quarta-feira, julho 23, 2008

Ainda o financiamento das ONGA - resposta a Aline Delgado

Tardiamente, na medida da minha disponibilidade de tempo, gostaria de reagir ao artigo que Aline Delgado (AD) publicou no Público e que foi republicado na lista Ambio. Porque acho muitas das suas ideias estéreis e inclusivamente perniciosas e fundadas sobre uma visão errada do que é a sociedade civil.
(Primeiro, uma declaração de interesses: fui dirigente de ONGs de ambiente e equiparadas (Quercus e Euronatura) durante uma boa parte da última década, tendo sido representante português no conselho do EEB no ano 2000, coincidente com a Presidêcnia Portuguesa da União Europeia. Estou desligado das associações, mas sou sócio das duas associações e de mais algumas associações não-ambientalistas). Actualmente tenho funções de representação do Estado nas Nações Unidas e sou consultor do Ministério do Meio Ambiente. Fui durante uma semana militante de um partido politico (em 1990).
Sobre o assunto interno da Quercus, não me pronuncio. Se tivesse tempo e disposição, pronunciaria-me no âmbito interno da Quercus e não fora. Apenas considero que, de uma forma genérica, estes incidentes mostram a fraqueza real do associativismo em Portugal. Essa fraqueza não é de agora e a discussão da fraqueza das associações é pelo menos tá antiga quanto a minha participação nelas. A minha primeira participação numa Assembleia Geral da Quercus foi numa célebre AG em Vila Nova de Gaia, em que eram contestados, entre outros, os gestores de grandes projectos que se dizia e afirmava serem uma distracção para a associação. “Plus ça change, plus c’est la même chose”.
E as medidas preconizadas são inevitavelmente recorrentes e lembro-me de propostas semelhantes às de AD, feitas em ENADAs há pelo menos oito anos atrás. Nuna essas propostas surtiram efeito. A meu ver bem. Passo a explicar.
O argumento principal do artigo de AD pode resumir-se a esta analogia:
- as ONGA têm hoje influência social semelhante à de outras organizações sociais;
- tal como os partidos, têm obrigações públicas
- tal como os partidos, devem estar sujeitos a um regime de publicidade de financiamento.
QED.
Esta analogia não colhe contudo. Ela tem como principal erro formativo o facto de aos partidos políticos ser conferido um papel específico, constitucionalmente definido, de representação dos valores políticos de uma população. Os partidos aspiram ao poder político e portanto a decisões sobre a “res publica”.
Apenas formalmente as associações são semelhantes aos partidos. Elas não disputam lugares de poder, nem pretendem administrar o bem público. Quando o fazem (por concessão do poder político, via doações, donativos, ou entrega de activos para gestão), as associações devem prestar contas públicas desses recursos e activos. Palpita-me, aliás que não o fazem e que durante muito tempo houve conivência do Estado, na pessoa do Ministério do Ambiente, na entrega de valors às associações sem as respectivas prestações de contas. Chegou-se mesmo a ter, no órgão que distribuía as subvenções a projectos de associações, elementos representativos dessas mesmas associações.
Argumenta AD que “é urgente uma clarificação dos seus financiamentos de forma que possamos avaliar se existem ou não conflitos de interesses que possam limitar a independência da ONGA em questão”. Esta questão, colocada nestes mesmos termos, tenho-a ouvido de muita gente ao longo de uma década, o que me leva a crer que não é, de facto, urgente. Acresce que, numa sociedade civil crescida, esse interesse não tem que ser motivado de fora, antes deveria ser uma necessidade do cidadão-sócio. Se porventura os sócios da Quercus ou de outra associação não exigirem essa clarificação, eles que são voluntariamente associados da mesma, com que direito deve o Estado, sobretudo quando não estão em causa dinheiros públicos (a “res publica”), ou outros, intrometer-se exigindo regras de clarificação de financiamentos? Apenas num pretenso impacte social d actividade das ONGAs? Mas todas as associações, seja elas comerciais, sociais, económicas e culturais, desejam ter um impacto social! Se não o almejarem, não se percebe para que existem, então?
Continua AD. “É imprescindível que as ONGA possuam uma estrutura organizacional bem definida, desenvolvendo projectos que representem ganhos evidentes para a sociedade e que justifiquem em pleno a utilização dos donativos que recebem, mostrando-se exemplares e isentas na utilização e gestão desses fundos. Só assim poderão exigir essa isenção e transparência a outros.”
Absolutamente de acordo. É alias uma mostra evidente da fraqueza da constituição das nossas ONGA que Portugal teve que ter uma lei especial dedicada a regular aspectos tão básicos como os direitos dos seus dirigentes. Mesmo assim, e com sucessivas versoes dessa lei, as ONGA, embora tendo registado progressos significativos, não têm na sua maioria, capacidades organizativas semelhantes sequer às nossas congeners ibéricas. O seu impacte social deve-se a outros factores que em nada têm a haver com o seu real peso organizatvo e social específico. Nomeadamente, porque têm um acesso aos media melhor do que a grande maioria das associações portuguesas, e porque podem em muitos casos contra com a sua simpatia.

