segunda-feira, dezembro 08, 2008

Atlas


"Então acha que o Atlas dos répteis e anfíbios que ‘está a sair’ há já vários anos é um projecto bem sucedido?"
Esta pergunta, feita num comentário a um post anterior merece uma resposta mais extensa que um sim ou não porque contém em si várias perguntas e porque preciso de explicar o que para mim é um bom atlas, na área da biodiversidade.
Se a pergunta é: "vai brevemente ser publicado um bom atlas de répteis e anfíbios?". A resposta é inequivocamente sim, quer ao brevemente, quer ao bom atlas.
Clarificado este ponto passemos ao que verdadeiramente motiva o meu post.
Se a pergunta é: "é um projecto bem sucedido?" eu seria mais cauteloso na resposta porque preciso de explicar qual é a minha visão sobre os atlas de biodiversidade.
Começo por explicar que para mim o essencial é o processo e não o produto final.
A minha responsabilidade actual é apenas sobre uma parte do produto final e o meu esforço profissional tem sido no sentido de ter o melhor produto final possível. E o melhor produto final não é apenas uma publicação séria e bem apresentada mas também que chegue aos consumidores finais e seja sustentável a prazo. Grande parte do meu esforço nestes dias, em relação ao Atlas das Aves tem sido no sentido de garantir a sua venda o mais rápidamente possível, não porque tenha algum contrato com a Assírio e Alvim (aliás escolhida depois de uma consulta ao mercado que revelou bem a dificuldade de editar o livro) mas porque para mim é estratégico que se demonstre que a edição na área da biodiversidade não só é rentável como é uma boa opção económica para as editoras.
Só assim se editará mais e se chegará a mais gente.
Mas os atlas valem por outras razões mais fortes.
Em Portugal há um enorme déficit de naturalistas. De pessoas que gostem de andar por aí e que registem o que vêem. Parte será porque somos mesmo assim, mas parte resulta da insuportável arrogância de grande parte da nossa academia que trata tudo o que seja informação "wiki" como lixo. E isso é muito evidente na área da biodiversidade, com excepções com certeza, e até bastantes e cada vez mais, onde a praga das citações vem tornado uma tortura a leitura de documentos da academia sobre a biodiversidade.
Raros são os textos simples, directos, com informação de campo que reflictam a distância da racionalidade necessária e a proximidade da emoção inevitável que definem os bons naturalistas.
Ora os atlas, para mim, deveriam ser o intrumento central do registo organizado da informação produzida por toda a gente e, sobretudo, pela sua simplicidade de objectivos ("ver" ou "não ver" uma coisa) e pelo facto de serem processos de mão de obra intensiva no campo são o mais poderoso instrumento que conheço de formação e integração de novos naturalistas.
Os Atlas a que eu chamaria projectos de sucesso seriam pois os que melhor conseguissem aproximar-se do que descrevi. Nesse sentido o atlas das aves é bem mais conseguido, como projecto, que o atlas dos répteis e anfíbios ou que o atlas dos invertebrados que nunca consegui fazer sair da fase larvar (ou os atlas micológicos, de briófitos, o que se queira).
E aqui há enormes responsabilidades partilhadas quer pela academia, quer pelo ICNB sujo Sistema de Informação do Património Natural (o berço natural dos atlas) é demasiado fechado para meu gosto (espero que melhore daqui a alguns tempos mas do que conheço continua a ser um sistema mediado pela academia e pouco aberto à lógica wiki que me parece fundamental para que cumpra os seus objectivos).
O Atlas das Aves beneficia do facto da ornitologia ser das áreas da biodiversidade menos normalizadas pela academia, onde os aspectos lúdicos existem bem fortes e são perfeitamente aceites pela comunidade dos ornitólogos, sendo por isso o mais democrático dos atlas, o menos elitista e aquele onde o anacronismo da nossa academia menos se sente.
O mesmo provavelmente não se passará com o atlas dos répteis e anfíbios o que não o impede de ser um belíssimo atlas, quer cientificamente, quer como publicação bem agradável para ter à mão.
henrique pereira dos santos

9 comentários:

Miguel B. Araujo disse...

Henrique,

O que descreves é válido para Portugal e para qualquer País. Mesmo no Reino Unido, que é provavelmente o País que mais naturalistas tem por metro quadrado, o Atlas das aves é mais democrático que os atlas dos restantes grupos (o seguinte seria o das borboletas).

Sendo o tecido naturalista de um País fundamental para alimentar estes atlas, também é verdade que ajuda quando o País está estruturado de forma facilitar a centralização, disponibilização e utilização destes dados.

