devemos por isto relativizar o processo de extinções e cruzar os braços? Mais uma vez a resposta é não. A minha mensagem é simples e repetitiva. Devemos travar tanto quanto possível o processo de extinção porque tal nos reconforta (eu incluído). É possível que em escalas de tempo que nos escapem ao controlo da razão, as acções de hoje tenham um retroacção negativa sobre nós próprios. Porém, também é possível que tal não aconteça. Nada poderá garantir que assim não seja já que depois de termos extinto, p.e., mais de 95% da fauna de mamíferos da Europa nos últimos 6.000 anos, continuamos felizes e contentes, cada vez mais gordos, cada vez mais altos e a viver mais cada vez mais tempo. Estes são os factos que indicam que não estamos nada mal na corrida da evolução. Estes mesmos factos podem despertar uma argumentação tão sólida quanto a oposta sugerindo que, afinal, existe uma correlação positiva entre extinção das espécies no passado e bem estar humanos. O cerne desta questão é de origem estética (numa primeira fase) e ética (numa última fase). Aí deve estar a nossa batalha: consolidar as bases éticas do movimento ambientalista contemporâneo. Parece-me bem mais relevante que tentar convencer as pessoas de que sem esta ou aquela espécie - em geral espécies perfeitamente redundantes para os ecossistemas actuais e.g. Lince, Lobo, Rinoceronte, etc. - os ecossistemas entrarão em colapso ou que a saúde humana será afectada. Esta linha de argumentação tem os seus dias contados.

Ponhamos as nossas causas no contexto devido. Questionemo-nos sobre a natureza genuína das nossas motivações. Abandonemos os dogmas do equilíbrio e variantes do mesmo tema. E o poder da nossa mensagem será reforçado. Vozes como a do P. Stott deixarão sequer de ter razão de existir.

sexta-feira, janeiro 01, 1999

Mito do bom selvagem

Excerto de uma acalorada conversa na ambio, por volta de 1997 ou quem sabe 1998.

(...)

O mito a que me referia era o mito do “bom selvagem”, isto é do homem que vive em perfeita harmonia com a natureza. O mesmo mito que P. Stott ilustra com um excerto da prosa de Rachel Carston e que Matt Ridley (“The origins of virtues”, penguin books, 1996) ilustra com o famoso discurso do Chefe Seatle. Neste último caso o mito é tanto maior quanto o facto de o Chefe Seatle nunca ter proferido o discurso que se lhe atribui e do qual transcrevo aqui um excerto (perdoem-me ser em Inglês mas não tenho, comigo, a versão portuguesa):

“How can you buy or sell the sky? The land? The idea is strange to us... Every part of this earth is sacred to my people. Every shining pines needle, every sandy shore, every mist in the dark woods, every meadow, every humming insect. All are holy in the memory and experience of my people... Will you teach your children what we have taught our children? That the earth is our mother? What befalls the earth befalls all the sons of earth. This we know: the earth does not belong to man, man belongs to earth. All things are connected like the blood that unites us all. Man does not weave the web of life, he is merely a strand in it. Whatever he does to the web, he does to himself”.

É um belo excerto de prosa mas ao contrário do que eu pensei quando o li e ao contrário do que se pretende fazer crer (p.e. ver a referência que Al Gore lhe faz no seu livro “Earth in the Balance”) é pura ficção. O texto foi escrito por Ted Perry em 1971 para um programa de televisão da cadeia americana ABC. Mas não só o texto é pura ficção como o é o mito do “bom selvagem”.

