Aldo Leopold é uma referência fundamental. O seu livro “Sand County Almanac”, escrito em 1949, é, para o bom e para o mau, fonte de inspiração de muito do pensamento conservacionista contemporâneo. A sua escrita tem o condão suscitar a adesão de quem o lê. Quem não terá, algum dia, pensado algo de semelhante ao que Aldo escreve no último parágrafo da sua obra?
“We are remodeling the Allambra with a steam-shovel (= escavadora), and we are proud of our yardage. We shall hardly relinquish the shovel, which after all has many good points, but we are in need of gentler and more objective criteria for its successful use.” (p. 226)
Talvez o aspecto mais inovador da obra de Aldo tenha sido a conjugação de dois olhares num só: o olhar de um investigador da gestão da fauna silvestre e o olhar de um pensador sobre, o que ele próprio apelida de, a “ética da terra”. Aldo é percursor de um movimento que valoriza o espaço rural (e/ou natural) do ponto de vista de valores relacionados com o usufruto do espaço para o lazer, inspiração e sanidade mental (“amenity values”). O reconhecimento (e afirmação) destes valores são, no meu entender, um dos contributos mais marcantes da sua obra e uma das sementes para a atitude actual em conservação da natureza. Uma atitude marcadamente antropocêntrica.
Porém, “não à bela sem senão” e Aldo Leopold é - conjuntamente com Rachel Carston e muitos outros - percursor de uma visão da Ecologia normativa - termo que uso para referir-me ao uso da ciência ecológica como sustentáculo para a criação de normas sociais - baseada no dogma do equilíbrio. Para que não restem dúvidas de terminologia, quando me refiro a equilíbrio refiro-me à ideia de equilíbrio dinâmico (não o estático, como sugeriu o Miguel Oliveira e Silva, que está associado a “constância” - Egerton, 1973), isto é, à ideia de que um ecossistema sujeito a uma perturbação regressa ao seu estado de equilíbrio inicial (Pimm, 1984).
A consequência mais conspícua - e nociva - da transposição do dogma do equilíbrio para o campo dos valores sociais é a ideia de que existe um referencial natural teórico a alcançar. A ideia de que haja uma espécie de lei científica, universal e inquestionável (como a lei da gravidade) que determine uma escala de valor associado aos ecossistemas naturais. Algo que apoie uma afirmação do género: - “Este ecossistema é melhor do que aquele porque é mais estável, mais complexo, mais resiliente, etc.” Nas palavras de Aldo Leopold:
“A thing is right when it tends to preserve the integrity, stability, and beauty of the biotic community. It is wrong when it tends otherwise” (p. 224-25).
Infelizmente, na hora de justificar uma opção em detrimento de outra, ninguém sabe muito bem o que seja a integridade de um ecossistema. A instabilidade é mais regra do que excepção num planeta cuja história se caracteriza pela mudança, adaptação e substituição mais do que pelo retorno. O que é belo para um pode não o ser para outro.
Não que não entenda a intenção de Aldo Leopold quando escreve o que escreveu. Não que não entenda o contexto em que o escreveu; um contexto de uma América com paisagens extraordinárias em que a intervenção humana do passado deixou marcas subtis ao olhar do Homem contemporâneo (isto é diferente de dizer pouco profundas como tentei demonstrar na última mensagem dos “mitos”). Como conservacionista partilho o mesmo tipo de inquietudes. As que Aldo resume no último parágrafo da sua obra e as que David Hales (in Conservation for the XXI Century, pp.139-44, 1989) refere num belo excerto de prosa:
“It has been said that, if we do not preserve wild nature, our children will never forgive us. That may be true, but an even worse fate is in store: our great-grandchildren will not care - they will have no way to comprehend what was lost” (...)
