quarta-feira, maio 17, 2006

Quem paga a factura do combate aos fogos florestais?

Segundo informe de 12 de Maio da agência Lusa, o economista e ex-ministro socialista Daniel Bessa defendeu nesse mesmo dia, numa conferência do Centro Pinus decorrida no Porto, a isenção de impostos na transmissão de propriedades e sobre os rendimentos florestais como forma de promover o reordenamento da floresta portuguesa.

Em notícia do jornal PÚBLICO de dia 15 de Maio, constava que segundo a Estratégia Nacional para as Florestas, Portugal gasta oficialmente 27 euros por hectare, a cada ano, para proteger as florestas dos incêndios. A este valor devem ser acrescidas as perdas dos bens e serviços florestais pagos com subsídios nacionais e comunitários, que resultam numa soma muito maior.

Como se sabe, mais de 97% da floresta nacional é privada, de modo que os rendimentos da exploração de madeira, cortiça, cogumelos, espargos, silvopastorícia e caça pertencem aos particulares. Na grande maioria dos casos as despesas de reflorestação, limpeza, desmatação, ordenamento, abertura de acessos, prevenção e combate a incêndios são ou subsidiadas, ou suportadas directamente pelo Estado. Só as despesas de protecção contra incêndios florestais alçar-se-ão a 170 milhões de euros (34 milhões de contos) por ano entre 2006 e 2010.

Panorama extraordinário, portanto.

Os nossos proprietários de terrenos rústicos, sejam agrícolas ou sejam florestais, estão tecnicamente isentos de qualquer taxação sobre o solo que possuem - caso único entre os países ocidentais. O solo é um recurso natural escasso e um factor de produção de riqueza. Sempre que o Estado reconhece uma propriedade privada e a protege com o seu aparelho jurídico e policial, está a conceder ao seu proprietário o privilégio de ser o único a explorar aquele recurso natural, e a sonegar esse direito a todos os demais. Por isso as doutrinas de Economia dos Recursos Naturais defendem que se imponha uma taxa sobre o uso do solo, completamente independente dos impostos sobre o rendimento do proprietário. Essa taxa, cujos montantes são investidos em obras e serviços públicos, destina-se repor a justiça social que é incontornavelmente ferida pelo acesso desigual ao recurso natural solo.

Nos Estados Unidos, por exemplo, essa taxa pode equivaler a 4% do valor venal do solo; ou seja, a cada ano o proprietário paga ao Estado 4% do preço de mercado do seu hectare. Os proprietários que não queiram ou não saibam gerir bem os seus empreendimentos agro-florestais colocam-nos imediatamente à venda, o que assegura um mercado de solos fluido e a preços não-especulativos. Além disso, os proprietários têm responsabilidade civil pelos danos ambientais que possam causar.

Ora, entre nós passa-se todo o fenómeno contrário. Ao contrário dos outros países ocidentais, não se aplica nenhuma taxa. Todo o contrário: os titulares dos terrenos habilitam-se a receber subsídios pelo mero facto de serem proprietários. Colhem o benefício do subsídio, mas não o encargo da taxa que reporia a justiça redistributiva.

Outro problema não menos ponderoso nasce do carácter antiquado do nosso Código Civil, onde está plasmado o conteúdo dos direitos de propriedade. E constata-se isto: o proprietário goza à partida de todos os direitos (“plena re potestas” – plenos poderes sobre a coisa possuída) e nenhuns deveres. Não é obrigado a manter a camada arável do solo. Não é obrigado a dar-lhe o mais módico dos cuidados agrícolas ou silvícolas. Por consequência, tem o direito de até decapitar os seus solos se assim o desejar – e nalguns casos com a ajuda dos subsídios à cerealicultura, como se tem visto nas serras algarvias.

Perante este panorama, sugiro uma medida diametralmente oposta à avançada por Daniel Bessa. Como foi dito, este ano o Estado prepara-se para gastar 27 € por hectare de floresta na protecção contra incêndios (que eclodem maioritariamente em propriedade privada). Como financiar estes gastos? Ora, cobrem-se aos titulares dos terrenos florestais 27 € de taxa por hectare por ano para cobrir essa despesa. Quem usufrui dos rendimentos sobre um recurso natural escasso, como é o solo agro-florestal, deve também suportar as despesas da sua manutenção. O solo não pode continuar a ser pretexto para a mera distribuição de receitas e de privilégios aos seus titulares - isso justificava-se na época feudal, não num Estado de Direito democrático com uma economia desejavelmente meritocrática.

Em Portugal, quem possui um automóvel ligeiro é obrigado a pagar por ano uns 30 € de imposto de selo, é obrigado a inspeccionar as condições de manutenção do veículo, e obrigado a pagar um seguro de responsabilidade civil sobre danos causados a terceiros. Quem possui um terreno florestal não paga taxa, não é obrigado a fazer a manutentenção das suas matas, não é responsabilizado pelos encargos trazidos a terceiros pelos incêndios nos seus terrenos, mas tem direito a subsídios e a gozar dos lucros da floresta.

Reza uma máxima clássica do Direito: "Ubi commoda, ibi incommoda". Quem goza as vantagens deve arcar também com as desvantagens. Seja.

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