segunda-feira, junho 23, 2008

Reflexões sobre História do Ambientalismo em Portugal: Negação, Assimilação, Mistificação

Por
José Carlos Costa Marques

Síntese
Numa breve reflexão baseada em quase quatro décadas de observação participante em movimentos ecológicos e na forma como a sociedade lhes vai respondendo, proponho três fases evolutivas dessa resposta: negação, assimilação, mistificação. Embora esse faseamento seja afinal um esquema, nem por isso deixa de ter a sua utilidade. O nosso problema já foi: como fazer para que a negação se transforme em reconhecimento e diagnóstico? Foi depois: como ampliar a assimilação por forma a obter resultados que correspondam à nossa análise das necessidades e prioridades? No momento, creio que é sobretudo: como evidenciar a mistificação enquanto tal, por forma a recuperar a liberdade de movimentos, desfazer o emaranhado que nos tolhe e circunscrever com nova clareza as posições em confronto? Para isso, sugiro que precisamos de equilíbrio no compromisso entre firmeza, exigência, por vezes intransigência, e utopia, por um lado, e, por outro lado, flexibilidade, paciência, diálogo irrestrito, mesmo com os mistificadores, e pragmatismo.

Breve Reflexão: NEGAÇÃO, ASSIMILAÇÃO, MISTIFICAÇÃO
- três fases sucessivas e três atitudes simultâneas na sociedade dominante, desde 1970, perante a crise ambiental

Porquê desde 1970? Porque foi a partir desse ano que acompanhei, primeiro em França, depois no Brasil, e por fim em Portugal, o desabrochar e a evolução do movimento ecológico/ambiental moderno. Depoimento subjectivo, pois, mas baseado numa observação, que dura há quase quatro décadas, sempre cotejada com acontecimentos exteriores e com outras percepções do mesmo fenómeno.

Durante os primeiros anos como observador participante, as sociedades que conheci respondiam grosso modo a esse desabrochar com NEGAÇÃO veemente, ou indiferença, ou subalternização, que equivaliam a negação. Verifiquei esta atitude tanto ao nível do meu círculo pessoal de relações como ao nível social e institucional, nisso incluída a imprensa em sentido amplo. A crise ambiental ou era redondamente negada (apesar da Conferência de Estocolmo de 1972), ou subalternizada e relegada a simples imperfeição do sistema industrial e económico. No caso português, essa atitude assumiu contornos sui generis dada a época de turbulência social, política, cultural e ideológica intensa no período 1974 -1979.

Gradualmente, ao longo da década de 1980, a situação irá deslizando até uma parcial ASSIMILAÇÃO dos temas e prioridades ecológico-ambientais, com o correspondente ganho de «credibilidade» por parte dos que actuam para a solução da crise. Isso torna-se patente, entre nós, sobretudo depois da demolição de construções clandestinas em alguns trechos da orla costeira, ordenadas pela então Secretaria de Estado do Ambiente, ambiente esse que não dispunha ainda de um Ministério. São sobretudo algumas elites instruídas, urbanas e com acesso à imprensa que tipificam essa assimilação parcial. Ao nível da administração, a assimilação é mais tímida, e os departamentos governamentais de ambiente, com alguma força no plano legislativo, intelectual e de criação, são ainda muito débeis no plano político, e subalternizados perante a quase totalidade da estrutura governamental e da máquina administrativa. Mesmo nos sectores onde a assimilação avança, os fundamentos do modelo e os objectivos do «desenvolvimento» não são postos em causa nem sujeitos a revisão. Aliás, a «credibilidade» de que se goza nesta matéria é tanto maior quanto menos se questionam esses fundamentos e objectivos.

A Lei de Bases do Ambiente, de 1987, cujo balanço se pretende fazer neste Encontro, ou a ele serve de pano de fundo, surge numa fase de crescendo do processo de aparente assimilação, e exprime a respectiva ambiguidade, ambivalência e fragilidade. Em todo o caso, os princípios e objectivos vão bastante à frente da execução e da coerência e, em muitos casos, ocasiões e circunstâncias, permanecem letra morta.