“The stakes could not be higher, for if we fail, there may be no children to ‘come out and wonder’, or worse, children, but no sources of wonder”
Porém, não é de equilíbrio ecológico que Leopold fala; nem de América natural que Rachel Carston fala. Tanto eles, como o Hales, como eu próprio e provavelmente como os que estão neste momento sentados em frente ao écran do computador, o que lhes/me/vos preocupa é o equilíbrio emocional - a necessidade que temos de saber que a realidade que conhecemos e com a qual nos habituamos a viver permanecerá imutável -. Não é a ciência ecológica que nos pode informar sobre quais os ecossistemas a preservar. A ciência ecológica ajuda-nos a classifica-los e a compreende-los mas não necessariamente a valoriza-los. Leopold roça esta perspectiva quando diz que: “our ability to perceive quality in nature begins, as in art, with the pretty. It expands through successive stages of the beautiful to values as yet uncaptured by language” (p. 96). Aqui ele reconhece que o processo de apreciação dos ecossistemas naturais tem uma forte componente estética (subjectiva). Apenas falta reconhecer, explicitamente, a origem do valor não capturado pela linguagem. Para ele é algo de exterior a nós; algo que se poderá encontrar nas “leis” da Ecologia (o dito equilíbrio). Para mim é algo de puramente emocional (domínio da noosfera). Algo em que se confundem o nosso “background” cultural e experiências pessoais (sistemas de valores e preferências), a nossa racionalidade (percepção utilitarista de valores naturais) e a componente inata do nosso sistema de preferências que faz com que, por exemplo, tenhamos mais “simpatia” por recriar parques (árvores dispersar tipo pomar) do que por florestas densas e desertos (há teorias que sugerem que o nosso sistema de preferências é condicionado pela nossa história evolutiva como caçadores recolectores nas savanas Africanas e que por isso temos uma preferência inata por paisagem que se lhes assemelhem).
Como é que esta conversa se relaciona com o tema tão discutido das alterações climáticas? O problema é o mesmo mas a escala é outra. A constatação de que o clima está em constante mudança é elementar. Há cerca de 6 mil anos o clima na Europa era mais quente do que actualmente, com valores médios 2º C superiores aos actuais e 5º C superiores em altitudes elevadas (Huntley & Prentice. Science, 687-90, 1988). As tendências regionais - face aos padrões actuais - eram de maior aquecimento no norte da Europa e de maior arrefecimento na região Mediterrânea. Ainda que bastante semelhante às previsões do IPCC que apontam para um aquecimento global de 1-3.5º C até 2100 com o mesmo tipo de variação altitudinal e regional, este aquecimento em nada se deveu às emissões antropogénicas de CO2. Tão somente ao ciclo inter-glaciar do momento.
As flutuações climáticas foram então - e provavelmente hoje (ver excelente revisão por Hughes, Trends of Ecology and Evolution 15, 56-61, 2000) - factor de extinção de muitas espécies. A questão que coloco é a seguinte? Com ou sem emissões de CO2 o clima altera-se (a um ritmo que ainda hoje desconhecemos). Para mais quente ou para mais frio existe uma mudança e uma mudança implica riscos. Esses riscos foram e serão sempre encarados de forma pragmática. Isto é, a nossa espécie fará tudo o que estiver ao seu alcance para minimizar as perdas materiais que daí advirem. Falo de perdas materiais porque é pouco provável que, qualquer que seja o cenário de alterações climáticas, a sobrevivência da humanidade esteja em causa. Como espécie sobrevivemos, no passado, a temperaturas mais frias (nos Glaciares) e temperaturas mais quentes (em certos inter-glaciares). Isto num tempo em que a nossa tecnologia era a pedra e o fogo e a nossa capacidade para prever os acontecimentos era a do dia seguinte. Hoje, somos a espécie mais cosmopolita do planeta demonstrando que a nossa capacidade de adaptação desafia os climas mais rigorosos.
Quero com isto relativizar o risco inerente às alterações climáticas? Criticar a redução de emissões de CO2? A resposta é um não rotundo às duas perguntas. Quanto ao risco, defendo que deva ser encarado com pragmatismo. Se há risco importa quantifica-lo e adoptar as medidas concretas que o minimizem. Numa das minhas mensagens anteriores pasmava-me pela apatia dos centros de decisão face, por exemplo, à esperada subida dos níveis do mar. Quanto às emissões de CO2 sou totalmente a favor da sua redução. Como dizia o Joanaz de Melo e o Miguel Oliveira e Silva, existem mil e umas razões para os reduzir. A única dúvida que coloco - e que me parece legitima - é se entre essas mil e umas razões as alterações climáticas sejam a mais - ou das mais - importantes. Não é óbvio que esta seja a causa principal - ou sequer uma das causas - dos padrões climáticos actuais, como não é óbvio que uma redução, hoje, das emissões tivesse algum efeito imediato na regulação do clima i.e. na redução do risco. Logo questiono que esta seja a grande bandeira a acenar face ao problema sério que pode ser uma mudança rápida e acentuada das condições climáticas. Reconheço que nesta minha posição possa estar algo de ingenuidade política. Não creio, porém, que seja um posicionamento disparatado como se tem, por vezes, querido fazer crer por aqui.
