No verão passado a revista Mais Ambiente fez-me uma entrevista pela pena de Luís Galrão. Entretanto problemas internos à revista impediram que esta fosse publicada e ainda não se sabe se tal acontecerá. Desta forma, decidi publicar, após consulta com o editor da revista, em primeira mão, uma parte da entrevista que versa sobre alterações globais, biodiversidade e cépticos climáticos, um tema aqui discutido com alguma assiduidade.
O que são as alterações globais? Estamos só a falar do clima?
Não. Estamos a falar de todas as modificações planetárias que decorrem da acção humana e que incluem, à cabeça, o aumento demográfico. O clima é um dos fenómenos globais associados a esta acção humana e um dos fenómenos com contornos mais complexos e perigosos.
O que dizes aos cépticos nesta questão do aquecimento global?
Eu próprio sou céptico. Mas uma coisa é ser-se céptico, outra é negarmos as evidências. Ora, as pessoas que se apresentam como “cépticas climáticas” não trabalham em climatologia nem sequer acompanham a literatura da especialidade. Os ditos “cépticos” não frequentam as revistas científicas de climatologia e preferem ler e escrever em “sites” e “blogues” onde, regra geral, se usam fontes secundárias e não se permite contraditório. Ora, nunca se estudou tanto o clima do planeta, nem se soube tanto sobre a sua dinâmica, como actualmente. Os modelos de circulação do oceano e da atmosfera (AOGCM na sigla Inglesa), possuem um nível de complexidade que os torna impróprios para consumo popular. Não obstante, estes modelos têm sido usados com sucesso para prever variações do clima do século XX. Os paleo-climatólogos também têm sido capazes de simular períodos climáticos no Quaternário e no Terciário recorrendo a projecções que são depois validadas com o registo fóssil. Podem perguntar: existem incertezas? Existem fenómenos que são difíceis de prever? Ninguém o nega. Mas ignorar os progressos que têm sido feitos no últimos anos, em matéria de ciência climática, é pouco construtivo. E reduzir os mecanismos que governam o clima a dinâmicas caóticas, ou ridicularizar a climatologia por analogia à dificuldade que os meteorologistas têm de prever o tempo daqui a uma semana é pouco sério.
Por outro lado, há que reconhecer que as consequências das alterações climáticas colocam o tema num patamar diferente da discussão simplesmente académica. Estamos perante um fenómeno que pode afectar a vida de centenas de milhões de pessoas e a sobrevivência de nações inteiras (o caso de nações insulares). Portanto, há que ser responsável na gestão das incertezas e assegurar que as decisões adoptadas sejam as que minimizem o risco de cometer erros graves. Ora as medidas de mitigação que se propõem são, na grande maioria dos casos, de tipo “win-win”. Ou seja, são políticas que são positivas quer hajam alterações climáticas ou não e o custo social que advém de lhes conferir prioridade é bastante inferior ao custo social de não as implementar num cenário provável de alterações climáticas.
É um tema onde continua a existir alguma contra-informação. Porquê?
Parece-me óbvio que existe contra-informação patrocinada por grupos conservadores avessos à transformação do modelo de elevado consumo de combustíveis fósseis. Os neo-conservadores nos Estados Unidos eram um desses grupos mas recentemente o próprio George Bush veio reconhecer que existe um problema climático. Mas também existem lobbies ambientalistas que representam a ciência climática de forma pouco rigorosa e que tendem simplificar os seus resultados de forma a melhor fazer passar uma mensagem catastrofista. Este alarmismo alimenta, inevitavelmente, o cepticismo de quem está menos predisposto a acreditar neste tipo de mensagens ou de mensageiros. Por outro lado, a imprensa gosta de vender boas histórias e uma boa história tem polémica. Há, portanto, uma tendência natural para dar uma importância desproporcionada aos ditos cépticos. Pode-se discordar desta forma de fazer jornalismo mas é pouco provável que tais práticas venham a mudar pelo que é mais importante reconhecer que em virtude das implicações sociais da ciência climática é normal que exista politização dos seus resultados. E neste processo de politização é importante que os profissionais da ciência mantenham uma posição de alguma equidistância face a posturas extremas e que resistam à tentação de usar argumentos de autoridade para fazer vingar as suas posições pessoais. O que é importante é acrescentar racionalidade ao debate pois a racionalidade é a base de qualquer democracia avançada.
Alguns cépticos criticam sobretudo algumas “previsões” mais catastrofistas e o grau de incerteza dos modelos climáticos. Qual a diferença entre uma previsão e uma projecção?
