segunda-feira, julho 05, 2004

Lembrando Sophia de Mello Breyner Andresen

Sophia de Mello Breyner Andresen morreu.

A sua voz é agora o sussurro de uma cascata que bordeja o mar onde o seu espírito, certamente recupera os instantes que amando, em vida, desejou.

Sophia morreu porque, hoje, sabemos que a imortalidade dos corpos não nos é destinada, mas a sua alma continua na poesia, nas palavras que com suor e sangue cinzelou de sentidos e sentimentos.

Sophia continuará nos instantes de silêncio, em que o rumor dos campos que respiram o início das flores a reflectir no luar se continua. E, com Sophia não deixaremos de recordar essa, esta nossa gente, porque!

E por outras madrugadas seguimos pelo campo fora fotografando sempre e quando para que o esquecimento não obnubile a memória.

E, talvez numa gruta, nalguma gruta tenha Sophia sonhado o fundo da mar, do mar que tanto amou e imagina a cidade onde a sua alma abandonou o corpo mortal e se tornou imortal.

Porque o seu exemplo cívico e a poesia que a fez e onde se fez se continuarão a encher-nos a natureza. E os que a compreendemos e amamos.

António Eloy

------- Selecção de textos

«Instante»

Deixai-me limpo
O ar dos quartos
E liso
O branco das paredes

Deixai-me com as coisas
Fundadas no silêncio


«Como o Rumor»

Como o rumor do mar dentro de um búzio
O divino sussurra no universo
Algo emerge: primordial projecto.


«Campo»

Estou só nos campos
A doce noite murmura
A noite me ilumina
Corre em meu coração um rio de frescura
De tudo o que sonhou minha alma se aproxima

«Inicial»

O mar azul e branco e as luzidias
Pedras: O arfado espaço
Onde o que está lavado se relava
Para o rito do espanto e do começo
Onde sou a mim mesma devolvida
Em sal espuma e concha regressada
À praia inicial da minha vida


«Flores»

Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
De uma manhã futura.

«Luar»

O luar enche a terra de miragens
E as coisas têm hoje uma alma virgem,
O vento acordou entre as folhagens
Uma vida secreta e fugitiva,
Feita de sombra e luz, terror e calma,
Que é o perfeito acorde da minha alma.


«Sacode as Nuvens»

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar.
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que tu respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.


«Esta Gente»

Esta gente cujo rosto
Às vezes luminoso
E outras vezes tosco

Ora me lembra escravos
Ora me lembra reis

Faz renascer meu gosto
De luta e de combate
Contra o abutre e a cobra
O porco e o milhafre

Pois a gente que tem
O rosto desenhado
Por paciência e fome
É a gente em quem
Um país ocupado
Escreve o seu nome

E em frente desta gente
Ignorada e pisada
Como a pedra do chão
E mais do que a pedra
Humilhada e calcada

Meu canto se renova
E recomeço a busca
De um país liberto
De uma vida limpa
E de um tempo justo


«Porque»

Porque os outros se mascaram mas tu não.
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.

Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.


«Madrugada»

Um leve tremor precede a madrugada
Quando mar e céu na mesma cor se azulam
E são mais claras as luzes dos barcos pescadores
E para além de insânias e rumores
A nossa vida se vê extasiada

«Campo»

Estou só nos campos
A doce noite murmura
A lua me ilumina
Corre em meu coração um rio de frescura
De tudo o que sonhou minha alma se aproxima

«As Fotografias»

Era quase no inverno aquele dia
Tempo de grandes passeios
Confusamente agora recordados -
A estrada atravessava a serra pelo meio
Em rugosos muros de pedra e musgo a mão deslizava -
Tempo de retratos tirados
De olhos franzidos sob um sol de frente
Retratos que guardam para sempre
O perfume de pinhal das tardes
E o perfume de lenha e mosto das aldeias


«Quando»

Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar,
E como hoje igualmente hão-de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei,
Haverá longos poentes sobre o mar,
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.

