sexta-feira, junho 25, 2004

Especial Sabor

Compilação de Textos sobre o empreendimento barragem do Sabor.

1 - Factos sobre o Sabor por Bárbara Fráguas, José Teixeira e Carlos Aguiar
2 - Pelo Rio Sabor por Helena Freitas
3 - Sabor Amargo por Rui Moreira
4 - Custos de oportunidade: quem os paga? por Manuel Cardoso

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FACTOS SOBRE O SABOR

Por Bárbara Fráguas, José Teixeira e Carlos Aguiar

Embora nasça em Espanha, na Serra da Parada (Zamora) a uma altitude de 1 600m, o rio Sabor entra pouco depois em território português, atravessando a serra de Montesinho sob a forma de pequeno rio de montanha. Depois de 100 km por terras do Nordeste português, desagua no rio Douro a 97m de altitude, junto à localidade de Torre de Moncorvo. A diversidade de habitats naturais, assim como de espécies de fauna e flora presentes no vale do Sabor, é notável. Apenas no Baixo Sabor, são encontrados 20 tipos de habitats naturais incluídos na Directiva Comunitária Habitats, dos quais 4 são considerados de conservação prioritária.

Flora
Uma das particularidades deste rio é a vegetação existente no seu leito de cheias que, devido à fisiografia do vale, ocupa o patamar bioclimático termomediterrânico. O planalto transmontano, situado a mais de 600 m de altitude e formando parte da Submeseta Norte, nas áreas em que se vê cortado pelos rios Douro, Sabor e seus afluentes, pode descer abaixo dos 300 m. Este facto fez com que estes vales servissem de refúgio para numerosas espécies vegetais e animais durante os sucessivos períodos glaciares. Em todo o vale do rio Douro, assim como nos restantes rios de Portugal, esta vegetação particular, característica dos leitos de cheia, tem vindo a ser erradicada devido à construção de numerosas obras hidroeléctricas. Pelo contrário, no vale do Sabor, as espécies que formam essa comunidade vegetal permaneceram até aos nossos dias, constituindo verdadeiras relíquias vivas, endémicas destes vales ou sob a forma de disjunções biogeográficas. Também aqui subsistem os mais extensos e bem conservados azinhais e sobreirais do Nordeste de Portugal, restos do bosque mediterrânico que outrora dominou toda a região. Ao longo do vale pode-se encontrar um elevado número de endemismos associados à presença de substratos calcários e ultrabásicos. A importância florística do vale do Sabor levou à inclusão de grande parte da sua área na lista de sítios propostos para integrar a Rede Natura 2000 (PTCON0021).

Todas estas evidências demonstram o elevado interesse da bacia do Sabor para a conservação da biodiversidade e, especificamente, da diversidade genética. Neste sentido, acrescenta-se ainda a presença de importantes núcleos de videira e oliveira brava, exemplos de um potencial genético muito valioso para a melhoria de variedades utilizadas na agricultura e no combate a pragas agrícolas. Destaque-se, a título exemplificativo, que a videira brava sobreviveu no vale do Sabor aos ataques de filoxera que afectou a maioria das vinhas europeias nos finais do séculos XIX e princípios do século XX.

Fauna
A importância faunística do vale do Sabor levou à classificação de grande parte da sua área numa ZPE (Zona de Protecção Especial – PTZPE0037), e numa IBA (Important Bird Area – PT004) segundo os critérios da BirLife International. A diversidade e riqueza de habitats, associado aos reduzidos níveis de perturbação, permitem a presença de uma diversificada comunidade de animais que inclui numerosas espécies protegidas por convenções internacionais. Os ecossistemas rupícolas presentes ao longo de todo o rio, albergam importantes populações nidificantes de aves com estatuto de conservação, como a águia de Bonelli (Hieraaetus fasciatus), a águia-real (Aquila chrysaetos), o abutre do Egipto (Neophron percnopterus), a cegonha-negra (Ciconia nigra), o falcão-peregrino (Falco peregrinus), o bufo-real (Bubo bubo) e o chasco-preto (Oenanthe leucura).