Ainda AD: “Não existe um regulamento para o financiamento das ONGA. Só o financiamento pelo Governo se encontra devidamente regulamentado. Por isso são ditadas regras por quem, internamente, detém o poder, sem a participação dos seus associados ou dos órgãos dirigentes inferiores. Verificam-se assim opções que estruturam as ONGA de forma similar às empresas.”
Há aqui um problema de salto lógico na argumentação. Não é por não haver um regulamento para o financiamento das ONGA (pressupõe-se um regulamento público, em lei geral da sociedade), que estas têm, internamente, graus de democracia interna diferenciados e eventualmente precários. Tal existe, na maior parte dos casos, por uma falta de cultura de serviço, pela fraca disponibilidade de tempo, pela relutância em muitos casos em concentrar esforços na necessária infra-estruturação da associação, enfim,.., porque há fraca experiência de gestão e participação pública. O que não surpreende, porque não é caso único. Ouço o mesmo rosário dos sócios da AMI, dos sócios da Amnistia Internacional, de muitos outras associações. Na base disso, estão factores sociais e culturais. Achar que é por não haver um “template” legal para o financiamento das ONGA, que estas assumem uma gestão não participada é uma enorme elipse.
Depois de todos estes pressupostos a meu ver errados, não seria de esperar que as conclusões de AD, sob a forma de princípios para o estabelecimento de regras de financiamento fosse particularmente do meu agrado:
1. Estabelecer um limite máximo anual de subsídios privados.
Com base em quê? Em relação a que indicador? O montante para a QUERCUS é o mesmo para a PATO ou a REAL 21? O limite é fixado em euros por entidade, ou euros totais? Se eu receber €10000 da Shell para um projecto com o qual tenho todo o meu comprometimento, não o posso porque ultrapasso o limite legal? Mesmo se isso custar eu nao desenvolver a minha actividade ou projecto social, que estimo relevante?
2. Abertura de conta específica para controlo de toda a movimentação de receitas e despesas, sendo os pagamentos feitos, só por via rastreável (cheque ou transferência bancária).
Boa ideia, e se eu fosse patrocinador exclusivo provavelmente exigiria tal coisa. Assim como gostaria de ter tais regras como sócio. A que propósito contudo é que esta regra deve ser ditada de for a, se não tiverem em causa dinheiros públicos, e se não for esse o entendimento dos sócios?
3. A ONGA deve respeitar os objectivos para os quais o subsídio foi concedido, produzindo, nomeadamente, relatórios periódicos de consulta pública sobre as actividades e despesas realizadas.
Mais uma vez, uma boa ideia. Em tempos cheguei a ter um comentário do director de marketing de uma grande empresa, patrocinador de um projecto da Euronatura, felicitando-me por a Euronatura ser a primeira associação que lhe tinha facultado, sem ele pedir, um relatório de avaliação do desempenho de um projecto. A empresa é uma das dez maiores de Portugal, o que espelha bem a quantidade de projectos em que as ONGA e outras ONG simplesmente “took the money and ran”.
Mas pergunto eu. Porque é que isso tem de ser ditado de fora? E com que intuitos?
4. A entidade patrocinadora deve obedecer a um conjunto de regras de comportamento ambiental e o seu patrocínio deve ser justificado por um enquadramento do projecto patrocinado na sua área de actividade.
Esta regra em particular tenho-a ouvido muitas vezes e sempre estive em desacordo com ela. Com que direito é que uma ONGA, ou uma confederação de ONGA, como em tempos foi tentado, pode ditar, com base num qualquer ranking, a minha disponibilidade para aceitar diheiros de quem eu, ONGA, quiser? Se o fizer e isso escandalizar meio mundo, muito bem. É o preço que pago por ser uma rameira aos olhos de outros.
Depois, acontece que conheço bem demais o mundo empresarial, por dentro, e a alguns níveis mals altos do que os portugueses, para saber que a percepção social sobre a “bondade” das empresas, reflectidas nos rankings ambientais comuns, raramente tem alguma coisa que ver com a verdadeira posição ambiental. Conheço pessoalmente o VP para o ambiente de uma multinacional das mais odiadas e respeito-o como provavelmente o homem mais sensível que conheço para as questões de alterações climáticas no mundo empresarial. A empresa é a Shell.
Admitamos como boa a ideia de AD. Quem dita o que é ambientalmente correcto? Qual a métrica? A Shell é má porque é petrolífera, ou é má porque corrompe os direitos das minorias na Nigéria? A Galp não corrompe na Nigéria, mas é possivelmente corrompida em Angola. É melhor o seu comportamento? As empresas renováveis são boas. Mas quando gastam milhões de euros em acções de lobby (muitas vezes conjuntamente com ONGA reputadas), continuam a ser anjos? E se o director da empresa eólica ou melhor, de eficiência energética, for um seboso (e eu conheço alguns)? É emlhor do que o gentleman da Shell que conheço? Enfim, as dúvidas sobre a operacionalidade e a legitimidade de qualquer critério são mais do que muitas. Talvez por isso, apesar de há anos ouvir falar em listas negras, nunca as vi.
5. O projecto financiado deve demonstrar o seu fim social e de utilidade pública e justificar o contributo das entidades que o apoiam.
A quem? Na lógica de que estes são projectos efectuados por entidades privadas e patrocinados por entidades provadas, o contrato entre as mesmas é regido e deve ser regido pelas regras mínimas para criar confiança entre as mesmas. Deve ser a ONGA a exigir de si mesma a prestação de contas aos seus associados e à sociedade em geral, como forma de se credibilizar. Durante anos quis que as contas da Euronatura fossem públicas, incluindo o meu vencimento pessoal e o dos colabodores em projectos.
Enfim, não pretendo com esta contra-argumentação defender ninguém, e muito menos atacar a autora do artigo, a quem reconheço o mérito de colocar uma questão na mesa e no “Público” que nos deve fazer reflectir a todos sobre a capacidade organizativa e de gestão que as ONGA infelizmente ainda não têm.