Quanto à biodiversidade. Sim é de esperar que, a haver uma alteração climática substancial, se operem processos de extinção acelerados. Sempre foi assim e sempre será. Esta é a história de uma planeta que já perdeu mais de 99.99999999% das espécies que o povoaram. Este processo pode, agora, ser agravado devido aos padrões de fragmentação de habitats que impedem ou dificultam os processos de migração, necessários para a persistência das espécies. Porém, esta é apenas uma gota no oceano. O processo de extinções actuais é um facto irreversível, com ou sem alterações climáticas. A magnitude exacta deste processo é desconhecida mas prevê-se que seja grande. É falso, porém, que as extinções antropogénicas sejam atípicas no quadro da história do planeta. É frequente afirmar-se que o que distingue este processo de extinções, em relação a outros, seja a sua magnitude e rapidez. Porém as reconstruções de padrões de extinção no passado indicam processos estocásticos de extinção, a nível global, com perdas muito elevadas de espécies (Lawton & May eds. Extinction Rates, 1995):
Ordoviciano (439 milhões de anos) ---------------- ~85% perda de espécies
Devoniano (367 milhões de anos) ------------------ ~83% perda de espécies
Permiano (245 milhões de anos) -------------------- ~95% perda de espécies
Triássico (208 milhões de anos) -------------------- ~80% perda de espécies
Cretácio (65 milhões de anos) ---------------------- ~76% perda de espécies
O único dado que podemos usar para distinguir o processo contemporâneo de extinções, do passado, é a causa. Mesmo assim esta não é recente, já que desde antes do neolítico os humanos foram responsáveis por extinções em massa nos novos continentes que povoava. Apenas o continente Africano parecem ter escapado ao grande processo de extinção de origem antropogénica do tardo-Pleistoceno.
Devemos por isto relativizar o processo de extinções e cruzar os braços? Mais uma vez a resposta é não. A minha mensagem é simples e repetitiva. Devemos travar tanto quanto possível o processo de extinção porque tal nos reconforta (eu incluído). É possível que em escalas de tempo que nos escapem ao controlo da razão, as acções de hoje tenham um retroacção negativa sobre nós próprios. Porém, também é possível que tal não aconteça. Nada poderá garantir que assim não seja já que depois de termos extinto, p.e., mais de 95% da fauna de mamíferos da Europa nos últimos 6.000 anos, continuamos felizes e contentes, cada vez mais gordos, cada vez mais altos e a viver mais cada vez mais tempo. Estes são os factos que indicam que não estamos nada mal na corrida da evolução. Estes mesmos factos podem despertar uma argumentação tão sólida quanto a oposta sugerindo que, afinal, existe uma correlação positiva entre extinção das espécies no passado e bem estar humanos. O cerne desta questão é de origem estética (numa primeira fase) e ética (numa última fase). Aí deve estar a nossa batalha: consolidar as bases éticas do movimento ambientalista contemporâneo. Parece-me bem mais relevante que tentar convencer as pessoas de que sem esta ou aquela espécie - em geral espécies perfeitamente redundantes para os ecossistemas actuais e.g. Lince, Lobo, Rinoceronte, etc. - os ecossistemas entrarão em colapso ou que a saúde humana será afectada. Esta linha de argumentação tem os seus dias contados.
Ponhamos as nossas causas no contexto devido. Questionemo-nos sobre a natureza genuína das nossas motivações. Abandonemos os dogmas do equilíbrio e variantes do mesmo tema. E o poder da nossa mensagem será reforçado. Vozes como a do P. Stott deixarão sequer de ter razão de existir.
sábado, janeiro 02, 1999
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2 comentários:
Caro Miguel Araújo:
Parece-me que uma ideia subjacente e transversal a muitos dos artigos que se lêem sobre perspectivas da ecologia é a de que o Homem será uma entidade sempre nociva e a provocar o desequilíbrio nos mesmos sistemas ecológicos. Ideia que eu não subscrevo, apenas constato. Ora, neste artigo de abordagem e interpretação de Aldo Leopold (muito oportuno no momento em que se irão agudizar as posições entre os que serão a favor e contra determinadas opções de desenvolvimento - em Portugal e não só) parece-me haver uma certa convergência com a necessidade de informar as perspectivas ecológicas com um certo sal de antropocentrismo. Será ou estou a ver mal? Eu entro nessa de colocar mais o Homem sentro do tal equilíbrio, dinâmico, já se vê, do que reduzi-lo sempre a res non grata da ecologia.
Um abraço, manuel cardoso
...post as anonymous porque não sei que fiz às palavras passe - se é que já as tive!
ACIMA ONDE SE LÊ "sentro" deve ler-se "dentro" !
Sorry about that!!
manuel
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