«Não te Esqueças Nunca»

Não te esqueças nunca de Thasos nem de Egina
O pinhal a coluna a veemência divina
O templo o teatro o rolar de uma pinha
O ar cheirava a mel e a pedra a resina
Na estátua morava tua nudez marinha
Sob o sol azul e a veemência divina

Não esqueças nunca Treblinka e Hiroshima
O horror o terror a suprema ignomínia


«As Grutas»

O esplendor poisava solene sobre o mar. E - entre as duas pedras erguidas numa relação tão justa que é talvez ali o lugar da Balança onde o equilíbrio do homem com as coisas é medido - quase me cega a perfeição como um sol olhando de frente. Mas logo as águas verdes em sua transparência me diluem e eu mergulho tocando o silêncio azul e
rápido dos peixes. Porém a beleza não é solene mas também inumerável. De forma em forma vejo o mundo nascer e ser criado. Um grande rascasso vermelho passa em frente a mim que nunca antes o imaginara. Limpa, a luz recorta promontórios e rochedos. É tudo igual a um sonho extremamente lúcido e acordado. Sem dúvida um novo mundo nos pede novas palavras, porém é tão grande o silêncio e tão clara a transparência que eu muda encosto a minha cara na superfície das águas lisas como um chão.

As imagens atravessam os meus olhos e caminham para além de mim. Talvez eu vá ficando igual à almadilha da qual os pescadores dizem ser apenas água.

Estarão as coisas deslumbradas de ser elas? Quem me trouxe finalmente a este lugar? Ressoa a vaga no interior da gruta rouca e a maré retirando deixou redondo e doirado o quarto de areia e pedra. No centro da manhã, no centro do círculo do ar e do mar, no alto do penedo, no alto da coluna está poisada a rola branca do mar. Desertas surgem as pequenas praias.

Eis o mar e a luz vistos por dentro. Terror de penetração na habitação secreta da beleza, terror de ver o que nem em sonhos eu ousara ver, terror de olhar de frente as imagens mais interiores a mim do que o meu próprio pensamento. Deslizam os meus ombros cercados de água e plantas roxas. Atravesso gargantas de pedra e a arquitectura do labirinto paira roída sobre o verde. Colunas de sombra e luz suportam céu e terra. As
anémonas rodeiam a grande sala de água onde os meus dedos tocam a areia rosada do fundo. E abro bem os olhos no silêncio líquido e verde onde rápidos, rápidos fogem de mim os peixes. Arcos e rosáceas suportam e
desenham a claridade dos espaços matutinos. Os palácios do rei do mar escorrem luz e água. Esta manhã é igual ao princípio do mundo e aqui eu venho ver o que jamais se viu.

O meu olhar tornou-se liso com um vidro. Sirvo para que as coisas se vejam.

E eis que entro na gruta mais interior e mais cavada. Sombrias e azuis são águas e paredes. Eu quereria poisar como uma rosa sobre o mar o meu amor neste silêncio. Quereria que o contivesse para sempre o círculo de
espanto e de medusas. Aqui um líquido sol fosforescente e verde irrompe dos abismos e surge em suas portas. Mas já no mar exterior a luz rodeia a Balança. A linha das águas é lisa e limpa como um vidro. O azul recorta os promontórios aureolados de glória matinal. Tudo está vestido de solenidade e de nudez. Ali eu quereria chorar de gratidão com a cara encostada contra as pedras.

«Fundo do Mar»

No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.


«Mar»

De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua,
Onde me uni ao mar, ao vento e à lua. II

Cheiro a terra as árvores e o vento
Que a Primavera enche de perfumes
Mas neles só quero e procuro
A selvagem exalação das ondas
Subindo para os astros com um grito puro.


«Cidade»

Cidade, rumor e vaivém sem paz das ruas,
Ó vida suja, hostil, inutilmente gasta,
Saber que existe o mar e as praias nuas,
Montanhas sem nome e planícies mais vastas
Que o mais vasto desejo,
E eu estou em ti fechada e apenas vejo
Os muros e as paredes, e não vejo
Nem o crescer do mar, nem o mudar das luas.

Saber que tomas em ti a minha vida
E que arrastas pela sombra das paredes
A minha alma que fora prometida
Às ondas brancas e às florestas verdes.


---- lembrado na ambio por José Carlos Marques

«Se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a árvore, com o rio é necessariamente levado pelo espírito da verdade que o anima a procurar uma relação justa com o homem. Aquele que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso sofrimento do mundo.»

3 comentários:

Anónimo disse...

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Anónimo disse...

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Anónimo disse...

Muito bem!
As poemas de Sophia são muito bonitos!