quarta-feira, agosto 17, 2005

NUCLEAR? NÃO, NÃO E NÃO, OBRIGADO


Por João Joanaz de Melo

Foi recentemente divulgada em Portugal a intenção de um grupo económico de lançar uma central nuclear, alegadamente como parte de uma estratégia de redução da dependência do petróleo.

Esta veleidade mereceu uma recusa implícita do Governo português, que declarou não tencionar alterar a sua recentemente anunciada estratégia para o sector energético. No entanto, a questão merece ser seriamente examinada, porque significa que o lobby nuclear está vivo e de saúde, e portanto disposto a voltar à carga a qualquer momento. Cidadão prevenido vale por dois... Para enquadrar o problema, comecemos por examinar o estado do sector energético em Portugal:

1) Portugal tem dos piores indicadores de eficiência energética da União Europeia. Gastamos mais energia para produzir uma unidade de riqueza (a chamada intensidade energética do PIB) do que quase todos os outros países da UE15. Na última década, este indicador melhorou marginalmente no sector industrial, mas piorou no sector dos edifícios (habitação e serviços) e sobretudo no sector dos transportes; em média, nesta década piorámos 10% a nossa intensidade energética do PIB, enquanto a média comunitária melhorou 10%;

2) Segundo o protocolo de Quioto, as emissões de gases de efeito de estufa com origem em Portugal não deveriam aumentar mais de 27% entre 1990 e a média dos anos 2008-2012. Ora, até agora aumentámos quase o dobro, sendo muito difícil alcançar em 2008-2012 as metas de Quioto;

3) A dependência externa de Portugal no sector energético atinge hoje os 87%, tendo piorado nos últimos anos. A importação de petróleo representa só por si cerca de 60% das nossas fontes de energia, pelo que a nossa economia é altamente vulnerável às oscilações do mercado petrolífero internacional. O mercado do petróleo é muito volátil, porque as suas origens são concentradas em poucos países, muitos sofrendo de instabilidade política, e organizados num cartel que exerce controlo sobre as produções e os preços. Acresce que, desde há poucos anos, a extracção anual de petróleo tem ultrapassado a descoberta de novas reservas economicamente exploráveis, e que estamos perto da capacidade nominal de produção, devido ao forte aumento da procura no mercado internacional (especialmente por parte da China e Índia). Daqui resulta uma tendência inequívoca de aumento significativo do preço do petróleo nos próximos anos, e paralelamente uma pressão para encontrar alternativas.

Perante este quadro, a política energética tem que assentar em dois pilares estratégicos:

1) Aposta no uso racional da energia, a nível da produção, transporte e consumo, com ênfase nos sectores mais ineficientes: transportes e edifícios;

2) Aposta nas energias renováveis, em especial as energias "doces" ou descentralizadas, com a correspondente redução da dependência do petróleo e do impacto ambiental. Estas orientações estratégicas são inquestionáveis, tendo em conta as suas vantagens em matéria económica, ambiental e de segurança do abastecimento, estando claramente consagradas em diversos documentos programáticos nacionais e comunitários.

Infelizmente, não têm sido postas seriamente em prática, por três ordens de razões: (i) a dificuldade de implementação, porque implica lidar com milhares de pequenos produtores e milhões de consumidores, em vez de meia dúzia de grandes projectos centralizados; (ii) o custo de desenvolvimento e investimento inicial relativamente elevado nalgumas aplicações, embora compensador a médio prazo; e (iii) a oposição das indústrias energéticas tradicionais (petrolífera, electricidade, nuclear), que vêem o seu negócio ser prejudicado e portanto usam a sua considerável influência e peso económico para atrasar a transição perante a conivência do poder político e a apatia dos cidadãos, que não atribuem a devida importância ao problema.

Como encaixa então neste quadro a energia nuclear? Os defensores da opção nuclear, aparentemente convertidos às politicamente correctas preocupações ambientais, argumentam que a produção de electricidade a partir da energia nuclear gera menos gases de efeito de estufa do que a queima de combustíveis fósseis baseados no carbono. É verdade.

