sábado, agosto 12, 2006

A ruína das jóias da Coroa

Deixo aqui parte de um capítulo do livro «Portugal: O Vermelho e o Negro», que julgo ser oportuno tendo em consoideração o que está a acontecer nos Parques da Serras da Peneda-Gerês e Aire-Candeeiros. Infelizmente não consegui, tecnicamente, colocar aqui um quadro com a área queimada na Rede Nacional de Áreas Protegidas entre 1992.

Numa conferência de imprensa em Agosto de 2005[1], o secretário de Estado do Ambiente, Humberto Rosa, defendeu que «os incêndios são preocupantes quando há pessoas e bens afectados, mas a situação não é de uma enorme gravidade do ponto de vista da conservação da natureza», porque as zonas afectadas tinham um «bom potencial de regeneração». Posteriormente, em entrevista ao Diário de Notícias[2], instado a comentar a destruição pelos fogos do ano anterior em áreas protegidas, este governante reforçou a ideia, referindo que «o dano parece não ser demasiado preocupante e não há necessidade de intervenção, porque há potencial de regeneração das espécies».

Estas teses não fogem muito à postura habitual dos governantes. «Parece» sempre que a Natureza aguenta tudo; tudo resolve. O importante, dizem os políticos, são as pessoas e as suas casinhas. Que a protecção das pessoas seja uma prioridade, não se discute nem é discutível. Ninguém troca a vida de uma pessoa por um conjunto de árvores – até porque isso nem é necessário para evitar e extinguir um fogo. Quanto aos bens, o caso deve mudar de figura, sobretudo se estivermos perante zonas de interesse ecológico. Numa área protegida – que integra valias ambientais e paisagísticas únicas, por isso mesmo foi classificada –, uma casa de tijolos e betão pode ser reconstruída em pouco tempo[3]. Mas a Natureza, mesmo com a ajuda do engenho e dinheiro do Homem, nem sempre consegue recuperar aquilo que as chamas destruíram. Ou se isso ocorre, demora.

Para além disto, há nas palavras do secretário de Estado há uma nuance: diz ele – repete-se – que «o dano parece não ser demasiado preocupante». Ora, este «parece» é um dos piores argumentos que se pode usar quando se abordam os eventuais danos ambientais. Ou há, ou não há dano.

Se analisarmos os efeitos dos incêndios nas áreas protegidas, certo é que mais do que «parece» estar o secretário de Estado do Ambiente completamente errado sobre os impactes do fogo nas áreas protegidas. Com efeito, de acordo com dados do próprio Instituto de Conservação da Natureza, os incêndios afectaram cerca de 157 mil hectares de áreas protegidas entre 1992 e 2005. Tendo em conta que estas representam quase 8% do território de Portugal, significa então que 22,3% da sua superfície foi visitada pelas chamas nos últimos 14 anos. Confrontando com o restante território do país, constata-se então que os incêndios lavraram uma superfície proporcionalmente equivalente[4]. Mal está, portanto, um país onde as suas áreas protegidas se encontram tão susceptíveis aos fogos como as áreas não protegidas.

Mas em algumas destas zonas, a situação é mesmo desastrosa. O Parque Natural da Serra da Estrela é um dos casos perdidos. Devia-se chamar Serra do Fogo, porque já contabilizou mais de 58 mil hectares queimados desde 1992, mais de metade da sua vasta área de 101 mil hectares. E destes, cerca de 20 mil hectares arderam apenas nos anos de 2003 e 2005.

Para o mesmo período, com uma superfície queimada superior a 25% encontram-se ainda os Parques Naturais da Serra de São Mamede, das Serras de Aire e Candeeiros, de Montesinho, do Douro Internacional, do Alvão e da Arrábida, bem como a Reserva Natural das Dunas de São Jacinto. Ou seja, quase só escaparam da razia dos fogos as zonas húmidas ou as áreas protegidas que, pela sua constituição, possuem pouca floresta. Isto diz muito sobre a gestão e a prevenção contra os incêndios das nossas «jóias da Coroa». E convém lembrar que em Abril de 2006, o ministro do Ambiente, Nunes Correia, disse que «assume inteiramente a política de conservação da natureza como pilar essencial não apenas da política de ambiente, mas também da política de ordenamento do território e da política de desenvolvimento regional»[5].



