Lá dizia Gustave Le Bon a respeito da psicologia das multidões: quando entram em euforia passam a acreditar em qualquer sofisma, por absurdo que seja. Ora, aproveitando a euforia anti-ambientalista dos últimos dias uma importante figura da nossa política decidiu entusiasmar os portugueses pelas centrais nucleares, incutindo-lhes tranquilidade perante o risco a elas inerente. Num debate organizado pelo CDS, o vice-presidente do partido proferiu sem qualquer pudor esta extraordinária afirmação:
"Num quilo de resíduos radioactivos, 97% é reciclável. Dá um dedal de material radioactivo."
...e pelo que consta na reportagem ninguém na plateia esclareceu o preclaro orador quanto a pesos e medidas, nem desmascarou o sofisma. Como pôde o palestrante minimizar os riscos, argumentando que um quilo de resíduos resulta em um centímetro cúbico de material radioactivo, quando em Goiânia bastou um volume aproximado para provocar um dos maiores acidentes nucleares da História, segundo a Agência Atómica Internacional?
Por que motivo obnubilou o essencial, não enunciando a quantidade de curies emitidos por cada um desses centímetros cúbicos, e não a multiplicou pelo número deles a serem produzidos em Portugal caso vingue a central nuclear?
O perpicaz autor da frase, Dr. Sampaio Nunes, foi em tempos Secretário de Estado da Ciência e Inovação e director da Direcção-Geral de Energia da Comissão Europeia. Na qualidade de ex-ocupante de semelhantes cargos governamentais, tinha a obrigação de não confundir unidades de medida de massa com unidades de volume e unidades de radioactividade, sobretudo num discurso público supostamente pedagógico.
Mas nem só de vida política se deve fazer uma carreira, asseveram-nos os ideólogos liberais. Deve-se ser empreendedor, prosperar no mercado sem a interferência nefasta do Estado. Por isso, e num gesto de grande coerência nas suas opiniões políticas e técnicas, o liberal Dr. Sampaio Nunes defendeu neste encontro as centrais nucleares com a mesma vêemencia com que noutras ocasiões tem defendido projectos nucleares na qualidade de sócio da empresa energética de Patrick Monteiro de Barros.
A peculiar coerência do político-empresário Sampaio Nunes mantêm-se também na questão dos combustíveis fósseis. O entusiasmo com que vende ao Estado centrais nucleares "amigas" do Protocolo de Quioto é tão ardente quanto o entusiasmo com que vende ao mesmo estado refinarias de combustíveis violadoras do dito Protocolo. Dê por onde der, este empresário quer à viva força que os contribuintes portugueses comprem os seus produtos; pena que este probo negócio seja dificultado pelos ambientalistas...
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
8 comentários:
Nesta campanha atirar poeira para o ar, ou discorrer sobre dedais para nos lavar os dedos e os aneis, parece que são os argumentos para procurar enganar tolos.
Só tenho a referir que estes senhores não são liberais, são estatistas, pois querem que seja o Estado a arcar com os custos todos.
Façam como em Inglaterra, onde segundo li o governo concordou com a nuclear...e são os privados que vão pagar tudo, armazenamento e tratamento dos residuos, custos de segurança e transporte, desmantelamento, etc.
Vou ver quantos se chegam à frente.
Liberais? Por cá? Vejam o triste espectaculo do nosso empresariato e desse sr. Barros!
AEloy
Olá Pedro Bingre, hoje vim só bisbilhotar o teu(vosso) blogue.
Ocupam-se de questões super interessantes, e emitem opiniões também muito controversas.
Partilho, no entanto, com todos uma opinião pessoal – o nosso governo é de criatividade e inovação inexcedíveis – ´é que de uma forma ou de outra, encontra sempre maneira de impor a todos os Portugueses, com ou sem meios, a obrigação de se converterem em Accionistas de Investimentos de Alto Risco - este método é originalíssimo. Por favor, digam-me, digam-me não, provem-me, que esta minha ideia está incorrecta.
Vou voltar um outro dia, com mais calma, ao teu(vosso) blogue, porque já percebi que podemos trocar ideias sobre alguns dos vossos temas.
