Excerto de uma acalorada conversa na ambio, por volta de 1997 ou quem sabe 1998.
(...)
O mito a que me referia era o mito do “bom selvagem”, isto é do homem que vive em perfeita harmonia com a natureza. O mesmo mito que P. Stott ilustra com um excerto da prosa de Rachel Carston e que Matt Ridley (“The origins of virtues”, penguin books, 1996) ilustra com o famoso discurso do Chefe Seatle. Neste último caso o mito é tanto maior quanto o facto de o Chefe Seatle nunca ter proferido o discurso que se lhe atribui e do qual transcrevo aqui um excerto (perdoem-me ser em Inglês mas não tenho, comigo, a versão portuguesa):
“How can you buy or sell the sky? The land? The idea is strange to us... Every part of this earth is sacred to my people. Every shining pines needle, every sandy shore, every mist in the dark woods, every meadow, every humming insect. All are holy in the memory and experience of my people... Will you teach your children what we have taught our children? That the earth is our mother? What befalls the earth befalls all the sons of earth. This we know: the earth does not belong to man, man belongs to earth. All things are connected like the blood that unites us all. Man does not weave the web of life, he is merely a strand in it. Whatever he does to the web, he does to himself”.
É um belo excerto de prosa mas ao contrário do que eu pensei quando o li e ao contrário do que se pretende fazer crer (p.e. ver a referência que Al Gore lhe faz no seu livro “Earth in the Balance”) é pura ficção. O texto foi escrito por Ted Perry em 1971 para um programa de televisão da cadeia americana ABC. Mas não só o texto é pura ficção como o é o mito do “bom selvagem”.
São estes mesmos índios que chegaram à America à cerca de 11.500 anos e foram responsáveis pela extinção de 73% dos géneros de grandes mamíferos na América do Norte (p.e. o bisonte gigante, o cavalo selvagem, o urso-de-cabeça-curta, o mamute, o mastodonte, o gato-de-dentes-de-sabre, o camelo-selvagem, etc). O mesmo se passou à cerca de 8.000 anos na America do Sul com a extinção de cerca de 80% dos géneros de grandes mamíferos (armadilhos gigantes, capivaras gigantes, etc.). E este padrão repete-se sempre e quando, no passado, outros “bons selvagens” se instalaram em locais não habitados ou pouco habitados pelo Homem. Em Madagáscar cerca de 17 lemures (um deles com o mesmo peso de um gorila) e a famosa ave-elefante foram dados extintos por ocasião da primeira ocupação humana, cerca de 500 anos antes de Cristo. A mesma história na Nova Zelândia quando os polinésios maoris se instalaram à apenas 600 anos. Pensa-se mesmo que o canibalismo entre esta tribo terá começado, por desespero, após o grande processo de extinção por eles operado. Poderia continuar com exemplos da Australia, do Havaí e mesmo da Europa mas o padrão é monótono e repetitivo. Desenganem-se o que atribuem as grandes extinções antropogénicas apenas ao neolítico, aos descobrimentos, à revolução verde, à revolução industrial ou à era pós-moderna em que vivemos. A diferença fundamental entre um tempo e outro é eficiência destrutiva da tecnologia e a amplitude das transformações. A natureza humana manteve-se imutável num e noutros tempos.
Se há alguma norma que possa caracterizar as relações entre o Homem e a natureza esta é a do não-equilibrio. Era esta, no meu entendimento, a mensagem que P. Stott pretendia transmitir e que tanta celeuma gerou nesta lista.