São estes mesmos índios que chegaram à America à cerca de 11.500 anos e foram responsáveis pela extinção de 73% dos géneros de grandes mamíferos na América do Norte (p.e. o bisonte gigante, o cavalo selvagem, o urso-de-cabeça-curta, o mamute, o mastodonte, o gato-de-dentes-de-sabre, o camelo-selvagem, etc). O mesmo se passou à cerca de 8.000 anos na America do Sul com a extinção de cerca de 80% dos géneros de grandes mamíferos (armadilhos gigantes, capivaras gigantes, etc.). E este padrão repete-se sempre e quando, no passado, outros “bons selvagens” se instalaram em locais não habitados ou pouco habitados pelo Homem. Em Madagáscar cerca de 17 lemures (um deles com o mesmo peso de um gorila) e a famosa ave-elefante foram dados extintos por ocasião da primeira ocupação humana, cerca de 500 anos antes de Cristo. A mesma história na Nova Zelândia quando os polinésios maoris se instalaram à apenas 600 anos. Pensa-se mesmo que o canibalismo entre esta tribo terá começado, por desespero, após o grande processo de extinção por eles operado. Poderia continuar com exemplos da Australia, do Havaí e mesmo da Europa mas o padrão é monótono e repetitivo. Desenganem-se o que atribuem as grandes extinções antropogénicas apenas ao neolítico, aos descobrimentos, à revolução verde, à revolução industrial ou à era pós-moderna em que vivemos. A diferença fundamental entre um tempo e outro é eficiência destrutiva da tecnologia e a amplitude das transformações. A natureza humana manteve-se imutável num e noutros tempos.

Se há alguma norma que possa caracterizar as relações entre o Homem e a natureza esta é a do não-equilibrio. Era esta, no meu entendimento, a mensagem que P. Stott pretendia transmitir e que tanta celeuma gerou nesta lista.

Porquê que a mensagem foi tão veementemente e por vezes violentamente contestada? Porque denegria a imagem de Rachel Carston, como sugere o J. Carlos Costa Marques? Porque maltratava a sua obra? Seria o trecho citado por Stott, para ilustrar o pensamento de Rachel, marginal no quadro da sua obra? Teria sido retirado do contexto e extremado para justificar desonestamente uma outra ideia? Ou terá sido a essência da mensagem em si que terá incomodado? Ou terá sido o facto de Stott ter posto o dedo na ferida quando sugere que a imagem romântica do equilíbrio é pura ficção literária? Não é esta a mensagem primordial de uma Ecologia política que se auto proclama de profunda? Não é este o paradigma basilar de todo o conceito filosófico biocentrista? E se não for assim? E se afinal... estamos e sempre estivemos em competição com outras espécies? E se afinal esta for a história da vida? E se afinal a única posição ideológica defensável for a que empresta a visão política à autoecologia (estudo dos ecossistemas do ponto de vista de uma espécie, p.e. do Homo sapiens) em vez da sinecologia (estudo dos ecossistemas do ponto de vista das interacções entre todos os seus constituintes)?

Ao contrário do que se pretendeu insinuar nesta lista não creio que o texto de Stott fosse anti-ambientalista. É seguramente um artigo contra uma certa visão da ecologia política que se baseia numa série de mitos. Como o mito de que, algures no planeta, existem indígenas (ou outros humanos) que vivem em harmonia com a natureza e que, como tal, podem servir de modelo a uma nova sociedade ecológica. O mito de que seja possível encontrar um equilíbrio biocêntrico, i.e. que seja equitativamente justo para humanos e não humanos. Infelizmente esta visão não encontra sustentação nem no passado nem no presente. Para ilustrar esta afirmação recorro a quatro estudos realizados junto de tribos indígenas do Amazonas. O objectivo era verificar a existência de uma “ética conservacionista”, designadamente no que concerne a atitude perante a caça. Os estudos a que me refiro são: Hames (1987). Game conservation and efficient hunting? In The Question of the Commons (eds. McCay, B. & Acheson, J.), University of Arisona Press, Tucson; Alvard (1994). Conservation by native peoples: prey choice in a depleted habitat. Human Nature 5, 127-54; Vickers (1994). From opportunism to nascent conservation. The case of the Siona-Secoya. Human Nature 5, 307-37; Stearman (1994). Only slaves climb trees: revisiting the myth of the ecologically noble savage in Amazonia. Human Nature 5, 339-57.

