terça-feira, janeiro 27, 2009

O jogo de sombras

fotografia de josé branco

O que relato neste post são processos em que participei, mais nuns que noutros, de que guardo as memórias aqui descritas que com certeza conterão imprecisões e erros que derivam do facto de não as estar a confrontar com os documentos da época.

Quando ontem li no público uma peça onde se relacionava a QUERCUS e o Freeport, por via de uma queixa comunitária em 2002 confesso que fiquei incomodado.

Não percebi a que título aparecia a QUERCUS neste momento e contexto a entrar na discussão do Freeport, sobretudo porque na peça não havia rigorosamente nada de novo, transcrevendo-se uma queixa entretanto arquivada, aspecto a que a peça não faz referência (naturalmente este comentário não é uma crítica à QUERCUS mas ao Público).

Mas estes são os aspectos que embora me incomodem me parecem menos relevantes para o que pretendo comentar.

Comecemos por fazer um enquadramento de que aparentemente muita gente está esquecida.

A questão do Freeport não aparece isolada, ela insere-se na contestação do movimento ambientalista à localização da Ponte Vasco da Gama, decidida por Cavaco Silva.

Nessa contestação o movimento ambientalista serviu-se de todos e quaisquer pretextos que conseguiu encontrar para tentar forçar a Comissão Europeia a não financiar a ponte (ou a pedir de volta o financiamento já feito).

Nesse afã o movimento ambientalista (cheio de razão quanto ao erro histórico de localização da ponte, sobretudo por razões de ordenamento do território mais do que de conservação da natureza) misturou de forma sistemática questões sérias com pretextos para criar dificuldades e convencer a Comissão Europeia de que Portugal não tinha um Estado de confiança e não iria cumprir os compromissos que assumisse para garantir o financiamento da ponte considerados pelo movimento ambientalista apenas subterfúgios para garantir o facto consumado (em parte isto é verdade, basta olhar para a triste história da fundação das salinas do samouco).

Criou-se assim um jogo de sombras institucional:


  • o movimento ambientalista, que contestava a ponte por razões de ordenamento do território, matéria na qual não existe interferência comunitária, mas fingia que se movia por razões ambientais e sobretudo de conservação da natureza, matéria em que podia contar com a intervenção da Comissão Europeia;

  • o governo, quer o de Guterres, quer o anterior de Cavaco Silva, fingia que cumpria integralmente tudo o que fosse determinado pela Comissão Europeia em matéria ambiental, ao mesmo tempo que pretendia resolver problemas concretos que iam ao arrepio dos compromissos;

  • a comissão europeia fingia absoluto rigor no acompanhamento da obra, ao mesmo tempo que procurava evitar o imenso sarilho de retirar o financiamento comunitário à construção da ponte.

O melhor exemplo do absurdo das soluções encontradas talvez seja a expansão da ZPE que na altura foi feito.

O movimento ambientalista pretendia obter um segundo e substancial aumento da área da ZPE porque achava um bom instrumento de controlo urbanístico (do meu ponto de vista um erro crasso). A comissão europeia queria dar resposta ao movimento ambientalista e obrigou o Estado Português a fazer esse aumento com fundamento na destruição de umas nesgas de sapal algures (não me lembro já se por causa da variante à EN10 se mesmo da ponte). O governo português, já com sérias dificuldades de gestão da ZPE nem queria ouvir falar em aumentos de área, tanto mais que eram as obras públicas a fazer a ponte e ficar com as receitas da concessão mas o ambiente a ficar com os custos e o ónus da futura má gestão por falta de recursos.

Depois de muita discussão sobre a regulamentação comunitária, identificou-se exactamente a área de valores protegidos afectada pelas obras em causa, procurou-se uma área de sapal sem problemas que fosse dupla ou tripla da área afectada (o estado português argumentou com o princípio da proporcionalidade das medidas compensatórias, princípio que foi abandonado quer em Odelouca, quer no Sabor, substituído pelo de sobre-compensação, substituição que irá custar enormes recursos à economia nacional no futuro, se algum dia forem integralmente cumpridos) e classificou-se como ZPE uma pequena área de quatrocentos hectares, completamente irrelevante para a gestão da ZPE (embora com valor natural inegável) mas que permitia quer à Comissão Europeia dizer ao movimento ambientalista que tinha obrigado o Estado português a aumentar a ZPE para compensar os novos impactos detectados e ao Estado português manter o financiamento da ponte, apesar dos protestos do movimento ambientalista cujos argumentos formais tinham sido respondidos com decisões formais e cujos argumentos de substância (o controlo urbanístico) tinham ficado sem resposta.

É pois neste contexto que surge o Freeport (ou o loteamento industrial do Passil, ou empreendimento do alto dos moinhos).