A orientação do vale, que corta o Nordeste de Portugal no sentido norte-sul, assim como a sua escassa alteração, permite que este desempenhe um papel importante como refúgio e corredor ecológico para a fauna terrestre. Entre os mamíferos aí presentes, destacam-se o lobo-ibérico (Canis lupus signatus), a toupeira-de-água (Galemys pyrenaicus), a lontra (Lutra lutra), o gato-bravo (Felis sylvestris) e o corço (Capreolus capreolus). Na zona do Baixo Sabor, situa-se ainda o principal local de desova e alevinagem de uma importante comunidade de peixes de uma grande área da bacia do Douro.

História
Em tempos bastante remotos, o ser humano já aproveitava as condições particulares deste rio, tal como o testemunham as figuras rupestres encontradas em várias zonas do Baixo Sabor que datam do período Paleolítico. Uma velha aldeia abandonada – Cilhades - apresenta vestígios de ocupação que remontam à Idade do Ferro, e ao longo do vale têm sido encontrados diversas marcas de romanização e vestígios pertencentes à Idade Média. Duas pontes do século XVII constituem notáveis monumentos da região e são ainda utilizadas como importantes pontos de travessia do rio, cujo caudal pode chegar a ser torrencial durante alguns períodos invernais.

Agricultura
Nalgumas zonas localizadas junto ao rio Sabor, encontram-se actualmente extensos cultivos de oliveiras e amendoeiras. O azeite produzido aqui é de elevada qualidade e representa uma importante fonte económica para as populações locais. Como exemplo, o vale do Felgar – uma das zonas mais férteis de toda a província de Trás-os-Montes – produz anualmente cerca de 60 000 litros de azeite de qualidade.

Projecto para a construção da Barragem do Baixo Sabor
Em 1996, após a tentativa de construção de uma grande barragem no vizinho rio Côa, abandonada devido ao descobrimento de importantes núcleos de arte rupestre, ressurge um antigo projecto de características similares para o rio Sabor. Esta gigantesca obra, que se situaria na parte terminal do rio Sabor (Baixo Sabor), iria afectar aproximadamente 50% da extensão total do rio, inundando uma área máxima prevista de 3660 ha (ver mapa). O Estudo de Impacte Ambiental (EIA) da barragem do Baixo Sabor é concluído e divulgado em 1999 e, apesar de classificar a área como apresentando “características peculiares e mesmo únicas no contexto nacional”, acaba, curiosamente, por concentrar as suas conclusões nas potenciais vantagens associadas ao empreendimento. Durante o período de discussão pública do EIA, as principais associações ambientalistas portuguesas (Quercus, LPN, Geota, Fapas e SPEA) elaboraram documentos técnicos onde identificaram numerosas omissões a nível dos dados de referência e conclusões altamente tendenciosas. A comunidade científica portuguesa ligada ao estudo da fauna e flora mobilizou-se de forma inédita no nosso país e elaborou um manifesto público, assinado por mais de 260 investigadores, onde afirma peremptoriamente a importância de manter este rio isento de qualquer barragem.
A área afectada pela albufeira projectada está classificada como ZPE, e faz parte da lista de sítios propostos para integrar a Rede Natura 2000. Assim, qualquer obra de grandes dimensões dentro dos seus limites só poderia ser aprovada caso fosse demonstrado o seu interesse público e caso não existissem outras alternativas. Foi então que, a meados de 2000, a Comissão de Avaliação do EIA da Barragem do Baixo Sabor, suspendeu o empreendimento, por considerar que a sua construção implicaria grandes impactos sobre o ambiente e por não existir qualquer estudo sobre possíveis alternativas a este projecto. O Ministério do Ambiente anunciou que seria necessário estudar uma localização alternativa, recaindo esta, uma vez mais, sobre o vale do rio Côa, desta vez no Alto Côa. No entanto, restringir a decisão final à avaliação das duas alternativas em análise, não foi, de forma alguma, a melhor estratégia em termos ambientais – o vale do Alto Côa encontra-se também classificado como ZPE, e por isso proposto para integrar a Rede Natura 2000.

Durante o seguinte período de espera, entre a finalização do EIA dos dois empreendimentos em análise e a divulgação dos seus resultados, foi constituída a Plataforma Sabor Livre, um movimento inter-associativo constituído pelas principais ONGAs portuguesas (Quercus, LPN, Fapas, Olho Vivo, SPEA e Geota) em defesa do rio Sabor sem barragens.

