quarta-feira, março 11, 2009

O cadastro

Estas imagens fazem parte de uma campanha publicitária que, tanto quanto ouvi das pessoas envolvidas, e se não me engano, desencadeou o processo de concepção da iniciativa Business and Biodiversity em Portugal
O post anterior do Gonçalo Rosa vem demonstrar o papel central que o cadastro dos valores naturais adquire no novo regime jurídico da conservação
Neste post fiz uma leitura breve do que me pareceu mais interessante nesse regime.
Daí cito o seu ponto 10:
"Merece destaque a criação ex-novo do Cadastro Nacional de Valores Naturais Classificados (prazo de dois anos para elaboração do primeiro) que não deve ser confundido com o inventário do património natural. O cadastro é o registo dos valores classificados, é revisto periodicamente e sujeitas as revisões a discussão pública. Na prática, entre outras coisas, este cadastro vem dar conteúdo jurídico aos livros vermelhos que eram, até agora, instrumentos técnicos de apoio à decisão. Outra das consequências do cadastro é criar um instrumento de classificação nacional de espécies e habitats que apenas existia enquanto subsidiário de classificações supra-nacionais. Refira-se ainda que qualquer pessoa ou entidade pode propor a integração de qualquer valor no cadastro desde que fundamentado em informação científica;"
A análise do Gonçalo Elias citada pelo Gonçalo Rosa parece-me que desvaloriza a lei da caça (não fui verificar mas admito que possa ter disposições aplicáveis ao abate da imperial) e o DL 140/ 99 (já foi mudado e agora tem outro número, é a transposição das directivas aves e habitats) que conterá também disposições, incluindo coimas, aplicáveis. Mas parece-me certa na leitura do novo regime jurídico da conservação.
Independentemente deste aspecto o que gostaria de referir é que passou já um quarto do tempo disponível para a elaboração do cadastro e acredito que o ICNB esteja a trabalhar nisso. É uma questão de fé, não faço ideia se está ou não.
Mas o cadastro tem algumas características relevantes, como seja o facto de receber propostas de qualquer pessoa, desde que fundamentadas cientificamente, e o facto de ser necessário sujeitá-lo a discussão pública.
A minha questão é simples: o que fizemos nós, movimento ambientalista, para preparar essa discussão, para propôr o que muitas vezes dizemos que é incrível que não tenha estatuto de protecção e para contribuir para o melhor cadastro possível a aprovar no mais curto espaço de tempo?
Será que as organizações que reagiram ao abate da imperial exigindo mais responsabilização fizeram o seu trabalho de casa com base no que o novo regime jurídico permite que os cidadãos façam?
Já dizia o Carlos Tê: "é triste ser-se crescido e ter responsabilidades". E tinha razão, é triste ter um regime jurídico muito mais liberal que a legislação anterior e que nos coloca a nós todos perante as nossas responsabilidades.
Era tão mais fácil quando as responsabilidades eram todas do ICNB.
henrique pereira dos santos

5 comentários:

Gonçalo Rosa disse...

Henrique,

Concordo com o essencial do que escreve, mas gostava de salientar que não me parece ter sido o Gonçalo Elias que desvalorizou a lei da caça. Aliás, coloca as suas dúvidas sobre a forma de questões no final do seu post. É mesmo no comunicado do ICNB, que vem escrito que "O abate desta águia configura uma contraordenação ambiental muito grave, em conformidade com o Regime Jurídico da Conservação da Natureza e da Biodiversidade (Decreto-Lei nº 142/2008, de 24 de Julho).". Para além de nada dizer sobre a Lei da Caça, refere uma lei que, segundo a nossa leitura (que vale o que vale), não poderá ser aplicada.

Ainda a respeito disso (e, portanto, do post anterior) pedi a uma minha conhecida, jurista, com bastante experiência nesta área, que desse a sua opinião sobre a forma de comentário. Espero que tenha a oportunidade de o fazer. Seria um excelente contributo.

Gonçalo Rosa

Anónimo disse...

Viva Henrique,

De facto não mencionei a lei da Caça mas já agora vamos ver em detalhe que instrumentos legais temos em vigor para lidar com esta situação.

O artigo 6 - 1B da lei da Caça decreta que é proibido caçar espécies não cinegéticas. No seu artigo 30 refere-se que a violação desse artigo 6º constitui um crime.
Note-se que esta lei não estabelece qualquer distinção entre matar uma águia-imperial, uma andorinha-dos-beirais ou um pardal-comum (nos três casos estamos perante um crime), ficando obviamente ao critério do juiz a determinação da pena a aplicar (multa ou prisão). Pode parecer bizarro mas é assim mesmo. Esta parte dou de barato.

O que não dou de barato é o que se segue.

Temos duas leis em vigor: uma (a Lei de Bases Gerais da Caça) que diz que matar uma águia-imperial é um crime e outra (o Regime Jurídico da Conservação da Natureza e da Biodiversidade) que diz que matar uma águia-imperial é uma contra-ordenação. Se escolhermos ir pela primeira estaremos arbitrariamente a classificar como um crime um acto que a nova lei não prevê como sendo um crime, mas sim uma contra-ordenação.
E tem mais: como a nova lei apenas prevê que constitua contra-ordenação a caça a espécies consideradas vulneráveis, em perigo ou criticamente em perigo, daqui se conclui que no caso do abate de uma águia-imperial não é claro se constitui um crime ou não; já no caso do abate de um pardal-comum, estamos claramente perante um crime (de acordo com a lei da caça, que é a única que se aplica nesse caso).