A questão dos limites da ZPE vinha muito de trás (também as ideias dos projectos que referi, com maior ou menor alteração) e já na aprovação do Plano Director Muinicipal de Alcochete se tinham confrontado três posições: a da autarquia e promotores, que queriam alterar os limites da ZPE à medida dos projectos em carteira e eventuais outros novos; a do movimento ambientalista, que não queria mexer um átomo, mesmo em situações claramente absurdas de inclusão na ZPE (como era o caso da fábrica da Firestone, com a laboração encerrada e onde hoje está o Freeport) com medo dos precedentes e, a posição que eu perfilhava e que sustentou as propostas do ICN na altura, os que defendiam uma alteração de limites assente em pressupostos técnicos claros e adoptando rigorosamente os procedimentos previstos na directiva aves, ou seja, em co-decisão com a Comissão Europeia. Os problemas no financiamento da ponte que uma discussão com a comissão europeia sobre essa matéria poderia provocar face à intransigência e à táctica de guerrilha permanente do movimento ambientalista nessa matéria de levou o governo de então a aprovar o plano director municipal sem alterações de limites de zpe e com normas não ratificadas nessas áreas, arrastando o problema de algumas incongruências de limites da ZPE (parte dos quais resultam do facto da delimitação original da ZPE ser feita por estradas, a cinquena metros da sua margem mas a sua transcrição posterior eliminar esta faixa fazendo coincidir o limite da ZPE com a estrada em si mesma).

O que estava pois em cima da mesa na discussão do Freeport não era exactamente o Freeport mas as sequelas deste confronto a propósito da ponte Vasco da Gama.

Por isso a queixa feita pela QUERCUS é incapaz de identificar impactos concretos nos valores protegidos pela Directiva Aves, falando de coisas tão vagas como os objectivos da ZPE constantes do seu plano de gestão, que dificilmente poderiam ser significativamente afectados pelo empreendimento em causa. Por outro lado a QUERCUS argumenta com um incumprimento do regime da REN (matéria sobre a qual a comissão europeia não tem qualquer tutela) no que me parece um erro de interpretação da lei.

A questão levantava-se porque o Plano Director Municipal fazia aplicar o regime da REN a determinadas áreas do seu zonamento (parte das quais, penso que sobretudo o estacionamento, integravam o Freeport). De facto o regime da REN correspondia a um regime estrito non aedificandi e não permite a construção do que estava previsto (volto a dizer, no que diz respeito à maior parte do estacionamento, não aos edifícios, se bem me lembro). Mas a REN do concelho de Alcochete não estava aprovada pelo que se aplicava um regime transitório, menos taxativo (mais um exemplo de legislação absurda visto que o lógico seria que o regime transitório, por menos fundamentado, fosse mais restritivo e não a inversa). O parque de estacionamento não violava por isso o regime da REN. Mas, e nunca percebi por que razão a questão não foi levantada nos tribunais portugueses a não ser por incompetência dos opositores do projecto, o PDM fazia aplicar à referida área o regime da REN (na sua versão mais restritiva). Isto é, sendo certo que não havia violação do regime da REN por não haver REN aprovada, para mim é bem certo que houve violação dessa norma específica do PDM que manda aplicar o regime da REN.

A propósito desta discussão toda vir puxar por uma peça do puzzle e usá-la fora do contexto é para mim mais uma demonstração de como na discussão de políticas públicas gostamos mais de ruído que de música.

henrique pereira dos santos

2 comentários:

Johnny Bigode disse...

Caro Henrique Pereira dos Santos

Antes demais, gostaria de dizer que tenho apreciado imenso as suas contribuições neste blog, e dizer que considero que tem feito uma análise muito lúcida de como as coisas se costumam passar a nível decisórione neste nosso país. Pelo menos para mim, a leitura dos seus posts tem sido bastante enriquecedora.

Apenas uma pequena questão a propósito deste último post. Porque é que considera um erro crasso o movimento ambientalista pretender “obter um segundo e substancial aumento da área da ZPE porque achava um bom instrumento de controlo urbanístico”?
Ou seja, não lhe parece ser válida a ideia de expandir a ZPE como forma de criar “buffer zones” entre o núcleo duro dos valores de conservação e razão de ser da sua designação e a pressão urbanística envolvente? Porquê, sendo que a designação vem ainda acrescer o peso da legislação comunitária aos planos de ordenamento do território, os quais tendem a ser de mais maleáveis e de fácil alteração?

Obrigado desde já pelo esclarecimento,

Manuel Silva

Henrique Pereira dos Santos disse...

Caro Manuel Silva,
Em primeiro lugar não acho razoável que para obter um resultado definido se prefiram os instrumentos desenhados para outros objectivos aos que efectivamente servem o objctivo definido.
As ZPEs são um instrumento de gestão da política de conservação das aves não são, primariamente, um instrumento de contenção urbanística, matéria que deve ser tratada nos instrumentos de gestão do território.
Não era pela validade da ZPE enquanto instrumento de ordenamento do território que se pretendia expandi-la mas enquanto instrumento de alienação da soberania nacional que permitia ao movimento ambientalista apelar facilmente para a fiscalização europeia sobre o estado português.
Ora isso fragiliza os nossos instrumentos de ordenamento do território e cria a convicção de que o que não for protegido pelas directivas europeias é uma terra sem rei, nem lei.
E isso parece-me um erro crasso.
Porque nós devemos ter uma política nacional de defesa do nosso património, mesmo que ele não seja património europeu, como é o caso, bem relevante nesta zona, do solo agrícola mais produtivo, só para dar um exemplo.
henrique pereira dos santos