[1] - Vd. notícia no Público Online de 12 de Agosto de 2005 intitulada «Pelo menos 15.500 hectares de área protegida arderam desde Janeiro».

[2] - Vd. entrevista no Diário de Notícias de 14 de Janeiro de 2006 intitulada «Prevenção dos incêndios dentro das áreas protegidas foi bem feita».

[3] - A prioridade de uma área protegida é a conservação da natureza, daí esse estatuto especial. Tal deveria ser assumido politica e socialmente. Se existem casas, convém saber se existiam antes ou depois da sua classificação. Infelizmente, em Portugal muitas foram construídas depois. Os casos mais escandalosos ocorrem nos Parques Naturais da Arrábida e de Sintra-Cascais. Em todo o caso, uma habitação não tem necessariamente de estar em risco de arder quando ocorre um incêndio florestal. Se isso acontece deve-se à casa, não à floresta.

[4] - Na verdade, a afectação em áreas protegidas até é ligeiramente superior (22,34%) à das áreas não protegidas (22,28%).

[5] - Curiosamente, esta frase foi proferida na apresentação do Livro Vermelho dos Vertebrados. Tendo sido inventariadas 512 espécies, concluiu-se que 68% dos peixes, 38% das aves, 32% dos répteis, 19% dos anfíbios e 26% dos mamíferos estão ameaçados (criticamente em perigo, em perigo ou vulnerável) ou quase ameaçados. A equipa de investigadores apontou como causas a degradação dos habitats por estradas, urbanizações, alterações na agricultura, barragens e, claro, incêndios. A maior parte dos levantamentos de campo foram realizados antes de 2003...

4 comentários:

Anónimo disse...

Acredito que os incêndios em Portugal são um severo obstáculo à exploração florestal do território, mas duvido muito que o mesmo seja verdade no que respeita à conservação dos valores naturais. Gostaria - face à visão do fogo como uma catástrofe nas áreas protegidas de montanha - de contrapor uma outra mais benigna, e acredito que mais realista. Os valores naturais dessas áreas estão essencialmente associados aos matos. A biodiversidade que caracteriza Portugal (e o Mediterrâneo em geral) é conferida pelas formações vegetais arbustivas, não por aquelas dominadas por árvores. Não há por exemplo uma única espécie de ave associada aos bosques mediterrânicos que não esteja presente nas florestas da Europa Central ou do Norte. A manutenção da vitalidade e da biodiversidade dos matos exige fogo, assim como a manutenção da palatibilidade da vegetação exige fogo. As orientações de gestão de muitos habitats arbustivos da Rede Natura (tanto quanto sei produzidas por insuspeitos especialistas em fitossociologia e não pelo ICN) preconizam o uso do fogo. Há até casos extremos de plantas endémicas de Portugal (como na serra dos Candeeiros) que são verdadeiramente dependentes do fogo. Uma das causas dos fogos no maciço calcário da Estremadura é a manutenção de plantas aromáticas que são colhidas para venda, e que desaparecem quando a sucessão avança e o carrasco tudo ocupa. Parece assim que fogo, biodiversidade e o uso tradicional do território andam de mãos dadas. A preocupação não deve ser impedir o fogo, mas sim garantir um regime de fogo adequado. Olhando para os mapas da recorrência dos fogos verifica-se que são poucas as áreas em que o intervalo de fogo é, deste ponto de vista, excessivo. Lendo os (poucos) estudos efectuados sobre o tema constata-se que o regime de fogo actual nas zonas protegidas de montanha está muito provavelmente a aumentar a biodiversidade, favorecendo as espécies de habitats abertos, onde se incluem as mais raras. Os bosques residuais autóctones lá vão resistindo a este regime de fogo, que tende a eliminar o pinhal, mas mantém o carvalhal, que não chega a arder, arde com pouca intensidade, ou, quando arde com intensidade, recupera com alguma facilidade. E nunca me hei-de esquecer dos tempos de ornitólogo amador em que constatei que a águia real do Marão produziu crias apenas quando o seu habitat de caça foi expandido por um incêndio que varreu 3000 ha de pinhal.