Ora a base de dados do ICNB (o SIPNAT) é no mínimo obscura. Não se sabe o que tem, como obtém o que tem, como se acede ao que tem, quem confere os dados, quem os gere, etc. Um primeiro passo para por em ordem os atlas e os processos que estão por detrás deles seria a estruturação deste serviço em moldes profissionais. E nõ há que incentar nada. Basta copiar o modelo Britânico.

PS. a realidade, na fase em que nos encontramos, creio que seria interessante avançar para a criação de um Instituto Ibérico de Biodiversidade, em parceria com o Estado Espanhol, pois faz pouco sentido estudar e conservar a biodiversidade à escala do nosso rectangulo e Espanha poderia ajudar nos levantamentos de dados em virtude da incomparavelmente maior massa crítica que possui ao nível de conhecimento taxonómico. Talvez escreva um post sobre isto um destes dias.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Quanto ao instituto ser ibérico ou não não tenho opinião porque não pensei o suficiente no assunto.
Quanto ao resto estou de acordo contigo.
Não têm conta as horas de discussão que já tive sobre sistemas estruturados de registo, sistematização e disponibilização de informação.
No essencial confrontam-se dois pontos de vista: o que privilegia a segurança científica da informação, de que resulta uma coligação ICNB/ Academia para sistemas mais fechados e sujeitos a peer review, onde a autoria da informação (e, para muitos, a posse) é uma questão central; e o que privilegia a capacidade de integração de toda a informação, de que resulta uma coligação ICNB/ empresas de consultoria e utilizadores para sistemas mais abertos, mais faliveis e com maior dinamismo onde a capacidade de à posteriori ir eliminando a má informação é uma questão central.
Até hoje têm ganho os primeiros e eu estou seguramente no lado dos perdedores nesta discussão.
henrique pereira dos santos

Vasco Flores Cruz disse...

Olá, eu tenho um blogue sobre anfíbios e repteis e amadoramente acabo por fazer muito trabalho de campo. Teria sido um prazer poder ter participado no atlas, pelo que poderia ter aprendido, e se calhar até poderia ter acrescentado qualquer coisita. De qualquer forma estou ansioso que seja publicado só espero que seja mais barato que o das aves!!
Espreitem o meu blogue, espero que gostem, tento fazer "textos simples, directos, com informação de campo" as vezes com emoção, só não sei definem um bom naturalista.

Abraço

Henrique Pereira dos Santos disse...

Caro Vasco Flores,
A Atlas dos répteis será mais barato que o das aves com certeza, só não sei quando sairá a edição comercial.
A edição não comercial foi entregue ontem ou na sexta na gráfica.
Como quando sai um atlas é preciso começar a trabalhar o seguinte o melhor mesmo é juntar meia dúzia de pessoas que queiram e puxar pela carroça, que se bem conheço o país vai demorar muito tempo até se curar da ressaca de ter produzido estes dois atlas.
henrique pereira dos santos

Vasco Flores Cruz disse...

Olá, fico contente por saber que o atlas de A&R vai ser mais acessível!
Só não me disse o que pensa do meu blogue, perca meia hora! Não tenho qualquer formação na área, nem tiro qualquer dividendos com o trabalho que faço. Tento criar um espaço original (em aspecto e conteúdo), interessante e que venha acrescentar alguma coisa ao panorama ambientalista nacional. Mas com todas as limitações(falta de formação especifica, tempo, material) de um amador. Se achar interessante "link-me" por favor, que o meu espaço carece de visibilidade!!
Desculpe a "publicidade" aqui no vosso espaço, mas eu sou um leitor assíduo e atento do vosso blogue, que só falei porque achei que o tema da mensagem original era convidativo a apresentar o meu trabalho!

Cumprimentos

Vasco Flores Cruz

Henrique Pereira dos Santos disse...

Caro Vasco,
Quando falei ao administrador deste blog na sua sugestão já estava feito o link para o seu blog.
O que significa que gostámos.
henrique pereira dos santos

Gonçalo Rosa disse...

Por trás deste olhar de esguelha sobre tudo o que é wiki, há uma visão elitista, socialmente muito enraizada, de que a qualidade da informação e do trabalho técnico/ciêntifico depende, em grande medida, do grau académico de quem o produz. É uma visao não só de muitos académicos, mas da sociedade portuguesa em geral.

Esta visão, tão cristalizada entre nós, assume mesmo contornos legais (veja-se, por exemplo, a impossibilidade legal de um não licenciado assumir cargos de chefia), premiando quem é e não quem faz, com prejuízos claros para o país.

Gonçalo Rosa disse...

Caro Vasco,

Tive oportunidade de dar uma olhada no seu site. É óptimo constatar que, também nesta area, há gente a produzir excelentes veículos de divulgação, pelo que te gostaria de dar os meus parabéns.

Gonçalo Rosa

patanisca disse...

Fico contente que tenham gostado, e obrigado pelo link!
Abraço,

Vasco Flores Cruz