Por estes dias tem havido por aí uma agitação política porque na Comissão de Avaliação de Impacte Ambiental do TGV teria havido uns técnicos que teriam sido substituídos para que um parecer negativo passasse a positivo.
O que seria inadmissível porque decisões técnicas não deveriam ser influenciadas politicamente e portanto vários partidos da oposição querem ouvir dois ministros na Assembleia da República.
Confesso que estes sobressaltos cívicos me surpreendem e divertem.
Eu sou funcionário público, já passei por várias destas comissões de avaliação de impacte ambiental e sempre escrevi nos pareceres o que entendi.
É evidente que também muitas vezes recebi orientações sobre o que pretendiam a minha hierarquia ou os membros do governo. Quando entendia que essas orientações não correspondiam ao que era o meu entendimento dos factos e da legislação aplicável escrevia-o com todas as letras e, legitimamente, a minha hierarquia tomava formalmente as decisões que entendia, concordando ou discordando do meu entendimento do problema.
Também acontecia (e digo acontecia porque já não tenho responsabilidades nessa matéria, não porque tenha deixado de acontecer) serem escolhidos os membros dessas comissões em função da sua maior plasticidade, da sua maior permeabilidade a opiniões de terceiros ou simplesmente da sua competência.
Para dar dois exemplos de processos decorridos em Governos de partidos diferentes os processos da auto-estrada A7 (parece que o princípio seria para todas as SCUTs para evitar alterações de traçado e etc.) e do Baixo Sabor tinham uma orientação formal no sentido dos membros dessas comissões serem dirigentes (os directores gerais num caso e pelo menos directores de serviço no outro). Como é evidente a justificação era o da maior responsabilidade que estes processos envolviam mas a verdade é que se pretendia evitar o incómodo como os do parecer do TGV que agora está na berlinda.
Ora estas orientações nunca foram segredo para ninguém não se percebendo o escândalo actual se toda a gente achou normal esta nomeação excepcional de dirigentes para desempenho de funções técnicas em projectos especias (excepto os técnicos que habitualmente trabalhavam em AIA que ironicamente chamavam a estas comissões de AIA comissões VIP porque como é evidente a análise técnica dos processos era apenas assinada pelos membros formais das comissões, sobretudo quando eram directores gerais, mas o trabalho era feito pelos suspeitos do costume "honny soit qui mal y pense").
Fico sempre com a sensação de que a grande maioria dos decisores não tem a menor noção de como funciona realmente a administração pública. O que não admira visto que os funcionários que têm militância política activa nos partidos do arco governamental raramente terem um percurso igual ao comum dos mortais.
O que significa que os que decidem sobre a administração (incluindo os deputados que contam) ou nunca lá trabalharam ou trabalharam em circunstâncias especiais (ou pertencem a categorias especiais da administração, como os médicos ou professores, universitários ou não). Haverá excepções, claro, mas a generalidade dos membros do governo com que tenho contactado não têm de facto experiência do que seja o papel dos técnicos da administração pública.
E a parte da administração com que contactam é, na esmagadora maioria do tempo, a dos dirigentes de nomeação, que têm uma lógica de funcionamento diferente (e digo isto sem qualquer juízo de valor, eu também já fui dirigente de nomeação).
Eu acho que isso ajuda a explicar o esforço brutal empregado em reformas da administração com resultados tão pífios.
A grande maioria dos membros do governo que conheci (e muitos dos dirigentes de nomeação) dividem-se entre os que acham que a administração é uma extensão do governo, e consequentemente acham que está ali para cumprir ordens, sejam elas quais forem, e os que acham que a administração é que tem de tomar decisões porque é quem detem o conhecimento técnico.
E os dois estão errados (pelo menos parcialmente).
A administração tem por missão aplicar a lei e, no espaço de liberdade que a lei confere, cumprir as orientações do governo.