Com o passar dos anos, o vilipendiado «catastrofismo» dos movimentos ecológicos iniciais vai sendo confirmado por factos irrecusáveis, que a imprensa veicula e que os dirigentes políticos vão sendo obrigados a reconhecer. Como os desastres tecnológicos e a poluição, cada vez mais amplos, de par com a perturbação profunda dos sistemas naturais, vêm questionar a euforia e o triunfalismo da própria ideia de «desenvolvimento» e a validade da economia «real», surge, por parte de quem comanda as sociedades, a necessidade de integrar, por um lado, e neutralizar, por outro, esse questionamento. Tanto mais que o consenso científico (poluição química, desregulação da saúde humana, extinção de espécies, chuvas ácidas, alterações climáticas) começa a afirmar exponencialmente um catastrofismo, vindo agora da ciência, que faz empalidecer o tão rejeitado catastrofismo ecologista. Torna-se flagrante, por parte de quem domina, a necessidade de encontrar uma integração que ao mesmo tempo responda a alguns dos aspectos mais salientes e evidentes da crise ambiental para o cidadão comum, e por outro lado oculte ou sirva de amortecedor à necessidade de transformações profundas que ponham em causa os dogmas do modelo socioeconómico reinante e resguardem os seus tabus.

É nesse contexto que a doutrina do Relatório Brundtland de 1987 (apesar de conservar no título, O Nosso Futuro Comum, o sulco de uma magnífica campanha de bases genuínas, activa sobretudo na Noruega e outros países nórdicos, designada O Futuro em Nossas Mãos, fundada na Noruega depois da publicação em 1972 do livro The Future in Our Hands, de Erik Dammann; o movimento existe ainda hoje e dispõe de uma página na internet), e sem que com isso queiramos deitar o banho fora com a água do bebé, isto é, reconhecendo numerosos aspectos válidos que parcialmente a Comissão Brundtland veiculou, vem oferecer uma plataforma de aparente conciliação entre o desenvolvimento e a economia tal como postos em prática no mundo fortemente industrializado, e por outro lado a inelutabilidade de encontrar uma solução ou uma considerável mitigação dos estragos revelados na crise ambiental e que se vão tornando cada vez mais impossíveis de varrer para debaixo do tapete da consciência pública.

Surge assim uma ideologia, e ao mesmo tempo uma retórica, do «desenvolvimento sustentável», que julga poder conciliar economia «real» e ambiente. O conceito tem origem no próprio movimento ecológico num contexto exigente, coerente e alternativo que convida a transformações profundas (por exemplo em Schumacher, no movimento pelo ecodesenvolvimento, na crítica dos limites do crescimento), mas adquire, no contexto muito oficial em que é acolhido o Relatório Brundtland (como relatório da Comissão Mundial para o Ambiente e o Desenvolvimento), a forma de uma crença na possibilidade e mesmo obrigação de conciliar o inconciliável. Inverte-se por um passe de mágica a ideia de que a destruição ambiental tem a sua raiz nos países industrialmente avançados e começa a generalizar-se a ideia de que a pobreza, e os pobres, são causa, ou mesmo principal causa, de poluição e degradação ambiental, numa operação mental do tipo «tomar a nuvem por Juno». Eloquentemente, o desenvolver do conhecimento sobre as alterações climáticas vem depois repor os factos: é no mundo rico que se encontram as raízes do mal (para já não dizer o seu eixo!) e são eles os grandes consumidores e emissores de gases de efeito de estufa.