No final do ano passado, foram finalmente divulgados os resultados do EIA da Avaliação Comparada dos Aproveitamentos Hidroeléctricos do Baixo Sabor e do Alto Côa. A Plataforma Sabor Livre, com a colaboração de diversos investigadores, elaborou um documento técnico alertando para a existência de erros frequentes e grosseiros ao longo de todo o EIA que desacreditam as suas conclusões.

Ausência de um plano energético
Actualmente, o consumo de energia em Portugal cresce em média 6% por ano, enquanto que o crescimento da economia, medido através do aumento do produto interno bruto, ronda apenas os 3%. Esta diferença, uma das mais acentuadas de toda a União Europeia, demonstra a ausência de uma estratégia de combate ao desperdício energético. Para piorar ainda mais este cenário, mais de 70% da energia consumida em Portugal tem origem em combustíveis fósseis comprados a outros países, constituindo a maior importação do país e implicando a emissão de mais de 50 milhões de toneladas de CO2 equivalente.

Até 2010, Portugal terá de cumprir as metas comunitárias de aumentar até 39% a utilização de energias renováveis e diminuir a emissão de CO2 equivalente em 27% desde 1990. A construção de grandes barragens – como o recente caso do Alqueva – continua a ser apontada como a principal solução para atingir esses objectivos. No entanto, face ao aumento de consumo de energia previsto para os próximos anos, as poucas barragens que pudessem ainda vir a ser construídas nos já colmatados rios portugueses, não seriam, de forma alguma, suficientes para os atingir. Cabe-nos lembrar que a produção energética associada à barragem do Baixo Sabor, representaria uma parcela do consumo previsto de electricidade em Portugal inferior a 0.6%, o qual é reconhecido pelo próprio EIA como “pouco significativo a nível nacional”. Da mesma forma, a redução da emissão de CO2 associada a esta barragem (100 000 toneladas) representaria apenas 0.17% do total de emissões em Portugal. A tudo isto, deve-se ainda acrescer o facto da barragem do Baixo Sabor nunca vir a estar em pleno funcionamento antes de 2010, pelo que não contribuirá para o atingir dos patamares propostos.

Pelo contrário, existe um conjunto de medidas custo-eficazes (cujo investimento financeiro inicial é totalmente amortizado no final de alguns anos de funcionamento), a nível da indústria, transportes e habitações, que pode ultrapassar a poupança de cerca de 12 000 GWh/ano de electricidade, ou seja, quase 1/3 do total de consumos do país. Este valor é substancialmente superior ao correspondente à produção de electricidade associada à barragem do Baixo Sabor – 250 GWh/ano. Um outro exemplo é o apresentado pelo projecto comunitário SAVE e identificado pela própria EDP/REN, onde é assumido que através da utilização de apenas 12% de um total de medidas propostas de economia de electricidade (introdução de lâmpadas de alto rendimento, introdução de sensores de presença em edifícios públicos e de motores mais eficientes a nível de indústria), se pode poupar mais energia por ano, do que aquela que seria produzida pela barragem do Baixo Sabor.

Em Portugal, continua a imperar a denominada gestão da oferta energética e não a gestão da procura, que hoje em dia é considerada como aquela que melhor se enquadra numa lógica de desenvolvimento sustentável. Portugal, não tem uma política de incentivo à poupança de energia, nem de implementação de energias renováveis, exceptuando a de construção de grandes empreendimentos hidroeléctricos, precisamente a que promove maiores impactos ambientais e que já se encontra em desuso nos países mais desenvolvidos (E.U.A. e França, que actualmente desenvolvem planos de desmantelamento de algumas barragens).

Desta forma, seria prioritário e fundamental, elaborar um plano energético nacional que contemplasse uma estratégia a médio prazo de gestão da produção e consumo de energia em Portugal, de modo a que o país consiga dar uma resposta eficaz aos seus problemas energéticos e se evite a arbitrariedade a nível da planificação de obras de carácter meramente pontual.