4 comentários:

Ricardo S. Coelho disse...

É claro que é difícil criar uma "lista negra" mas isso não pode ser pretexto para não ter essa discussão. Por exemplo, não vejo que sentido faz uma ONGA receber dinheiro de uma petrolífera ou de uma rede de hipermercados. São negócios insustentáveis por definição, a combinação nunca pode dar bom resultado. Também não percebo que sentido faz um blogue ambientalista ter um anúncio a SUVs...

Anónimo disse...

Olá,
Tive conhecimento deste Blog através de um amigo:)
O Blogue dos Manteigas http://bloteigas.blogspot.com/ visitou e gostou do que leu :)
Fica aqui o registo na nossa passagem ;)
Abraços de Manteigas - Serra da Estrela

Anónimo disse...

«Apenas formalmente as associações são semelhantes aos partidos. Elas não disputam lugares de poder, nem pretendem administrar o bem público.» Retirado do texto. Se não for um lapsus linguae nem o Sócrates «dizia» melhor...

Anónimo disse...

As ONGAs estão em crise e cada vez mais as pulgas atacam o cão..Quer-me parecer que pela lógica de regras e contra-regras apresentadas pela srª Aline, não haverá ONGA que resista.

A ver...
quanto ao financiamento, se o estado não deve patrocinar, se as empresas também não.. restam os sócios. Com a crise, cortam-se nas despesas menos essenciais.. lá se vão as quotas. As ONGAS viverão do ar (como se fosse possível manter ONGAS com menos de 500 sócios e quotas anuais de 10 euros).

Quer-me parecer que nesta lógica, as Ongas em Portugal serão ainda menos sustentáveis do que a dependência dos combustíveis fósseis.