Hames estudou os Yanomamo e os Yw’kwana e verificou que estes caçam preferencialmente em áreas ricas em caça, que se situam longe das aldeias, por oposição a áreas depauperadas, junto da aldeia. Porém, no caminho, não se refreiam de caçar qualquer animal suficientemente grande que se lhes atravesse à frente e que valha a pena o esforço, mesmo que seja nas áreas depauperadas. O mesmo padrão de caça, não sistemática, foi observado por Alvard com os índios Piro do Peru. Williams Vicker analisou 1.300 registos de animais mortos pelos índios Siona-Secoya para aferir a existência de algum padrão de ética conservacionista. Este autor concluiu que não existia nenhum padrão de caça sistemática motivada por qualquer forma de ética ou religião. A caça era, porém, sustentável mas tal devia-se à baixa densidade populacional dos índios e parca tecnologia mais do que a convicções éticas. Allyn MacLean observou que os índios Yuki da Bolivia eram puros oportunistas. Entre outras práticas estes índios preferem matar uma macaca grávida, porque são mas fáceis de apanhar e porque os fetos são considerados um petisco. Têm por habito pescar com veneno barbasco que mata indiscriminadamente a fauna dos lagos em que pescam e têm por habito cortar arvores inteiras para aceder aos frutos que estão no topo (antes usavam escravos para subir às árvores).

Pode-se dizer que os Yuki são uma aberração e que outros exemplos haverão que demonstrarão o contrário. No entanto é o próprio Nicanor Gonzalez, líder do movimento de indígenas, que diz: “We aren’t nature lover’s” e que refere “At no time have indigenous groups included the concepts of conservation and ecology in their traditional vocabulary” (Stearman, 1994).

A esta altura estará o J. Carlos Costa Marques a perguntar-se porque motivo pretendo denegrir a imagem dos índios, assim como pensou que eu pretendia denegrir a imagem da Rachel Carston via textos do P. Stott. Nada mais errado. Como diz Matt Ridley no livro que citei: “He (o índio) is a better conservationist than me in every conceivable way -simply by virtue of his material poverty. He leaves a smaller and more natural inprint on the planet. But this is because of the economic and technological limitations within which he lives, not because of some spiritual, inherent ecological virtue that he possesses. Give him the means to destroy the environment and he would wield them as unthinkingly as me -and probably with more efficiency.

A desconstrução deste mito é importante porque nos permite progredir no pensamento ambientalista. Só quando abandonarmos o mito do “bom selvagem” poderemos abandonar o idealismo do “homem novo”, i.e. a ideia ilusória de que educando o povo poderemos contrariar a natureza humana, que nada tem de altruística (“Scratch an ‘altruist’ and watch a ‘hypocrite’ bleed”, Ghiselin 1974. The economy of nature and the evolution of Sex. Berkeley). (nota: não estou com isto a negar a importância da educação ambiental como processo educativo que visa o fomento de cidadãos mais responsáveis mas tão somente a sugerir que tal não chega para moldar os comportamentos humanos). A este mito está associado um outro mito - o do equilíbrio ecológico. Nem um nem outro têm correspondência na natureza. O que existe é competição (p.e. os humanos e as baratas), cooperação estratégica (p.e. a velhota e o cão), mudança (p.e. alterações climáticas sejam elas de origem antropogénica ou não), homeostasis (ainda que a escalas temporais que nos transcendem como humanos) e adaptação (não fossemos nós a única espécie do planeta que se adaptou a quase todos os ambientes climáticos do planeta - deserto, trópicos, árctico, etc). O único equilíbrio que poderemos alguma vez almejar é o do equilíbrio social e este, a bem da sobrevivência da nossa espécie, deve estar intimamente ligado à construção de uma relação mais próxima com o mundo natural. Falar de equilíbrio neste contexto é fugir à Sinecologia e aproximarmo-nos de uma Autoecologia do homem, i.e. de uma Ecologia Humana, em que o padrão de bom e mau é condicionado pela noosfera (i.e. a mente humana).

As bases para o ambientalismo contemporâneo estão mais no “Relatório Brundtland” do que na “Primavera Silenciosa” de Rachel Carston. O grande principio a desenvolver e aprofundar é o da solidariedade inter-geracional. Este é o principio que distingue os ambientalistas dos socialistas ou dos sociais democratas. Neste principio pode basear-se grande parte o ideário ambientalista sem que, para tal, tenhamos que recorrer ao que Matt Ridley e outros críticos do ambientalismo contemporâneo chamam “whisful thinking”.


Miguel Araújo