Desinformação das populações locais
A atitude das autoridades locais sobre o tema da barragem do Baixo Sabor tem vindo a ser conduzido de forma lamentável, apostando claramente na desinformação das populações da região. Em sessões públicas de “esclarecimento” e em artigos publicados na imprensa, defendem o progresso associado à barragem, quando na região se encontra o maior número de barragens do país, sem nenhuma evidência de desenvolvimento das populações locais, que continuam num estado de contínua desertificação. Defendem um turismo associado à barragem, quando as grandes alterações do nível das águas da albufeira e a esperada má qualidade da água armazenada (recorde-se que se trata de uma zona termomediterrânica) limitará fortemente a sua utilização para fins balneares, bem como as limitações inerentes ao seu estatuto de ZPE impedirão a práticas de desportos náuticos motorizados. Propõem a criação de um Parque Natural no vale do Sabor tendo como base a construção da barragem, que prejudicaria a maior parte dos seus valores naturais. Discutem as vantagens de presença de uma reserva de água como resposta às condições de seca e para permitir o regadio na região, quando a utilização prevista para a água desta albufeira (situada num vale extremamente profundo e isolado para viabilizar a construção de um sistema de transporte de água) se limitará à produção de energia. Dizem ainda que o Baixo Sabor nunca foi considerado importante pela comunidade científica, que o estudo de impacte ambiental nunca chegou a ser contestado, que o impacto da barragem é mínimo e muitas outras mentiras que em nada contribuem para um debate sério sobre este problema.

Impactos da barragem
Actualmente, os graves impactos das grandes barragens são bem conhecidos: submersão de habitats importantes e campos de cultivo, isolamento de populações (p.ex. impedindo a reprodução de peixes migradores), retenção de sedimentos e nutrientes, deterioração da qualidade da água, deslocação de populações humanas (entre 30 e 60 milhões em todo o mundo), etc. Recentemente, um estudo realizado numa barragem do Brasil (barragem de Balbina) concluiu que a decomposição da matéria orgânica em profundidade produzia 25 vezes mais gases produtores de efeito de estufa que numa central térmica! E além de tudo isto, as barragens têm um tempo de vida útil muito reduzido, normalmente entre 50 e 70 anos, tornando-se a sua posterior manutenção muito cara e o desmantelamento extremamente complicado e com custos associados elevadíssimos.

A construção da barragem do Baixo Sabor, afectaria 20 habitats naturais de interesse comunitário, dos quais 4 são de conservação prioritária. A albufeira submergiria uma das zonas mais importantes de vegetação de leitos de cheias de Portugal, várias plantas endémicas e uma extensa área dos melhores azinhais e sobreirais do Nordeste do país.

A barragem iria também afectar negativamente várias espécies de aves rupícolas protegidas. As aves de rapina que nidificam no Baixo Sabor passariam a ter muitos dos seus locais de nidificação submersos, os seus territórios irremediavelmente afectados e uma parte importante das suas áreas de caça inundadas. A albufeira criada limitaria o contacto e fluxo genético entre populações de vertebrados terrestres das duas margens, o que a longo prazo constituiria uma factor adicional de ameaça para as espécies com reduzidos efectivos populacionais. Como exemplo, e segundo o estudo de impacte ambiental, existem na zona dois grupos de lobos, um de cada lado do rio, cujo contacto seria muito limitado pela existência da albufeira.

A albufeira submergiria ainda extensas áreas de terras agrícolas, e particularmente um dos vales mais férteis de toda a província de Trás-os-Montes – o vale do Felgar -, o que segundo o EIA afectaria o rendimento de mais de 1/3 das famílias da zona. A nível do património cultural, seriam destruídos cerca de 200 pontos de interesse etnográfico, histórico e arqueológico.

Futuro alternativo para o vale do rio Sabor
A importância natural do vale do rio Sabor justifica amplamente a sua classificação como área protegida de interesse nacional, embora a conjuntura política e económica actual não será a mais favorável para esta solução.
Sem dúvida alguma que a crescente promoção do património natural, paisagístico e cultural, juntamente com a valorização de alguns produtos agrícolas de qualidade, podem permitir que o vale do rio Sabor encare o futuro sob uma perspectiva realista de desenvolvimento sustentável. A sua proximidade ao Parque Natural do Douro Internacional/Parque Natural de Arribes del Duero (Espanha), ao Parque Natural de Montesinho e ao Parque Arqueológico do Vale do Côa, poderia ser aproveitada para um desenvolvimento articulado de toda a região baseada na importância dos seus valores naturais e culturais. As paisagens únicas do vale, a sua rica fauna e flora e as excelentes condições do rio para a prática de desportos de águas bravas, constituem recursos valiosos para um turismo de contacto com a natureza, em grande expansão em toda a Europa. Os próximos Quadros Comunitários de Apoio poderão ser utilizados como ajudas à implementação de medidas agro-ambientais e ao turismo no espaço rural, especialmente nas zonas de comprovado interesse ambiental. Estas medidas, ao contrário da destruição dos principais campos de cultivo e valores naturais e culturais da região, contribuirão para a fixação das populações no meio rural.