Porquê que a mensagem foi tão veementemente e por vezes violentamente contestada? Porque denegria a imagem de Rachel Carston, como sugere o J. Carlos Costa Marques? Porque maltratava a sua obra? Seria o trecho citado por Stott, para ilustrar o pensamento de Rachel, marginal no quadro da sua obra? Teria sido retirado do contexto e extremado para justificar desonestamente uma outra ideia? Ou terá sido a essência da mensagem em si que terá incomodado? Ou terá sido o facto de Stott ter posto o dedo na ferida quando sugere que a imagem romântica do equilíbrio é pura ficção literária? Não é esta a mensagem primordial de uma Ecologia política que se auto proclama de profunda? Não é este o paradigma basilar de todo o conceito filosófico biocentrista? E se não for assim? E se afinal... estamos e sempre estivemos em competição com outras espécies? E se afinal esta for a história da vida? E se afinal a única posição ideológica defensável for a que empresta a visão política à autoecologia (estudo dos ecossistemas do ponto de vista de uma espécie, p.e. do Homo sapiens) em vez da sinecologia (estudo dos ecossistemas do ponto de vista das interacções entre todos os seus constituintes)?
Ao contrário do que se pretendeu insinuar nesta lista não creio que o texto de Stott fosse anti-ambientalista. É seguramente um artigo contra uma certa visão da ecologia política que se baseia numa série de mitos. Como o mito de que, algures no planeta, existem indígenas (ou outros humanos) que vivem em harmonia com a natureza e que, como tal, podem servir de modelo a uma nova sociedade ecológica. O mito de que seja possível encontrar um equilíbrio biocêntrico, i.e. que seja equitativamente justo para humanos e não humanos. Infelizmente esta visão não encontra sustentação nem no passado nem no presente. Para ilustrar esta afirmação recorro a quatro estudos realizados junto de tribos indígenas do Amazonas. O objectivo era verificar a existência de uma “ética conservacionista”, designadamente no que concerne a atitude perante a caça. Os estudos a que me refiro são: Hames (1987). Game conservation and efficient hunting? In The Question of the Commons (eds. McCay, B. & Acheson, J.), University of Arisona Press, Tucson; Alvard (1994). Conservation by native peoples: prey choice in a depleted habitat. Human Nature 5, 127-54; Vickers (1994). From opportunism to nascent conservation. The case of the Siona-Secoya. Human Nature 5, 307-37; Stearman (1994). Only slaves climb trees: revisiting the myth of the ecologically noble savage in Amazonia. Human Nature 5, 339-57.
Hames estudou os Yanomamo e os Yw’kwana e verificou que estes caçam preferencialmente em áreas ricas em caça, que se situam longe das aldeias, por oposição a áreas depauperadas, junto da aldeia. Porém, no caminho, não se refreiam de caçar qualquer animal suficientemente grande que se lhes atravesse à frente e que valha a pena o esforço, mesmo que seja nas áreas depauperadas. O mesmo padrão de caça, não sistemática, foi observado por Alvard com os índios Piro do Peru. Williams Vicker analisou 1.300 registos de animais mortos pelos índios Siona-Secoya para aferir a existência de algum padrão de ética conservacionista. Este autor concluiu que não existia nenhum padrão de caça sistemática motivada por qualquer forma de ética ou religião. A caça era, porém, sustentável mas tal devia-se à baixa densidade populacional dos índios e parca tecnologia mais do que a convicções éticas. Allyn MacLean observou que os índios Yuki da Bolivia eram puros oportunistas. Entre outras práticas estes índios preferem matar uma macaca grávida, porque são mas fáceis de apanhar e porque os fetos são considerados um petisco. Têm por habito pescar com veneno barbasco que mata indiscriminadamente a fauna dos lagos em que pescam e têm por habito cortar arvores inteiras para aceder aos frutos que estão no topo (antes usavam escravos para subir às árvores).
Pode-se dizer que os Yuki são uma aberração e que outros exemplos haverão que demonstrarão o contrário. No entanto é o próprio Nicanor Gonzalez, líder do movimento de indígenas, que diz: “We aren’t nature lover’s” e que refere “At no time have indigenous groups included the concepts of conservation and ecology in their traditional vocabulary” (Stearman, 1994).
