sábado, março 04, 2006

Plano Sectorial da Rede Natura 2000 Não cumpre objectivos mínimos. E põe em evidência degradação do próprio ICN

A Quercus analisou a proposta de Plano Sectorial da Rede Natura 2000, no âmbito do processo de discussão pública que decorre até dia 10 de Março, e chegou à conclusão que este documento, apesar de atrasado em mais de 4 anos, está ferido gravemente por falta de informação e rigor. O Plano Sectorial está estruturado em torno de dois aspectos fundamentais: a identificação dos valores naturais a preservar (habitats e espécies), e a definição das orientações de gestão; curiosamente os dois aspectos em que este documento em discussão mais falha.

A Quercus constatou várias situações graves neste documento em discussão pública que interessa destacar:

Falta de informação
O próprio Plano Sectorial reconhece, no seu preâmbulo e em vários momentos ao longo do documento, que os conhecimentos disponíveis sobre os valores naturais, à excepção da avifauna, são incipientes. A ausência de informação sobre a localização dos valores naturais é um aspecto particularmente grave quando se sabe que é fundamental conhecer para conservar. Este Plano, ao encabeçar a lista de orientações de gestão de âmbito genérico com a “necessidade de informação para a gestão da Rede Natura 2000”, reconhece a importância e necessidade em colmatar esta lacuna mas ao mesmo tempo revela uma das maiores fragilidade do Plano. O Instituto de Conservação da Natureza (ICN) tem responsabilidades conferidas pela Lei em cerca de um quinto do território nacional, onde supostamente deve condicionar as várias actividades humanas de forma a garantir a preservação dos valores naturais. Neste contexto, cabe perguntar como poderá cumprir as suas obrigações legais, desconhecendo a localização dos valores a proteger.

Cartografia sem validade
A cartografia, apresentada à escala 1/100.000, tem uma validade quase nula, consistindo, na generalidade dos casos, em listagens incompletas e sem qualquer fidelidade geográfica. Em muitas situações, estas listagens apresentam erros técnicos graves. Ao assumir que a decisão anterior de executar a cartografia à escala 1/100.000 “implicou simplificações e generalizações que impedem a sua utilização directa fora do contexto do plano, sem a respectiva validação”, o próprio plano assume também que esta cartografia não poderá ser uma fonte de interpretação para a integração das suas disposições. Dizer que a cartografia do plano deve ser utilizada a título indicativo é dar contornos de inutilidade - e com razão - ao instrumento agora em consulta pública. O Plano acrescenta também que “na informação disponível existem discrepâncias acentuadas de qualidade e pormenor entre as diferentes áreas do país” e admite que no caso concreto da flora “a generalidade da informação cartográfica existente refere-se a registos pontuais e não a levantamentos sistemáticos da área da distribuição das espécies”.

Sem querermos denotar falta de sensibilidade a um raro e exemplar caso de reconhecimento dos erros cometidos e de manifesta incapacidade da própria Administração Pública, não podemos deixar de questionar sobre o que foi feito em mais de 30 anos de existência do ICN.

Dependência das autarquias
A aferição e validação da informação sobre a presença ou não dos valores naturais aquando da inserção das normas e orientações nos instrumentos de gestão territorial, é um dos aspectos mais preocupantes deste plano sectorial, pois deixa esta tarefa nas mãos das autarquias. Ao definir que a elaboração da informação de base cartográfica a verter para os Planos Especiais e Planos Municipais de Ordenamento do Território serão da responsabilidade das entidades competentes por esses documentos, esta proposta de Plano Sectorial abre a porta para que as autarquias façam uma interpretação minimalista dos valores existentes, satisfazendo interesses não compatíveis com a manutenção dos valores naturais num estado favorável de conservação.

Orientações de gestão muito vagas
A proposta de Plano Sectorial para a Rede Natura 2000 prevê, nas suas orientações genéricas, a elaboração de planos de gestão para os sítios ou Zonas de Protecção Especial “onde a compatibilização da conservação dos valores naturais com as actividades neles praticadas se apresenta como uma tarefa de elevada complexidade”. No entanto, esta disposição fica muito aquém do estipulado no Decreto-Lei nº 49/2005, de 24 de Fevereiro, pois deveria identificar desde logo os sítios que se sujeitarão a plano de gestão já que as situações de conflitos de interesses coexistem há muito e estão claramente identificadas. Por outro lado, as chamadas orientações de gestão existentes no Plano Sectorial por vezes são tão vagas que se tornam rigorosamente inúteis do ponto de vista do condicionamento do uso do território e não fica claro como é que serão vertidas de forma exequível para os planos de ordenamento do território.