O que se encontra em causa no vale do rio Sabor é a preservação da história e património natural de Portugal. O vale do Sabor guarda vestígios únicos da memória da evolução da vida nesta região e desempenha um importante papel para a manutenção da biodiversidade. Agora, somos nós que temos a tarefa de aprender com a escola da natureza existente neste vale e unir esforços no sentido de conseguir conservá-lo sem barragens, valorizá-lo, divulgá-lo e utilizá-lo numa óptica de desenvolvimento integrado e sustentável.

Epílogo
A opção construção da barragem do Baixo Sabor acabou por vencer. Iniciou-se uma nova fase do combate contra a barragem do Sabor.


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PELO RIO SABOR - CONTRA A MENTIRA

Por HELENA FREITAS
Sexta-feira, 25 de Junho de 2004

pós sucessivos e inusitados anúncios prévios, efectuados por diferentes membros do Governo - sempre em situação de lamentável oportunismo político em Trás-os-Montes - foi finalmente conhecida a decisão do Ministério do Ambiente a favor da construção de uma barragem no Baixo Sabor. Tal decisão viola a legislação ambiental e reflecte de forma inequívoca a ausência de uma política ambiental credível no actual ministério. Contra o parecer da própria estrutura que deve sustentar tecnicamente a decisão, o ministro decidiu silenciar o rio Sabor, dando luz verde à barragem. Não só não defendeu o que lhe compete defender, como recorreu a rebuscados argumentos para justificar o que não tem justificação. Tendo a possibilidade de decidir por uma alternativa com menor impacte ambiental, o Ministério do Ambiente optou por violar a legislação ambiental e desrespeitar a instituição responsável pela conservação da natureza em Portugal.

Num país livre, todos temos o direito de manifestar publicamente o que queremos para o nosso futuro comum, sem que para tal seja necessário recorrer à demagogia e à maledicência. Não posso, por isso, deixar de refutar a torrente de mentiras que anteciparam e que se sucederam a esta decisão, através das quais se pretendeu caluniar os opositores à barragem, em especial os ambientalistas. Estes não são nem nunca foram aqueles que apenas querem que nada se faça, injustamente apelidados de "não feitores". "Não feitores" porquê? Porque face às duas alternativas propostas (se foram propostas, suponho que devem ser consideradas igualmente válidas, a não ser que tudo não tenha passado de uma farsa) preferem aquela que é menos grave para o ambiente, respeitando a lei? Se assim é, antes "não feitores" do que malfeitores.

Os argumentos em favor da barragem são os do costume, mas com uma evolução perniciosa. Como o argumento energético é insuficiente para garantir apoios financeiros comunitários, procura-se a todo o custo valorizar - também ambientalmente - tal infra-estrutura, atribuindo-se-lhe fins múltiplos.

O argumento principal é a necessidade de criar uma reserva estratégica de água, tornando-se mesmo plausível argumentar com a sua importância para fins de regadio, numa demonstração grave de ignorância sobre os constrangimentos biofísicos e sócio-demográficos desta região.

Outro argumento falacioso é o que utiliza, demagogicamente, a importância da barragem como promotora do desenvolvimento regional. Ora numa região em que abundam as barragens, como é o caso de Trás-os-Montes, vale a pena questionarmos qual o verdadeiro benefício desta primazia. Mas a impudência dos argumentos vai tão longe que, a par da construção da nova barragem, se anunciam como medidas de minimização dos seus impactes e em jeito de estratégia de desenvolvimento regional a criação de novas dinâmicas de conservação da natureza, envolvendo as áreas afectadas pela barragem. Não se pode apoiar a destruição de um sistema ecológico desta qualidade e importância ao mesmo tempo que se anunciam benevolentes intenções conservacionistas. É mais uma desonestidade para com os portugueses.

