quinta-feira, fevereiro 05, 2009

A insuportável erosão da ética na administração pública


Leio hoje no Público:

"A ex-directora regional do Ambiente, Fernanda Vara, que tutelou a avaliação do Freeport, admitiu ao PÚBLICO que solicitou urgência na análise, a pedido da Câmara de Alcochete. Mas rejeita que tenha sido ela a determinar um prazo ou a fixar a data de 14 de Março, constante na informação da técnica. "É o único sítio onde vejo essa data. E não foi nenhum dirigente que a fixou"."

Conheço Fernada Vara, conheço a técnica em causa (Antonieta Castaño) e o jornalista que escreve a notícia (Ricardo Garcia).

Independentemente da opinião que tenha sobre o grau de fiabilidade desta citação e destas pessoas em concreto, o que me interessessa é o facto em si e não as pessoas envolvidas, quer as coisas sejam exactamente como o descrito, quer haja variações talvez irrelevantes para a notícia mas relevantes para o juízo de valor que quem quer que seja queira fazer sobre os envolvidos.

Por mim não quero fazer qualquer juízo de valor sobre estas pessoas.

Mas não quero deixar de fazer notar o que todos os dias se vai passando na administração pública, sem que a maior parte de nós se aperceba.

Por contraste, falo de um outro caso onde estive envolvido.

Há um parque eólico perto de Montesinho, do lado espanhol, que em determinada altura deu brado. A alegação é a de que o parque eólico existiria porque alguém não tinha respondido a uma informação interna do ICNB que tinha vindo de Montesinho quando começaram as obras.

A alegação em si é idiota porque não há uma relação de causa efeito entre a construção do parque eólico e a ausência de resposta.

A resposta a essa informação poderia, no máximo, desencadear uma diligência diplomática junto do Estado Espanhol, com a alegação de que o parque eólico afectaria potencialmente valores protegidos pelas directivas aves e habitats e portanto careceria de avaliação de incidências ambientais.

O parque estava autorizado do lado espanhol (a informação de Montesinho é desencadeada pelo início das obras) e estaria construído muito antes da alegação ter resposta sendo preciso ainda que a alegação do Estado Português fosse muito forte para conseguir reverter a situação (o que duvido que fosse possível sustentar facilmente). A prova disso é que penso que há mais de ano e meio terá sido feita essa diligência pelo Estado Português (depois da celeuma pelo arquivamento errado da informação de Montesinho) e duvido que alguém até hoje saiba o seu resultado concreto. (um resumo sobre o assunto, incluindo a sua discussão pode ser encontrado aqui, por exemplo)

Mas para o que aqui me traz hoje, o que é relevante, é que quando se procurou saber o que se passou com a informação perdida e se chegou à conclusão de que tinha sido erradamente arquivada pelos técnicos para quem foi despachada, numa altura confusa que coincide com a mudança de instalações do ICNB, não me passou pela cabeça responsabilizar publicamente os técnicos nem falar na falta de espinha dos meus colegas de Montezinho que durante dois anos de falta de resposta à sua informação se consideraram desresponsabilizados de levar a carta a Garcia, porque já tinham feito uma informação, ao ponto de sistematicamente esconderem a sua inacção durante dois anos apontando para os colegas do serviços centrais do ICNB.

Sendo para mim claro que quando se perde uma guerra a responsabilidade é sempre dos generais, não dos soldados, ou dito de outra maneira, tarefas delegam-se mas responsabilidades não, assumi publica e inteiramente a responsabilidade do erro da unidade orgânica sob minha responsabilidade, o que deu origem a várias acusações mais públicas ou mais veladas de corrupção.

Por ter este entendimento deste tipo de situações e por saber como são informais os mecanismos de formação da decisão na administração pública actual é que a frase final do artigo que cito acima me choca profundamente.

Basta olhar para os comentários a outro artigo do público sobre este processo e para a estranheza das pessoas sobre a inexistência de actas em reuniões, mesmo importantes, para perceber como as pessoas desconhecem que todos os dias o código do procedimento administrativo é violado sem ninguém se preocupar com isso.

Com certeza há responsabilidades de cada interveniente no processo administrativo nesta situação.

Mas talvez seja mais fácil entender como se chegou a este ponto se se explicar que apesar de na área do ambiente e ordenamento do território se tomarem decisões administrativas que podem valorizar um terreno do dia para a noite em vários milhares de euros, não há um mecanismo sistemático de auditoria à qualidade e fundamentação das decisões (existe, com lacunas, mas existe sobretudo vocacionado para as autarquias, não há de forma consistente nos organismos da administração central).

A história caricata de um director de uma área protegida que fez um despacho interno mudando o zonamento de uma área protegida com um marcador encarnado em cima de uma fotocópia (de menos restritivo para mais restritivo, não vale a pena pensar que foi por razões estranhas, foi mesmo por ignorância, incompetência e sentimento de total impunibilidade) e quando confrontado com uma informação de um dos técnicos, claramente fundamentada, dizendo que o despacho era ilegal por violação evidente dos mecanismos legais de alteração dos planos, se limitou a mandar arquivar a informação, é bem o retrato do caldo de cultura onde se dissolve lentamente a ética de serviço público e de responsabilidades das chefias que, em alturas mais dificeis, atiram a responsabilidade para os seus subordinados que diligentemente escreveram o que as chefias e as tutelas não quiseram escrever.

henrique pereira dos santos

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