Plano põe em evidência degradação do próprio ICN
O ICN tem nos seus quadros ou em regime de prestação de serviços mais de duas centenas de técnicos superiores com formação nas áreas da biologia, botânica, zoologia, engenharia florestal e agronómica, e dezenas de técnicos profissionais e auxiliares com formação adequada nestas áreas. O Sr. Ministro do Ambiente não poderá deixar de se interrogar relativamente à forma como tem sido efectuada a gestão de pessoal e das prioridades de trabalho para, 30 anos depois do seu início, a autoridade administrativa responsável pela conservação da Natureza desconhecer onde se localizam os valores que tem por obrigação legal preservar.

Alguns aspectos positivos da actual proposta:
- Ao contrário do que acontece para os Sítios de Interesse Comunitário, salienta-se a grande qualidade do trabalho apresentado para as Zonas de Protecção Especial (ressalva-se que, para os dois casos, algumas das orientações de gestão são vagas e podem dar azo a interpretações não consentâneas com a preservação dos valores naturais);

- As peças escritas sobre os valores naturais apresentam grande qualidade, destacando-se pela positiva as fichas referentes à interpretação dos habitats naturais e as peças sobre as aves, e pela negativa as referentes aos invertebrados e aos peixes, devido à insuficiência de conhecimento científico em grande parte delas demonstrado. Uma saudação especial para as fichas de caracterização dos habitats naturais que vieram trazer a tão desejada metodologia de interpretação dos habitats naturais que, se estivesse elaborada antes da caracterização do património natural, teria evitado erros desnecessários.

- A proposta de definir os limiares e tipologias de sujeição dos projectos a AIA ou a análise de incidências ambientais é fundamental para não deixar margens a subjectividades. Ficamos a aguardar ainda em tempo de discussão pública pelas citadas definições.

A Quercus propõe profunda reformulação do Plano Sectorial:

Este plano, tal como está, não cumpre os objectivos mínimos para o qual foi criado: gerir o território com base em informação válida e credível sobre os valores naturais presentes, numa escala adequada e geo-referenciada. Tendo em conta as debilidades identificadas nesta proposta de Plano Sectorial para a Rede Natura 2000 e assumindo-se que, na prática, este plano, após a sua aprovação, entrará de imediato em revisão (não esquecer que a lista de orientações de gestão de âmbito genérico é encabeçada com a “necessidade de informação para a gestão da Rede Natura 2000”, dando um prazo de cinco anos para que isso aconteça e um prazo de seis anos para que os planos de ordenamento do território se adaptem), a Quercus propõe desde já uma profunda remodelação que inclua, entre outros aspectos:

- A identificação e a descrição das medidas que deverão ser implementadas, a curtíssimo prazo, para que o ICN disponha da informação mínima que lhe permita cumprir as suas funções a que está obrigado por Lei. A Quercus dispõe-se, desde já, a colaborar com o ICN neste processo, na medida das suas possibilidades;

- Um maior aprofundamento e concretização das Orientações de Gestão, sem receios de se optar pela interdição em detrimento do permissivo “condicionar”;

- A obrigação do ICN fornecer a informação essencial para a revisão dos Planos de Ordenamento do Território no prazo previsto, em vez desse trabalho ser deixado ao critério, nomeadamente, das autarquias, as quais poderão desvirtuar completamente os objectivos de conservação subjacentes à Rede Natura 2000.

- A identificação dos Sítios e Zonas de Protecção Especial que se sujeitarão de imediato a plano de gestão, já que as situações de conflitos de interesses coexistem há muito e estão claramente identificadas.- A quantificação dos investimentos necessários para assegurar que as orientações do Plano Sectorial são efectivamente concretizadas no terreno. O facto da macro-escala adoptada e a falta de informação disponível dificultarem a apresentação de valores de referência revela mais uma vez o grau de inutilidade desta proposta de plano. Sem valores de referência as negociações relativas ao próximo Quadro Comunitário de Apoio apresentam-se desde logo em desvantagem para a conservação da Natureza.

Lisboa, 2 de Março de 2006
A Direcção Nacional da Quercus – Associação Nacional de Conservação da Natureza

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