Paulo Fernandes

Pedro Almeida Vieira disse...

Caro Paulo Fernandes,

Tem razão nesse discurso e eu até o subscrevo. Mas insisto que sou adepto do uso do fogo controlado na gestão das AP, mas isso não existe: há sim fogo descontrolado e surge depois o «discurso de biólogo», desdramatizando as perdas. Contudo, há um aspecto fundamental que nem sempre a perspectiva dos biólogos e conservacionistas possuem: quando arde uma área protegida perde-se o valor cénico de imediato e transmite-se a sensação que, afinal, aquilo não é nada protegido.
Se é certo que em algumas zonas, o fogo pode «obrigar» à substituição das espécies mal adaptadas (vg. pinheiro bravo e eucalipto) e a recolonização por espécies de maior valor ecológico, nem sempre isso acontece. É certo que também há espécies de matos e herbáceas de grande interesse ecológico que se aproveitam do ciclo do fogo, mas isso devia ser usado como forma de gestão, e não esperar que depois de um fogo descontrolado haja a sorte de que essas espécies (re)surjam.
Dá-me o exemplo da água do Marão e eu acredito e até acho lógico. Mas isso foi um acaso não planeado. Aliás, o grande problema é esse: nada se planeia, não há gestão e teoriza-se com base em análises por vezes algo empíricas.
Em relação à recorrência do fogo, já começam a surgir zonas com repetições muito curtas do ciclo do fogo. De acordo com os estudos do Prof. Cardoso Pereira, cerca de 5% da área ardida entre 1990-2005 foi queimada quatro ou mais vezes. Em Braga atinge os 12,7% , no Porto 11,9% e em, Viseu 15,9%.
Havia muito mais a dizer, mas fica para uma próxima discussão...

Ponto Verde disse...

Desertificação e massificação / concentração nas cidades, envelhecimento dos habitantes nas zonas rurais, subsidio-cultura... faces de uma mesma moeda...

Anónimo disse...

Luis Matos said...

Relativamente à intervenção de Paulo Fernandes, gostaria de trazer para a discussão uma outra vertente no ambito da temática do fogo. Embora não seja um especialista nesta matéria (muito longe disso), não deixo de me questionar se de facto o excesso de matéria seca que se verifica nos biomas mediterrânicos, além de constituir um risco de incêndio acrescido, não funcionará também como mitigador da tão desejada biodiversidade. Indo mesmo mais longe, tenho a sensação que inclusivamente promoverá o empobrecimento dos solos uma vez que o racio carbono/azoto pende excessivamente para o numerador.
Em determinados cobertos o grau de saturação de matéria seca é de tal ordem que dificilmente se verificarão as condições ideais para o desenvolvimento do que quer que seja. Nestas circunstâncias o recurso ao fogo é a forma mais natural que o ecosistema encontra de reclamar aquele excesso de carbono, e restabelecer as condições para que nova vegetação recomece os seus ciclos de vida.
Compatibilizar isto com os designios das sociedades modernas em matéria de produção lenhosa por um lado e protecção ambiental por outro, torna-se uma tarefa bastante difícil.
Também aqui há que saber distinguir entre o que é floresta de produção e zonas protegidas, na certeza de que num e noutro caso os modelos de gestão e intervenção humana terão que obedecer a critérios muito diferentes.
Não me parece de todo descabido considerar-se a hipótese de integrar as duas vertentes por forma a que parte do rendimento obtido na parte produtiva pudesse ser reecaminhado para a manutenção da parcela de "produção" não comercial.
Aqui volto a insistir na minha tese de que um plano nacional de desenvolvimento da bioenergia de base agro-florestal baseado no mais restrito conjunto de princípios de sustentabilidade alargada, poderia gerar os recursos financeiros suficientes para acabar de vez com a situação de bloqueio e impasse que parece querer fazer doutrina em matéria de incêndios e de toda a política florestal.

Luis Matos