Nesse quadro, começa a passar-se da fase de assimilação à fase de MISTIFICAÇÃO. Enquanto a situação, segundo todas as fontes sérias sucessivamente reiteradas e ampliadas, continua a degradar-se (não obstante episódios caricatos como a intervenção de Bjorn Lomborg e seu pseudocepticismo ambiental, mediaticamente tomado a sério mas logo esvaziado por sucessivas confirmações do que pretendeu negar); enquanto os mídia vão dando maior atenção a esta temática; enquanto se multiplicam movimentos de protesto e organizações de defesa e surgem mesmo actuações espectaculares como as que vêm sendo generalizadas pela Greenpeace, as tendências pesadas que estão na origem da crise, ao contrário do que por vezes se supõe ou se quer fazer crer, não só se mantêm basicamente como até se agravam, se ampliam e se estendem a grandes espaços onde até há pouco estavam quase ausentes (dragões asiáticos, depois a China, depois a Índia...).

Começa assim a instalar-se um quadro de tipo esquizofrénico: por um lado uma certa ideologia ambiental «leve» começa a ganhar as aparências de uma ideologia quase dominante, e uma retórica do sustentável surge na boca dos responsáveis sociopolíticos a propósito de tudo e de nada; por outro lado, avolumam-se os procedimentos mesmos que estão na origem dos efeitos que o discurso parece denunciar, rejeitar e censurar.

Esse é um breve momento de consenso ambiental equivocado. De 1970 a 1990, o ambiente e a natureza raramente apareciam no discurso político. Com os anos 1990, as referências tornam-se progressivamente dominantes. Instala-se pouco a pouco a ideia de que toda a gente, todos os partidos, todos os políticos, todos os interesses específicos estão ou podem estar de acordo em valorizar o ambiente. Alguns iconoclastas, para destoar desta posição, acusam a ideologia do ambiente de ser «politicamente correcta», isto é, de ser uma imposição artificial à sociedade e às pessoas. E há já quem fale de «ambiente caviar». Mas esses iconoclastas não abalam o consenso visto não o terem entendido e o atacarem onde é simples epifenómeno.

Porque equivocado, tal consenso trazia em si um dissenso potencial, que não tardou a manifestar-se. Começam a surgir nitidamente posições que, umas como outras justificadas com o cuidado pelo ambiente, são e se revelam progressivamente irredutíveis e antagónicas. Numa fase inicial, os interesses instalados («vested interests», no lugar comum da língua inglesa, ou os poderes mascarados, como os designa Jean Pignero em As Constituições Democráticas do Terceiro Milénio), começam a assumir uma linguagem «verde» e, a pretexto de valores ambientais, a denegrir as posições dos ecologistas e ambientalistas militantes e suas organizações, ou a seduzi-los e a tentar servir-se deles, sem que se negue a existência de alguns fenómenos genuínos de questionamento e rectificação de procedimentos. Numa fase mais avançada, alguns políticos fazem-se eleger alinhando a bandeira ambiental ao lado das bandeiras tradicionais de carácter social e económico; uma vez eleitos, decretam que economia reinante e ambiente por natureza não são antagónicos e daí passam a justificar qualquer intervenção económica como ambientalmente positiva. Numa fase mais radical, começam a ser retiradas às organizações independentes de ecologia e de ambiente há muito presentes no terreno (e mesmo aos organismos do Estado!), as condições de exercerem as incipientes e insuficientes capacidades de intervenção que vinham penosamente adquirindo, desde meios financeiros a alavancas legislativas,
reduzindo as suas possibilidades de participação nas tomadas de decisão.