Há pois uma ambiguidade sobre se se o abate de uma águia-imperial se trata de um crime ou não. Como se determina se estamos perante um crime? Fica sujeito ao livre arbítrio de quem fiscaliza?

Suponhamos que dois indivíduos diferentes abatem uma águia-imperial cada, em zonas diferentes do país.
No primeiro caso o autuante decide aplicar a Lei de Bases Gerais da Caça e indivíduo é condenado por crime. O crime fica registado no seu cadastro (Registo criminal).
O segundo indivíduo, que cometeu o mesmo acto, é acusado e contra-ordenação, ao abrigo do novo Regime Jurídico, e paga uma coima. O seu cadastro fica limpo.

Esta situação abre espaço para tremendas injustiças sociais. Situações exactamente iguais têm tratamento diferente, em função do critério do autuante.

E também abre espaço para favorecimentos. Se o infractor for "amigo", leva com uma contra-ordenação e a coisa fica por ali. Se for "inimigo", é acusado de crime e vai para a cadeia.

Dois pesos e duas medidas, consoante a conveniência da situação.

Como se resolve esta embrulhada?

1 abraço,
Gonçalo E.

Henrique Pereira dos Santos disse...

Caros Gonçalos,
Apenas disse que para além do novo regime jurídico há ainda que analisar a legislação de caça e a transposição das directivas aves e habitats.
Situações como estas, de várias normas aplicáveis aos mesmos factos, há aos magotes.
Por exemplo, de acordo com o Plano de Ordenamento do Parque dos Candeeiros não se pode explorar uma pedreira sem ilegalmente. Mas há situações em que nem tudo está bem, é preciso obrigar a cumprir aspectos ainda por cumprir mas não faz sentido fechar a pedreira.
Durante anos a fiscalização foi ineficaz. Portanto, quando se começou uma fiscalização sistemática havia dezenas (em rigor, centenas, mas poucas) de pedreiras com ilegalidades. A estratégia passou por obrigar a licenciar o que podia ser licenciado e fechar o que tinha de ser fechado. Mas para isso era preciso aplicar um instrumento mais flexível. E por isso os autos eram levantados ao abrigo da legislação de ordenamento do território, com aplicação de coimas e etc., que não existiam na portaria do plano de ordenamento do PNSAC.
De qualquer maneira o meu post não é sobre isso (se o fosse teria feito um comentário nos sítios dos comentários) mas sobre o facto de aparentemente as pessoas e organizações empenhadas na conservação não estarem a prestar a devida atenção às possibilidades abertas pelo novo regime jurídico da conservação.
henrique pereira dos santos

Gonçalo Rosa disse...

Henrique,

Como disse, concordo com o essencial. Apenas fiz um apontamento de pormenor.

Gonçalo Rosa

Anónimo disse...

Henrique,

"sobre o facto de aparentemente as pessoas e organizações empenhadas na conservação não estarem a prestar a devida atenção às possibilidades abertas pelo novo regime jurídico da conservação."

O meu alerta visava precisamente o facto de o novo regime jurídico da conservação, ao entrar em conflito com a Lei da Caça e de permitir decidir, de forma arbitrária, se o infractor cometeu ou não um crime, abrir a possibilidade de o novo regime jurídico de conservação se tornar um instrumento gerador de trapalhadas legais e, consequentemente, de poder potenciar a descredibilização de quem a ele recorre.

Não se trata apenas de (mais) um conflito entre duas quaisquer leis, mas sim de abrir a possibilidade de ser tomada uma decisão arbitrária sobre se um acto desta natureza constitui um crime ou não.

Acho que é fundamental que aqueles que se preocupem com a conservação também se pronunciem sobre o que deve ou não ser considerado crime e sobre a aplicação da legislação vigente. E o novo regime jurídico, invocado a propósito do recente episódio sobre a águia-imperial, alertou-nos para este facto.

Essa questão deveria merecer alguma reflexão. Afinal de contas, vivemos num Estado de Direito.

Voltando ao tema deste post - o cadastro. Ou melhor, a falta dele. À falta de cadastro, continua por responder a questão que lancei no post citado pelo G. Rosa: "Em que se baseou o ICNB para classificar esta contra-ordenação ambiental como "muito grave"?"

O ICNB classifica o acto como uma contra-ordenação muito grave (com base numa lei que requer um cadastro inexistente), ao mesmo tempo que diz que vai apresentar uma queixa-crime (quando nem a lei em causa nem supostamente o referido cadastro enquadram criminalmente este acto).

Temos aqui uma bela embrulhada legal.

E penso que era bom que todos nos entendêssemos acerca da forma de lidar com estas situações. Punir, sim senhor, mas de que forma?

1 abraço,
Gonçalo E.