Não há dúvida de que as grandes barragens, para além de impedirem o fluxo natural da água e fragmentarem os habitats naturais da bacia hidrográfica afectada, reduzem a produtividade do sistema, favorecem a libertação de substâncias tóxicas para a água, causam eutrofização e depleção do oxigénio dissolvido na água, contribuem para a acumulação de sedimentos e promovem profundas alterações ao longo do curso de água, degradando e destruindo as planícies aluviais, zonas húmidas ribeirinhas, deltas e estuários. As grandes barragens simbolizaram, durante muito tempo, o progresso da engenharia hidráulica e o desenvolvimento económico, mas esta percepção favorável foi-se atenuando ao longo das últimas décadas em virtude da sua incapacidade para oferecer os benefícios esperados e pelo reconhecimento dos seus graves impactes ambientais.

Com excepção do argumento energético, mesmo este apenas pela inépcia em fazer mais e melhor com o que já está edificado, nenhum dos argumentos justifica a opção pela construção de mais uma barragem. Em relação à opção pelo Baixo Sabor, é inquestionável que todos os argumentos ambientais e legais justificariam uma opção diferente. Aliás, foram estes mesmos argumentos que, por serem válidos, sustentaram a classificação destas áreas no âmbito de directivas comunitárias, subscritas e propostas pelo próprio Ministério do Ambiente. É pois legítimo conjecturar sobre a verdadeira razão para esta decisão: se prevalecem eventuais compromissos do passado ou se é apenas mais um sintoma de soçobro do Governo perante um grupo económico.

Plataforma Sabor Livre

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SABOR AMARGO

Por RUI MOREIRA
Domingo, 27 de Junho de 2004 (Público)

Com a suspensão da construção no Coa, salvaram-se as pobres gravuras paleolíticas, hoje integradas naquele que é, certamente o mais caro, e provavelmente o menos visitado parque arqueológico do mundo. A opção de corte e transladação, hipótese conhecida e testada nos anos sessenta em Abu Simbel no Egipto, foi recusada pelos arqueólogos. Ninguém lhes pode levar a mal, porque é essa a sua paixão, e competia aos políticos articularem os vários interesses em conflito. São, por isso, injustas muitas das críticas que se ouvem a Fernando Maia Pinto e os seus colegas. Salvou-se, também, por feliz circunstância e interposta razão, a magnífica quinta da Erva Moira, que é hoje um dos "flagship" da casa Ramos Pinto e fonte da arte do grande enólogo João Nicolau de Almeida.

O problema é que estamos finalmente confrontados com o custo de oportunidade dessa decisão. Mais uma vez, foi o parque arqueológico e, imagine-se, o "habitat hortícola" que foram invocados pelo Ministro para complementar os argumentos económicos que levaram o Governo a preferir o Sabor e a preterir, agora, o Alto Côa. Como convêm nestas coisas, atira-se com dinheiro para calar as consciências. O Governo criou um fundo de compensação para "construir infra-estruturas que valorizem ambientalmente a zona junto à barragem ou para ajudar a desenvolver as comunidades locais", descrição propositadamente vaga que servirá, se for o caso, para viabilizar novos mamarrachos.

O parecer negativo do Instituto de Conservação da Natureza, que preferia o Alto Coa, de nada serviu, e a comissão de avaliação do estudo de impacto ambiental excluiu as duas soluções mas acabou por ceder às circunstâncias, concluindo que "seria bem mais prejudicial ao pais não ter a barragem". O rio Sabor, um dos últimos rios portugueses não represados, o eco-sistema do seu vale que tem características ecológicas únicas pela sua fauna e flora, estão pois condenados pela ditadura do progresso.

Compreende-se a preocupação do Governo, e reconhece-se a pressão a que estamos todos submetidos. Já não se trata do problema de não dispormos de combustíveis fósseis. Sabe-se que Portugal precisa de ajustar a sua produção de energia ao cumprimento das metas estabelecidas pelos acordos de Quioto que exigem a diminuição drástica na emissão de CO2. A compatibilização dessas metas ambientais com o indispensável crescimento económico é um grande desafio que exige sacrifícios e grandes investimentos. Por muito vantajosa que seja a produção de energia hidroeléctrica, a verdade é que as grandes barragens apresentam impactos elevados e irreversíveis, e por isso, é urgente adoptar outras soluções que incentivem a produção de energias renováveis de menor custo ambiental. É o caso das energias solar e eólica, que podem ser produzidas a partir de pequenas unidades. Apesar do nosso território ser particularmente favorável ao seu aproveitamento, a sua produção estagnou. É, igualmente, indispensável agir sobre o lado do consumo, através de medidas de incentivo à eficiência. Não é admissível que Portugal continue a desperdiçar energia na indústria, na habitação e nos transportes, sendo hoje um dos países da Europa com menor eficiência energética.