Sucedendo ao aparente consenso, a mistificação passa a prevalecer. Com a progressão da consciência da situação decorrente das alterações climáticas, vai-se ao ponto de reabilitar o nuclear como pretensa solução «limpa», o que, embora destinado a falhar, torna transitoriamente mais difícil a situação já árdua vivida pelas organizações de base. Outro caso típico passa-se na agricultura. Por um lado, embora a imagem pública dos pesticidas não deixe de degradar-se continuamente, pouco ou nada se faz de decisivo para condicionar a sua utilização ou mesmo para erradicar alguns reconhecidamente muito perigosos. Por outro lado, invectivam-se as correntes ecoambientais que denunciam e rejeitam os organismos geneticamente modificados, ou transgénicos, a pretexto de que impedem a redução do uso de pesticidas possibilitada pelos OGM, silenciando o facto de que a grande maioria dos transgénicos comerciais são afinal plantas-pesticidas ou que se destinam a permitir intensificar o uso de herbicidas. As consequências, em ambos os casos, são mal conhecidas ou desconhecidas, tendo embora um potencial de surpresas ainda mais devastadoras que as que no passado surgiram associadas ao uso de pesticidas. Outros exemplos semelhantes se podem encontrar.

O que acabo de referir é, evidentemente, uma grelha esquemática com um certo grau de realidade. É por acaso que destaco três momentos e não por qualquer mimetismo da dialéctica de Hegel ou de Marx. Estaremos talvez já a entrar num quarto momento, o de uma reassimilação retardada («entrada» dos Estados Unidos no consenso de Bali sobre alterações climáticas?). E desejamos obviamente, e para ele trabalhamos, aquele momento, ainda longínquo, de um novo consenso não equivocado e universal.

A realidade, porém, é sempre mais polifacetada do que qualquer esquema. Anti-tendências, alternativas, formas várias de dissidência, coexistem com as tendências dominantes mais pesadas ou, para nós, mais negativas. Em cada momento ou em cada domínio, a situação pode mudar e muda constantemente, e às vezes de forma rápida e surpreendente, para o melhor ou para o pior. Nem por isso a grelha aqui proposta deixa de ter a sua utilidade. O nosso problema já foi: como fazer para que a NEGAÇÃO se transforme em RECONHECIMENTO e diagnóstico? Foi depois: como ampliar a ASSIMILAÇÃO por forma a obter RESULTADOS que correspondam à nossa análise das necessidades e prioridades? No momento, creio que é sobretudo: como evidenciar a MISTIFICAÇÃO enquanto tal, por forma a recuperar a liberdade de movimentos, desfazer o emaranhado que nos tolhe e circunscrever com NOVA CLAREZA as posições em confronto? Tarefa que julgo indispensável, mas que será tudo menos fácil.

Ao longo das três fases apontadas, ao mesmo tempo que se SUCEDIAM negação, assimilação e mistificação, tais atitudes COEXISTEM também, em maior ou menor grau, em mais extensos ou menos extensos segmentos sociais e mentalidades colectivas. Mais ainda, as três atitudes podem coexistir em cada um de nós, na nossa maneira de pensar e agir, nas nossas práticas quotidianas. E, last but not least, nas nossas próprias organizações, movimentos e iniciativas. Somos e precisamos de ser radicais, mesmo quando, ou sobretudo quando, agimos com moderação. Mas estamos sujeitos às interferências e contaminações provenientes de todos os azimutes. A nossa senda estreita é a do difícil porém imprescindível, lúcido mas muitas vezes incompreendido, equilíbrio no compromisso entre firmeza, exigência, por vezes intransigência, e utopia, por um lado, e, por outro lado, flexibilidade, paciência, diálogo irrestrito, mesmo com os mistificadores, e pragmatismo.

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Este texto foi oralmente apresentado por José Carlos Costa Marques, de forma resumida, no 18.º ENADA - Encontro Nacional das Associações de Defesa do Ambiente, em Lisboa, em 15 de Dezembro de 2007, e ligeiramente revisto em aspectos de pormenor em 23 de Dezembro do mesmo ano. O texto é agora publicado no blog AMBIO com a devida autorização do autor.

José Carlos Costa Marques - Associação Campo Aberto; tradutor e editor de temas ambientais (jcdcm “at” sapo “ponto” pt)

1 comentário:

José M. Sousa disse...

Texto muito interessante e oportuno