A esta altura estará o J. Carlos Costa Marques a perguntar-se porque motivo pretendo denegrir a imagem dos índios, assim como pensou que eu pretendia denegrir a imagem da Rachel Carston via textos do P. Stott. Nada mais errado. Como diz Matt Ridley no livro que citei: “He (o índio) is a better conservationist than me in every conceivable way -simply by virtue of his material poverty. He leaves a smaller and more natural inprint on the planet. But this is because of the economic and technological limitations within which he lives, not because of some spiritual, inherent ecological virtue that he possesses. Give him the means to destroy the environment and he would wield them as unthinkingly as me -and probably with more efficiency.
A desconstrução deste mito é importante porque nos permite progredir no pensamento ambientalista. Só quando abandonarmos o mito do “bom selvagem” poderemos abandonar o idealismo do “homem novo”, i.e. a ideia ilusória de que educando o povo poderemos contrariar a natureza humana, que nada tem de altruística (“Scratch an ‘altruist’ and watch a ‘hypocrite’ bleed”, Ghiselin 1974. The economy of nature and the evolution of Sex. Berkeley). (nota: não estou com isto a negar a importância da educação ambiental como processo educativo que visa o fomento de cidadãos mais responsáveis mas tão somente a sugerir que tal não chega para moldar os comportamentos humanos). A este mito está associado um outro mito - o do equilíbrio ecológico. Nem um nem outro têm correspondência na natureza. O que existe é competição (p.e. os humanos e as baratas), cooperação estratégica (p.e. a velhota e o cão), mudança (p.e. alterações climáticas sejam elas de origem antropogénica ou não), homeostasis (ainda que a escalas temporais que nos transcendem como humanos) e adaptação (não fossemos nós a única espécie do planeta que se adaptou a quase todos os ambientes climáticos do planeta - deserto, trópicos, árctico, etc). O único equilíbrio que poderemos alguma vez almejar é o do equilíbrio social e este, a bem da sobrevivência da nossa espécie, deve estar intimamente ligado à construção de uma relação mais próxima com o mundo natural. Falar de equilíbrio neste contexto é fugir à Sinecologia e aproximarmo-nos de uma Autoecologia do homem, i.e. de uma Ecologia Humana, em que o padrão de bom e mau é condicionado pela noosfera (i.e. a mente humana).
As bases para o ambientalismo contemporâneo estão mais no “Relatório Brundtland” do que na “Primavera Silenciosa” de Rachel Carston. O grande principio a desenvolver e aprofundar é o da solidariedade inter-geracional. Este é o principio que distingue os ambientalistas dos socialistas ou dos sociais democratas. Neste principio pode basear-se grande parte o ideário ambientalista sem que, para tal, tenhamos que recorrer ao que Matt Ridley e outros críticos do ambientalismo contemporâneo chamam “whisful thinking”.
Miguel Araújo
sexta-feira, janeiro 01, 1999
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2 comentários:
Já me havia ocorrido que este texto do "cacique seatle" não correspondia a verdade, mas, não sabia sua origem. Minhas idéias, igualmente, já - por puro instinto, coadunavam-se com o "mito do selvagem", mas, agora meus pensamentos encontram amparo científico, haja vista os estudos desenvolvidos - e citados em seu texto, a partir dos índios sul-americanos.
Apesar de já trancorridos quase dez anos desde que publicaram este texto, continua - e continuará, super atual, devendo - a meu ver, servir de fonte a estímulo de debates, onde quer que estejamos em nosso planeta.
Assim sendo, despeço-me.
Um grande abraço.
Joaquim Paulo Monteiro
Rio de Janeiro - Brasil
07 de abril de 2007
joaquimmonteiro@casadamoeda.gov.br
se já tinha sentido total sintonia com a sua exposição na Gulbenkian, há cerca de 1 mês, agora, ao ler este texto, ela reforçou-se. Igualmente, sempre tendo simpatizado com o texto do Chefe Seatle, tb sempre me questionara se teria sido mesmo um índio a escrevê-lo. Pois é, criamos estas ilusões, para nos sentirmos mais seguros???, mas a verdade é que, na natureza a perfeição não existe.... e o perfeccionismo é uma grande armadilha!
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