No número especial da revista da Sociedade Portuguesa de Física (Gazeta de Física) dedicada à Conferência As Energias do Presente e do Futuro, que decorreu no IST em Novembro de 2005, aparece um artigo de Pedro Sampaio Nunes, em que (claro) defende a opção nuclear. Referindo-se à questão da segurança das instalações, e tomando o exemplo do acidente de Chernobyl, afirma o seguinte:
"Após vinte anos de desinformação sobre este assunto, as Nações Unidas, através de um relatório em que estiveram envolvidas várais das suas agências, veio dar esclarecimentos sobre este acontecimento: apenas comprovadamente perderam a vida 50 pessoas, sem qualquer evidência de malformações congénitas ou de outro tipo de consequências graves para a saúde dos 600000 afectados."
Admito que possa estar gravemente desinformado, mas isto não corresponde minimamente à ideia que tinha (e tenho) da gravidade do acidente de Chernobyl e dos seus efeitos, ao que oiço dizer ainda hoje perceptíveis em locais tão afastados da Ucrânia como a Escócia. Infelizmente, e ao contrário do costume em comunicações científicas, Pedro Sampaio Nunes não indica, neste artigo, quaisquer referências bibliográficas, pelo que não podemos verificar independentemente o que diz esse estudo da ONU ou, sequer, se ele existe. Dispõem vocês (os autores do blogue ou os seus leitores) de dados (junto com as referências bibliográficas) que me possam esclarecer sobre este assunto? Muito obrigado, e muitos parabéns pelo blogue. Caramba, até quando discutem uns com os outros são instrutivos!
Estimado Cântaro:
O Eng.º Sampaio Nunes não citou devidamente o tal relatório das Nações Unidas justamente porque este continha algumas outras revelações pouco abonatórias das centrais nucleares:
-cinco milhões de pessoas contaminadas pela radioactividade;
-4000 casos de cancro na tiróide;
-êxodo forçado de 350.000 mil pessoas;
(vide http://www.iaea.org/NewsCenter/Focus/Chernobyl/pdfs/pr.pdf)
Sucede que este relatório tem estado sujeito a um veemente contraditório por parte de diversos cientistas, os quais postulam entre 30000 e 60000 mortes por via cancerígena, alertando ainda para os efeitos indeterminados das mutações genéticas produzidas pelo acidente.
(vide http://www.nature.com/news/2006/060417/full/440982a.html).
Suponhamos, no entanto, que Sampaio Nunes está correcto. "Só morreram 50 pessoas" (e 350 mil foram forçadas a abandonar as suas casas, acrescento eu). É fácil ser-se liberal à custa do sofrimento alheio.
Que significa o risco de um enorme custo humano a pagar por outrem, perante o benefício privado que Sampaio Nunes & Monteiro de Barros colherão quando venderem a sua central nuclear ao Estado Português?
Sobretudo, questiono-me ainda: como reagirá Sampaio Nunes se o Estado Português, comovido com a sua defesa do nuclear, decidir comprar a central, abrindo um concurso internacional para a empreitada, que muito provavelmente será vencido em preço e qualidade por uma outra empresa estrangeira? Posso bem imaginar: ele e o seu partido recorrerão a argumentos nacionalistas, dizendo que semelhante encomenda deveria ser feita apenas a uma empresa portuguesa - a sua, pois claro.
Cumprimentos do
PB.
Obrigado pela resposta, Pedro Bingre. Pelo que pude perceber no link que me apontou, os cinquenta mortos a que Sampaio Nunes se referiu no artigo parecem ser os cinquenta funcionários central que morreram de síndrome de exposição aguda a radiações (não sei se é esta a tradução correcta), o que é uma desonestidade evidente! É como dizer que a exposição solar exagerada não mata ninguém. De facto, não. São os melanomas (dela resultantes) que nos devem preocupar.
Por esta ordem de ideias, não valem a pena grandes preocupações com a segurança das instalações. Ao fim ao cabo, mesmo que haja incidentes (descontando a imensamente improvável ocorrência de uma reacção em cadeia descontrolada), apenas os que estiverem a poucas dezenas de metros de distância correm riscos de exposição mortal imediata (o tal síndrome de exposição aguda)... Só esses, pelo menos, correm o risco de serem contabilizados pelas estatísticas de Sampaio Nunes... Todos os outros arriscam-se, apenas, a exposições causadoras de cancros mortais... Ah, bom, que alívio!
Isto não é sério, estão-nos a tentar comer por parvos!