Como dizia o famoso estatístico, George Box, “os modelos estão todos errados e a questão é saber quais são úteis”. Portanto, acusar os modelos climáticos de estarem errados é uma banalidade. A questão é saber se os modelos climáticos fornecem informação útil. Ou seja, se nos permitem antever o futuro com maior precisão do que a simples aceitação do status quo como modelo para o futuro. Ora, até à data, não existe qualquer evidência de que o clima actual seja um bom indicador do clima nos próximos 50 anos. Tanto mais que os modelos climáticos projectados para século XX oferecem ajustes mais próximos à realidade do que modelos que assumem variação natural do clima sem interferência humana. Em todo o caso, é mais correcto falar de projecções do que previsões. As primeiras assumem que o resultado dos modelos é baseado em assumpções de tipo “what if”, ou seja, são afirmações condicionais, enquanto que as previsões assumem um carácter taxativo. Enfim, talvez seja um preciosismo académico com pouco alcance fora das muralhas da ciência.
Um dos teus projectos consiste na elaboração de um Atlas europeu sobre os efeitos do aquecimento global na distribuição de mais de 3000 espécies de vertebrados e plantas. Que cenários são esperados?
Os cenários variam de um grupo biológico para outro mas a tendência geral é a de deslocação de espécies do Mediterrâneo para o centro e norte da Europa, assim como de zonas baixas para zonas mais elevadas em altitude. A nível Europeu esperam-se impactes mais acentuados na Península Ibérica, SW de França e nas montanhas do sul da Europa, como sejam os Alpes e Pirineus. Também se esperam impactes importantes nas regiões boreais do norte da Europa, com comunidades de espécies adaptadas ao frio a reduzirem as suas distribuições de forma significativa.
O aquecimento global é uma ameaça para a biodiversidade?
Qualquer fenómeno que provoque uma alteração das condições actuais tem potencial para constituir uma ameaça à persistência das espécies. Não obstante, é bom compreender os mecanismos de ameaça que operam com as alterações climáticas pois, em última análise, o clima nunca deixou de mudar e nem sempre os impactes dessas alterações foram catastróficos. Até há pouco tempo dizia-se que um dos problemas das alterações climáticas residia na sua velocidade. Porém, resultados de uma investigação, recente, publicada na revista “Science”, demonstraram que as alterações climáticas do passado poderão ter sido extremamente rápidas: da ordem dos 1 a 3 anos em vez das esperadas centenas ou milhares de anos. Estes resultados forçam-nos a reconsiderar a ideia de que a adaptação rápida da biodiversidade a alterações do clima é improvável. A biodiversidade que possuímos resulta de um período conturbado do ponto de vista climático. A grande maioria das espécies que conhecemos terá sobrevivido a ciclos glaciares e interglaciares do Quaternário (o último período máximo glaciar terá sido há 21.000 anos). Estas representaram mudanças climáticas mais acentuadas do que as que se projectam para este século. Portanto, poderíamos supor que estas espécies teriam a capacidade de resistir às alterações climáticas actuais.
Acontece que o período de mudança climática que registamos possui outras peculiaridades. Uma delas é o elevado nível de concentração de CO2 – 380 partes por milhão (ppm) – que encontra paralelo apenas à 650.000 anos prevendo-se que possa alcançar os 450-550 ppm em 2050, ou seja, os níveis registados à 24 milhões de anos (em pleno Mioceno). Ora é muito difícil prever os mecanismos que acção e retroacção que poderão estar associados a estas elevadas concentrações de CO2. Outra peculiaridade, é o elevado nível de fragmentação de habitats que muito provavelmente impedirá a adaptação de muitas espécies por via da migração; o mecanismo mais provável de adaptação às alterações climáticas do passado. Outro aspecto a realçar é presença de espécies invasoras, cuja expansão se espera poder vir a ser potenciada pelo aumento de temperaturas e cujas consequências podem ser devastadoras para as faunas e floras locais. Finalmente, existe a expansão de algumas doenças com a “tropicalização” do clima. Por exemplo, pensa-se que a devastação global das populações de anfíbios se deve a uma interacção entre alterações do clima e propagação de um fungo letal entre espécies de anfíbios. O estudo destas interacções é extremamente complexo e prever o seu impacte a médio e longo prazo constitui um dos maiores desafios que temos entre mãos.
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8 comentários:
aquecimento global?
é irreversível e anormal?
efeito de estufa antropogénico?
CO2 causa ou efeito?
A lei de Henry e o papel sumidor do oceano nas trocas de CO2 foram convenientemente esquecidas?
- "No Sumário para Formuladores de Políticas do IPCC, publicado em fevereiro de 2007, afirmou-se que concentração de CO2 aumentou de 35 % nos últimos 150 anos. Porém, isso pode ter sido devido a variações internas ao sistema terra-oceano-atmosfera. Sabe-se que a solubilidade do CO2 nos oceanos depende de sua temperatura com uma relação inversa. Como a temperatura dos oceanos aumentou, devido à redução do albedo planetário e à atividade solar mais intensa entre 1925-1946, a absorção (emissão) de CO2 pelos oceanos pode ter sido reduzida (aumentada) e mais CO2 ter ficado armazenado na atmosfera. Portanto, não se pode afirmar que foi o aumento de CO2 que causou o aumento de temperatura (Figura CM4). Pode ter sido exatamente ao contrário, ou seja, que o CO2 tenha aumentado em resposta ao aumento de temperatura dos oceanos e do ar adjacente".
http://mitos-climaticos.blogspot.com/
é tão lícito referir os interesses ligados ao comércio dos combustíveis fósseis, como os interesses que se lhes opõem e a quem interessa que se alimente a histeria global.
claro que o clima muda, sempre mudou e há-de mudar .. e com essas mudanças mudará a biosfera .. nuns sítios para melhor, noutros para pior .. sempre assim foi .. independentemente da acção do Homem!