A barragem do Sabor é pois um exemplo dos custos que decorrem da nossa incapacidade estratégica e da fragilidade do plano energético nacional que nos obriga a condenar uma paisagem única e um património natural para aumentar a produção energética em meio por cento. Se conseguirmos ultrapassar este défice estratégico, é possível que no futuro, quem decide não se veja condicionado pelas circunstâncias e conculua que o benefício de uma nova barragem já não compensa os elevadíssimos custos e sacrifícios que lhe são inerentes.

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SABOR: TÊM QUE NOS PAGAR!

Por Manuel Cardoso
Publicado no Mensageiro de Bragança

Se a Barragem do Sabor vier a ser construída, o Estado tem de prever e executar um processo de indemnização compensatória pela sua construção. Não basta um pagamento aos proprietários dos terrenos pela expropriação da área inundada. Há que fazer outros tipos de trabalhos com vista a minimizar os efeitos de impacte ambiental da obra e salvaguardar o património afectado. Como? Desde logo monitorizar e investigar toda a área que vai ser alagada, proceder ao estudo dos ecossistemas e habitats que vão ser destruídos e conseguir a sua conservação quer em bancos de germoplasma quer na recriação e investimento numa área compatível onde se possam manter. Isto exigirá estudo e investimento em recursos humanos mas será compensador: Trás-os-Montes precisa de investimento em recursos humanos, podemos ser exemplo de um trabalho pioneiro e cientificamente avançado e promove-se a atracção de investigadores e técnicos de ambiente. Para lá de se constituir um campo de trabalho potencial para os recursos que há no ensino superior.

Mas se a barragem do Sabor não vier a ser construída, temos que ser compensados! De facto, a agitação de miragens que depois não se concretizam no horizonte do nosso não desenvolvimento exige que, quando os políticos criam a expectativa de uma obra e depois a não concretizam, nos devam indemnizar por isso. Como? Com a construção das outras infraestruturas necessárias e inadiáveis para a nossa permanência em Trás-os-Montes. A construção da barragem do Sabor iria ter implicações, entre outros domínios, na melhoria de acessibilidades entre Macedo e Mogadouro bem como na redefinição e construção das vias de ligação entre as freguesias ribeirinhas. A sua não-construção não pode continuar a significar atrasos e adiamentos das obras que seriam suas complementares porque elas são necessárias na mesma. Mais: tornam-se mais necessárias ainda como compensação do não investimento.

O pior que nos pode acontecer nesta questão da Barragem do Sabor é cairmos na armadilha em que se caiu aquando da Barragem do Côa. Depois de uma tremenda demagogia feita em cima do assunto quer pelos que eram a favor da barragem quer, sobretudo, pelos que eram contra (que não é o mesmo que dizer que seriam a favor das famosas gravuras!...), venceu a tese da inutilidade: a obra parou já com impactos paisagísticos assinaláveis, a população local pouco ou quase nada lucrou (a não ser os vendedores dos famosos vinhos! – e ainda bem) e as ditosas gravuras pouca ou nenhuma mais-valia proporcionaram ainda (embora tenham potencial para isso). No caso do nosso Sabor, que é um rio ímpar e notável hoje em dia pelas singulares circunstâncias de estar praticamente “em bruto”, tal como a natureza o fez, jóia ecológica em toda a Europa, o pior que pode acontecer é a discussão começar a ficar inquinada pelas meias verdades e pela demagogia, passar a servir de bandeira política a uns quejandos que nunca puseram os pés no Sabor, não hão-de vir viver para Trás-os-Montes e não experimentam das nossas dificuldades nem comungam do nosso atraso. Saibamos ter sobre este assunto uma discussão honesta, técnica e que salvaguarde um bem que nos pertence e às gerações que virão depois de nós.

Saibamos que com ou sem a barragem, há que pagar pelas decisões que se tomam e que nos afectam. Os votos não são uma forma de pagamento. Paga-se em Euros. Os votos poderão ser uma forma de retribuição pelo pagamento de uma decisão correcta. Mas, primeiro, temos que ser pagos pela decisão que vier a ser tomada. Porque a barragem não é só para nós. Os seus inconvenientes são-no, de certeza. Já estão a ser. Já nos deviam estar a pagar!

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