Caro Cântaro:
Seria bonito que Sampaio Nunes provasse o que diz passando uma temporada em Pripyat, uma das duas cidades evacuadas após o acidente de Chernobyl. Poderia aproveitar a ocasião para repetir as suas palestras perante as vítimas sobreviventes e seus familiares, esclarecendo o quão errados estão ao publicarem isto:
http://www.pripyat.com/en/publications/2006/03/28/671.html
Pois e é pena que ninguém tivesse informado que esses 3 por cento são para um reactor de 1000 MW cerca (um pouco mais!) de 2 toneladas cúbicas...por mês de residuos de alta atividade.
Um dedal, claro. Um dedal.
Será que não há quem denuncie este bluff?
AEloy
Pedro Bringe e outros Bloguistas,
Por ter sido tão citado no vosso blogue, venho responder a algumas das vossas afirmações que não são correctas:
Não se pretende vender qualquer central nuclear ao Estado! Isso é uma ideia que vem da organização anterior à actual regulamentação para o sector.
Hoje os candidatos a produtores de energia eléctrica anunciam a sua intenção ao Governo, que por sua vez analiza essa intenção face à capacidade de recepção da rede e à politica energética em vigor. É aí que estamos. Um grupo de investidores pretende introduzir em Portugal a forma mais corrente e mais importante em volume de produzir electricidade na Europa - a nuclear - e aguarda que o Governo através dos mecanismos próprios tome uma posição quando entender oportuno.
O risco comercial é exclusivamente dos investidores, que se tiverem enganado nas contas ou se a central tiver que parar por qualquer razão, terão que suportar os prejuízos. E sem pedir qualquer subsídio ao Estado, nem para o tratamento dos resíduos, nem para o desmantelamento em fim de vida da central. É essa hoje a regulamentação europeia.
A questão dos resíduos é outra das habituais manipulações da ignorância alheia. Não há resíduos mais controlados, isolados e monitorizados, que os resíduos nucleares, e não há memória de um único acidente com resíduos nucleares que tenha provocado vítimas. Outra coisa se passa com os resíduos tóxicos das industrias química e biológica.
Quanto ao volume de resíduos, de facto se toda a electricidade que qualquer um de nós consumirmos durante os 80 anos que iremos razoávelmente durar (400 Mwh)for produzida a carvão, vamos deixar um legado de 250 toneladas de resíduos (CO2, SO2, NOx, metais pesados, partículas, etc.) que originam problemas imediatos de saúde publica de natureza cardio-respiratória e as alterações climáticas. Se essa mesma electricidde for produzida por fissão nuclear, não haverá emissão de qualquer poluente a não ser o tal kilo de combustível irradiado, 97% reciclável. Esse produto reciclado é essencialmente plutónio (a matéria prima das bombas atómicas!) e cuja meia-vida é de dezenas de milhares de anos. Esse plutónio misturado com óxidos de urânio dá origem a uma nova forma de combustível - o MOX - que é de novo utilizado como combustível fresco nas centrais actuais. Daqui a uns quinze anos a 4a. geração irá trazer os reactores regeneradores, que utilizam como combustível o próprio plutónio, resolvendo um grave potencial problema de proliferação de armas nucleares.
Fica o tal dedal de produtos de fissão não deciclável (50 gramas)que terá que ser isolado da biosfera (como deveriam ser as 250 toneladas de CO2, o que se está a tentar fazer com as tecnologias CCS - Carbon Capture and Storage)
Um reactor de 1000 MW produz de facto cerca de 25 toneladas por ano de combustível irradiado e menos de 1 tonelada de resíduos de alta actividade por ano, Eloy, e não 2 toneladas por mês.
Como a Agência Internacional de Energia veio dizer na semana passada, não há solução para as alterações climáticas sem uma acção determinada e imediata nas frentes da eficiência energética, no desenvolvimento e massificação das energias renováveis e na reanimação da energia nuclear. Diabolizar a energia nuclear sem base científica é a meu ver fazer prova de atavismo e um mau serviço à causa ambiental. É impossível parar a ciência e a técnica. Foi sempre daí que sairam as soluções dos problemas que foram ao longo dos tempos afigindo a Humanidade.
Mas respeito as opiniões contrárias e estou sempre pronto a um bom debate de ideias (ainda ontem estive com o Delgado Domingos na Associação Abril numa sala cheia que acabou num mangusto)
Pedro Sampaio Nunes
Enviar um comentário