Sou a favor de energias mais limpas, por causa dos efeitos de concentração local .. nunca pelas razões não demonstradas dum propalado efeito global no clima com origem na actividade humana.
Eu acho que o problema é o modo como passamos a mensagem. É possível defender energias renováveis sem tocar no aquecimento global sequer, não caindo nas armadilhas neo liberais.
Fica a minha humilde sugestão e convite:
http://ovalordasideias.blogspot.com/2009/02/os-argumentos-das-energias-renovaveis.html
Admitindo um período de tempo de 100 anos - 1909 a 2009, gostaria de ter informações fidedignas sobre qual é a quantidade média de gases do efeito estufa emitida naturalmente pelo planeta, por ano, e qual é a quantidade média da emissão dos mesmos gases, proporcionada por empresas humanas, no mesmo intervalo de tempo?
Ricardo Kohn de Macedo, Rio de Janeiro, Brasil
http://fiel-inimigo.blogspot.com/2009/11/coisas-giras-desobertas-sabe-se-la-como.html
Caro HPS
Do Insurgente em 29.XII.2009, e por sua sugestão, saltei para aqui.
Li tudo com atenção, e com a sua licença aqui vai.
A Terra tem 4,500,000,000 anos aproximadamente. Andamos a medir com extrema precisão o CO2, a altura dos oceanos, e a temperatura há meia dúzia de anos. Depois juntamos estas medições extremamente precisas, com milhares de estimativas ousadas sobre os valores de CO2, altura dos oceanos e temperaturas. A seguir pega-se num modelo que – presume-se - deve ser constituído por funções contínuas que aproximaram os valores discretos anteriores. Estas funções têm por isso inerentes erros. Mas mesmo assim são demasiado complicadas para admitirem soluções analíticas, ou sequer numéricas (caso das equações de transmissão de calor, e de mecânica dos fluidos), portanto simplificam-se e aumentam-se ainda mais os erros. Desprezam-se uns efeitos que ninguém sabe que influência têm no objecto de estudo, e – porventura - mais uns tantos que ninguém descobriu. Leva-se tudo ao computador, saem uns números, que para serem mais precisos são compostos com uns tricks (de boa matemática entenda-se!). E o que é que se conclui após este monumental «trabalho científico»? O CO2 subiu uns ppm’s, o oceano uns centímetros, e a temperatura umas décimas de grau.
Quem não é peer não pode comentar; presume-se que o Planck por ser físico não seria peer, o Newton e o Arquimedes idem, idem; mas mesmo assim, à cautela, escondam-se os dados, esconda-se o modelo, e apele-se à Fé nos resultados do MODELO! Porque a Fé move montanhas, e traz recompensas aos seus servidores – de preferência recompensas em vil metal.
Será dejá-vù e já terei ouvido dizer: «Bem aventurados os pobres de espírito porque deles é o reino dos céus»?
Deixemos o sentimento e passemos à ciência, e à mais elementar. Sai uma pergunta: como é que é possível que os resultados de uma fórmula física possam ser mais precisos do que os dados?
JM
Caro JM,
Aconselho a leitura dos dois posts do Miguel Araújo de há minutos.
Peço-lhe que depois lhe coloque a questão a ele, que sabe mais que eu sobre a matéria.
Chamos no entanto a atenção para as evidências indirectas que são totalmente independentes das medições actuais e de que fala o Miguel.
henrique pereira dos santos
Caro HPS,
Registo e agradeço a cortesia inerente à sua resposta. Aproveito para lhe dizer que não partilhando - de todo - a sua visão relativamente ao tema GW, partilho muitos pontos de vista consigo, nomeadamente sobre temas como o ordenamento do território, política florestal, protecção ambiental...
Temo aliás que a «colagem» de alguns destes assuntos ao AGW, possa conduzir no futuro próximo a um retrocesso na forma como são tratados - aí sim - com gravíssimos prejuízos para todos nós.
Cordialmente,
JM
Caro JM,
O mais curioso é que tenho uma posição mais que cautelosa em relação às alterações climáticas, bastante pouco sólida e a que raramente ligo os outros problemas ambientais.
Mas não posso ignorar a impressionante bateria de informação sobre riscos que, mal acautelados por visões extremas, de um lado ou do outro, podem dar muito mau resultado.
henrique pereira dos santos
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