Do outro lado da balança, examinemos as desvantagens:

1) Apesar de medidas de segurança cada vez mais sofisticadas, não podemos pôr de parte a hipótese de ocorrência de acidentes. Tomemos Chernobil como referência: dezenas de mortos directos, centenas de milhares indirectos (principalmente devido ao desenvolvimento de cancros), dezenas de milhares de quilómetros quadrados de território contaminados, prejuízos sociais incalculáveis. Ainda que a probabilidade de repetição de um acidente desta magnitude seja muito baixa, a possibilidade subsiste e não pode ser menosprezada;

2) Qualquer central nuclear pode produzir combustível para armas nucleares, e qualquer central nuclear ou transporte de materiais radioactivos é um alvo apetitoso para terroristas. No actual cenário geoestratégico em que o inimigo público número um é o terrorismo internacional, esta não é uma questão menor;

3) A energia nuclear é usada apenas para produzir electricidade, que representa cerca de 20% do consumo de energia final. Tendo em conta as condicionantes técnicas do sistema electroprodutor, a opção nuclear poderia produzir, talvez, optimisticamente, um terço da electricidade. Por outras palavras, ainda que a energia nuclear fosse aceitável, 93% do problema energético continuaria por resolver. Em qualquer caso, o nuclear não é alternativa ao petróleo (já hoje os derivados do petróleo são uma fonte menor na electroprodução, atrás do carvão, do gás natural e da grande hídrica);

4) Embora Portugal disponha de reservas minerais de urânio, todo o resto da tecnologia do ciclo nuclear é importada (refinação, produção e pós-processamento do combustível, bem como o equipamento das centrais). A incorporação da mão-de-obra e da indústria nacional no nuclear seria certamente a mais baixa de qualquer alternativa de produção ou uso eficiente da energia em Portugal;

5) O ciclo do combustível nuclear é altamente poluente, desde a extracção ao destino final, como as nossas minas da Urgeiriça atestam de forma gritante. Não parece ser grande ideia trocar a emissão de gases de efeito de estufa (de efeitos incertos embora preocupantes) por poluição radioactiva e de metais pesados (de efeitos inquestionavelmente graves e duradouros);

6) Não foi até à data demonstrada qualquer tecnologia segura para a armazenagem a longo prazo dos resíduos radioactivos de alta actividade, gerados pelas centrais nucleares. Seria sempre uma pesada herança para as gerações vindouras, como o é já hoje em muitos países, no rescaldo da euforia nuclear dos anos 40 e 50;

7) O custo de investimento numa central nuclear é muito elevado (por força das sofisticadas medidas de segurança), superior às termoeléctricas clássicas ou à maioria das energias renováveis. Se somarmos a isto o custo de desmantelamento (ainda maior que o da instalação, porque uma central nuclear obsoleta é toda ela um resíduo altamente perigoso), não é concebível um programa nuclear em Portugal, como em qualquer outro país, sem pesados subsídios estatais que dificilmente serão social e politicamente aceitáveis;

8) Investimentos elevados num programa nuclear (como de resto em quaisquer grandes centrais electroprodutoras) roubariam recursos e seriam desincentivadores para as apostas estratégicas, muito mais interessantes a prazo, da eficiência energética e da produção descentralizada de energias renováveis. Ou seja, seriam frontalmente contra as estratégias energéticas aprovadas;

9) Finalmente, mas não menos importante, a localização de centrais nucleares apresenta dificuldades insuperáveis; esta é aliás uma das principais razões para o congelamento ou desinvestimento dos programas nucleares por toda a Europa. Não só os requisitos técnicos são muito exigentes (estabilidade geológica e proximidade de uma grande fonte de água, entre outros), como nenhuma localidade em Portugal aceitará jamais ter uma central nuclear ao pé da porta (veja-se a recente reacção à proposta de co-incineração de resíduos, uma actividade implicando riscos incomparavelmente menores que os de uma central nuclear). Como costumavam dizer os nossos planeadores energéticos, a melhor localização para uma central nuclear portuguesa é em França (desde há muito que importamos quantidades relevantes de electricidade "nuclear" francesa).

Em resumo, a energia nuclear dificilmente passará de um paliativo temporário com alto custo, riscos inaceitáveis e desvantagens incontornáveis. O seu principal mérito parece ser o de representar mais uma acha para a fogueira, num debate até agora pateticamente morno sobre a política energética uma questão de enorme alcance no quadro do desenvolvimento sustentável que queremos para Portugal e para a Europa.

Publicado na Revista atlantico

Na mesma revista podem encontrar outros artigos sobre o "Nuclear":

A CHINA JÁ DESPERTOU, por Helena Matos

LÍDIA FERREIRA - "O NUCLEAR É O FUTURO", por Hugo Gonçalves

A POLITICA ENERGÉTICA E A MENTALIDADE ESTATISTA, por João Miranda

2 comentários:

Ponto Verde disse...

Subscrevo e elogio.

Alex e Gustavo disse...

Está muito bom e bem escrito.
Parabéns!!!