domingo, janeiro 14, 2007

O divórcio litigioso

De acordo com os jornais Helena Freitas, ex-presidente da Liga para a Protecção da Natureza, ex-provedora do Ambiente da Câmara Municipal de Coimbra e académica prestigiada pelo seu trabalho na área da botânica e pelo seu envolvimento no movimento ambientalista terá dito o que aqui se reproduz:
“A bióloga Helena de Freitas defendeu hoje que a Rede Natura 2000 é um «processo condenado» e salientou que, em termos de conservação da natureza, tem «mais confiança» no Ministério da Agricultura do que no do Ambiente.
A reacção surgiu a propósito do anúncio de uma nova unidade de aquacultura da Pescanova, que ainda não teve estudo de impacte ambiental em Mira (Coimbra), numa zona de Rede Natura 2000 (uma lista de locais que visa garantir a preservação de espécies e habitats prioritários).”
Vejamos os factos:
O projecto é da área de competência do Ministério da Agricultura, tem estado a ser publicamente promovido pela Agência Portuguesa para o Investimento, que é tutelada pelo Ministério da Economia, e foi objecto de uma declaração de Interesse Nacional por parte de uma comissão que reúne representantes dos ministérios da economia e do ambiente.
Nessa comissão admite-se o princípio de que qualquer projecto que não viole directamente a lei, ou que mesmo violando no momento da decisão se preveja que venha a deixar de a violar por alteração da lei (como é o caso dos projectos que violam os planos de ordenamento mas sobre os quais existem já diligências da administração para os alterar) é “susceptível de sustentabilidade ambiental e territorial”, condição sine qua non para a sua declaração como de Interesse Nacional.
Este princípio parece-me absurdo, mas não é essa a questão, existe e é aplicado pela respectiva comissão de acordo com as regras estabelecidas.
A declaração de Interesse Nacional não altera uma vírgula do procedimento legal para a aprovação dos projectos, pelo que toda a regulamentação existente no país tem de ser cumprida previamente ao seu licenciamento.
É evidentemente o caso dos procedimentos de Avaliação de Impacte Ambiental, tendo de ser cumpridos integralmente, podendo levar ao chumbo dos projectos, mesmo que previamente declarados de Interesse Nacional, como aconteceu, por exemplo, com a célebre refinaria de Sines (não sendo caso único).
Na sua participação na referida comissão os organismos do Ministério do Ambiente deixaram claro que a aprovação da piscicultura teria de ser precedida de AIA, o que constitui um pressuposto da sua declaração como PIN.
O que leva então esta senadora informada do movimento ambientalista a ter mais confiança no Ministério da Agricultura, que será responsável pelo licenciamento do projecto e pela concessão dos respectivos incentivos ao investimento que no Ministério do Ambiente?
No caso concreto deste projecto e com os factos referidos acima isso é para mim um mistério.
Provavelmente dever-se-á procurar nas políticas gerais dos dois Ministérios a base da afirmação, tanto mais que Helena Freitas faz referência a uma questão de ordem geral “hoje ... a Rede Natura 2000 é um «processo condenado»”.
Mas aí a estupefacção só pode ser ainda maior.
Deixando de lado a discussão sobre que alternativas tem Helena Freitas para apresentar de imediato que substituam o conceito base da Rede Natura (uma coisa é a discussão conceptual e académica acerca das virtudes e limitações de uma directiva assente no conceito relativamente fugidio de habitat, outra coisa é ter uma alternativa consistente que apoie a conservação da biodiversidade europeia pela menos com a mesma eficácia das directivas aves e habitats), importa saber que responsabilidades têm os dois ministérios sobre a gestão da Rede Natura.
O Ministério do Ambiente tem a responsabilidade geral de garantir o estado de conservação favorável dos valores da Rede Natura, incluindo a concepção e aplicação de grande parte dos instrumentos regulamentares necessários para atingir esse objectivo. E terá, nesse processo, êxitos e falhanços, sendo da natureza das coisas que sejam mais notados os seus falhanços que os seus êxitos. Isto é, o Ministério do Ambiente é basicamente um guarda redes e o treinador.
O Ministério da Agricultura tem a responsabilidade de conceber e aplicar os instrumentos financeiros de apoio à gestão da rede natura, pelo menos do grosso desses apoios. Isto é, cabe ao Ministério da Agricultura introduzir o princípio geral de equidade que consiste em pagar aos agricultores, produtores florestais e pastores os serviços de conservação prestados, a partir dos impostos de todos nós que beneficiamos com a existência e conservação da biodiversidade. A introdução desse princípio de equidade é a peça chave do apoio social à rede natura e, por essa via, a garantia da sua sustenabilidade e êxito. Isto é, o Ministério da Agricultura é o ponta de lança e o dono do clube (ou pelo menos o seu principal financiador).
Pois bem, o Ministério da Agricultura tem em discussão pública a peça chave para a aplicação das responsabilidades do Ministério da Agricultura na gestão da Rede Natura, o Plano de Desenvolvimento Rural, onde as propostas são, do ponto de vista da gestão da Rede Natura, um desastre.
Não só à retórica da prioridade não corresponde qualquer prioridade financeira (por exemplo, em comparação com o financiamento de Alqueva ou o apoio penetração no mercado das fileiras competitivas, numa estratégia de as tornar mais competitivas à custa das actividades menos competitivas mas com valor social inegável, como as que sustentam a biodiversidade), como reduz esse tipo de apoios a uma parte ínfima do território, muito menor que a da própria Rede Natura, como ainda o nível dos apoios previstos é de tal maneira desfavorável face às alternativas que o mais provável é não haver adesão às medidas mais ambientais (o que algures mais à frente no programa justificará a reafectação dessas verbas dos programas a que os agricultores não aderem para os programas onde já foram esgotadas as verbas).
E já agora, para o caso em concreto, estará também perto do final a definição dos apoios à aquicultura que irão financiar projectos como o da Pescanova.
A ser assim, de onde vem essa confiança ambiental diferenciada de Helena Freitas no Ministério da Agricultura face ao Ministério do Ambiente?
Eu tenho uma explicação, eventualmente errada: grande parte do movimento ambientalista acha que o Ministério do Ambiente é um Ministério da oposição e não do Governo que deveria estar estrategicamente articulado com a agenda das ONGAs em vez de cumprir a agenda do Governo.
Como o Ministério do Ambiente, e os serviços dele dependentes, goram estas expectativas das ONGAs, justificadas por um momento histórico em que as ONGAs quase conseguiram impor esta visão da gestão da coisa pública argumentando demagogicamente que o interesse público na área ambiental é mais bem representado pela sua agenda que pela agenda do governo eleito, o Ministério do Ambiente perdeu a confiança de muita gente do movimento ambientalista.
Como nos divórcios não é o azedume dos comentários sobre o ex que ajuda a melhorar a vida, mas a capacidade de se auto-responsabilizar pelas suas opções e seguir em frente, independentemente do que ficou para trás.
Ganharíamos em ter um movimento ambientalista que contasse mais consigo e menos com os outros. E sempre se poupavam declarações infelizes como as reproduzidas.
henrique pereira dos santos

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