O que significa que em qualquer processo a obrigação dos técnicos não é decidir mas sim preparar a decisão. O que significa analisar o processo sobre o qual se pretende tomar uma decisão, fixar os factos, tanto quanto possível, identificar as margens de incerteza, avaliar o enquadramento legal aplicável à situação e propor uma decisão concreta, fundamentando-a em matéria de facto e na lei.
À hierarquia, incluindo os membros do governo quando tal se justifica (e em Portugal recorre-se demais aos membros do governo para tomar decisões concretas em vez de se recorrer para a definição das regras) compete decidir. Contra o parecer dos técnicos, se assim se entender, justificando.
Não há decisões técnicas em matéria de políticas públicas.
Se um projecto afecta ou não uma espécie é uma discussão técnica. Se o projecto se deve fazer ou não, não é uma decisão técnica.
Que nas comissões de avaliação e na preparação das decisões já encontrei dezenas de vezes pareceres que pretendem sobretudo justificar convicções pessoais dos técnicos que os subscrevem, não tenho dúvida. Que isso é inaceitável e um abuso da posição dos técnicos, não tenho dúvida. Que isso é mais fácil de acontecer em matérias controversas, como são muitas vezes as matérias ambientais e, sobretudo, as da conservação, não tenho dúvida.
Mas que a solução para isto não está nem na substituição de técnicos para se obter o resultado pré-determinado nem na ideia de que as decisões técnicas não devem ser escrutinadas politicamente, também não tenho dúvida.
A única solução é a da transparência no processo decisório.
Que ilustro com a transcrição de três pareceres (dentro das cinco entidades que se pronunciaram) que ontem encontrei na net, no processo de avaliação estratégica do novo aeroporto de Lisboa, nos anexos da parte 4 do relatório ambiental em discussão e que me parece traduzirem bem os critérios do bom parecer que defendi acima.
O parecer do INAG, de 15 de Janeiro: "Analisado o "relatório dos factores críticos para a decisão" que nos foi facultado na reunião realizada no Ministério das Obras Públicas Transportes e Comunicações, no passado dia 15 de Janeiro de 2008, informo que para os efeitos do artigo 5º do Decreto-lei 232/ 2007, de 15 de Junho se concorda com o âmbito da avaliação ambiental realizada e com a proposta de informação a incluir no respectivo relatório ambiental nomeadamente critérios e objectivos."
O parecer da DG Saúde de 15 de Janeiro: "No seguimento da reunião havida, hoje, no Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações e, para efeitos do artigo 5º do Decreto-lei 232/ 2007, de 15 de Junho depois de analisado o "relatório dos factores críticos para a decisão" que nos foi facultado no decorrer da reunião, informamos que concordamos com o âmbito e alcance da avaliação ambiental realizada e a proposta de informação a incluir no respectivo relatório ambiental, nada mais havendo a acrescentar, pelo que entendemos que a fase de consulta pública pode ser desencadeada."
O parecer da APA de 17 de Janeiro: "Para efeitos do artigo 5º do Decreto-lei 232/ 2007, de 15 de Junho e depois da análise dos factores críticos para a decisão, constantes dos documentos que nos foram facultados na reunião que teve lugar no Ministério das Obras Públicas, Transportes e Comunicações, no passado dia 15 de Janeiro, comunica-se que a Agência Portuguesa do Ambiente, no âmbito das suas competências, concorda com o âmbito da avaliação ambiental realizada a incluir no respectivo relatório ambiental, nada mais havendo a acrescentar."
henrique pereira dos santos
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1 comentário:
"Contra o parecer dos técnicos, se assim se entender, justificando.
Não há decisões técnicas em matéria de políticas públicas."
O problema, caro Henrique, é que os políticos de pacotilha que nós temos não têm a necessária coragem para assumirem as suas decisões POLÍTICAS e por isso precisam que as decisões TÉCNICAS sejam as que mais lhes convêm.
O resto é pouco importante, no meu fraco entender.
Até mais.
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