Prosseguindo o resumo da crónica de Hervé Kempf, ele lembra, a seguir, que a crise, ou mesmo o seu momento, era previsível para o caso dos Estados Unidos mas também para o da China.
Ele próprio a previu ao escrever em 2006:
«Entrámos num estado de crise ecológica duradoura e planetária, que se deveria traduzir por um abalo próximo do sistema económico mundial. Os rastilhos possíveis poderiam acender-se na economia ao atingir a saturação e esbarrar contra os limites da biosfera: uma paragem do crescimento da economia americana, minada pelos seus três défices gigantescos (balança comercial, orçamento, dívida interna). Como um toxicodependente que só se mantém de pé à custa de doses repetidas, os Estados Unidos, drogados do sobreconsumo, titubeiam antes do colapso; uma forte travagem do crescimento chinês, já que se sabe que é impossível que tal crescimento mantenha duradouramente um ritmo de crescimento anual muito elevado. Desde 1978, a China conheceu um crescimento anual da sua economia de 9,4 por cento. O Japão é um precedente a não esquecer: vinte anos de crescimento assombroso, e em seguida a estagnação duradoura desde o início dos anos 1990».
Prognósticos e Saídas
O prognóstico do cronista é que a economia não voltará a arrancar como antes e que o crescimento mundial do PIB não voltará aos 5 por cento; teria terminado a expansão rapidíssima da China e da Índia. Temos pois, segundo ele, que conceber um mundo novo, uma outra economia, uma outra sociedade, inspirados pela ecologia, pela justiça e pelo cuidado pelo bem comum. O prognóstico poderá estar errado, mas é evidente que o de 2006 se confirmou em pleno, para já. Sem esquecer que as crises que precederam e preanunciaram a atual (Ásia nos anos 1990, economia internética no início dos anos 2000) foram elas também, de alguma forma, previstas por diversos economistas e analistas não convencionais a que ninguém «sério» obviamente prestou ouvidos.
De facto, estamos sempre a ler e a ouvir que NINGUÉM previu esta crise. Não é verdade, não apenas pela citação que fizemos de Kempf, mas também devido a muitos outros analistas, incluindo economistas, embora minoritários. Seria de referir aqui a New Economics Foundation criada sob inspiração de Fritz Schumacher (cujo celebérrimo Small is Beautiful foi, se apreciado por muitos, largamente ridicularizado pelos próceres da mesma economia que agora se apregoa em grave estrangulamento), autores como James Robertson (veja-se, em tradução portuguesa, o seu Transformar a Economia - um desafio para o terceiro milénio), Richard Douthwaite ou Bernard Litaer, e outros economistas ecologistas como Hazel Henderson e Herman Daly, ou fundações de analistas como o Worldwatch Institute ou o Earth Policy Institute, ambos fundados por Lester Brown, que não se limitam a análises mas propõem caminhos, para além de inúmeras correntes de pensamento e de práticas que, um pouco por todo o mundo, têm procurado seguir inspiração semelhante. Claro que nada disso existe aos olhos do mundo oficial, que é quem dita a regra do que existe ou não existe.
E, no entanto, quem tinha por função prever e antecipar soluções nada previu e nada antecipou. É claro que, sendo esses o mundo «oficial», o único que para eles e para a imprensa realmente existe, tudo o resto não passando de paisagem ou menos ainda, julgam de facto que NINGUÉM (isto é, nenhum deles) nada previu. O que faz supor que as soluções postas em marcha serão segundo as receitas deles mesmos e não segundo as sugestões e pistas fornecidas por quem teve a lucidez de prever. Daí que não possa haver expectativas excessivas sobre se as sociedades e seus líderes teriam aprendido já alguma coisa de fundamental com a crise.
E agora, que fazer?
Na última parte do seu pequeno artigo, Hervé Kempf põe a questão clássica já posta por Tolstoi e Lénine (um, a via não violenta, outro a via revolucionária; só a primeira, a meu ver, pode ajudar a sair do atual impasse), e depois sempre retomada quando a perplexidade se sobrepõe às convenções: que fazer? A resposta de Kempf, quiçá um pouco abrupta: parar de macaquear Keynes e de nos imaginarmos em 1929 quando estamos em 2009: a dependência, o endividamento, a inflação, não são a solução. Consertar o reboco do edifício não poderá reparar alicerces em ruínas. Importa pelo contrário operar uma redistribuição da riqueza coletiva em direção aos pobres; a ferramenta para isso poderia ser o RMA: rendimento máximo admissível. (Diga-se, comento eu, que isso provavelmente transformaria a corrida à riqueza em simples corrida ao RMA - talvez já fosse um progresso perante o que hoje se vê: a transformação da vida económica, social e nacional numa maratona rumo a um ranking que nada de facto de importante significa quanto a objetivos que não se reduzam à dimensão quantitativa; o que põe a questão, complexa, fulcral, mas que aqui não há espaço para abordar, do significado ou absurdo de índices como o PIB e das alternativas que têm sido tentadas).
Ainda segundo Kempf, a redução da desigualdade também ajudará a alterar o modelo cultural de sobreconsumo, e tornará suportáveis as descidas necessárias e inelutáveis do consumo material e de consumo de energia nos países ricos. Outra exigência: orientar a atividade humana para os domínios de fraco impacto ecológico, mas criadores de emprego, e nos quais as necessidades são imensas: saúde, educação, cultura, poupança de energia e sua produção ambientalmente compatível, incluindo a mais importante forma de energia que é a agricultura, transportes coletivos, a conservação e restauração da natureza. Fácil? Não. Mas, segundo ele, mais realista que julgar possível o regresso à antiga ordem, a anterior a 2007.
E por aqui me fico, não sem antes referir um artigo também publicado no mesmo jornal (mas em inglês, num pequeno suplemento do The New York Times), sobre a forma como os japoneses estão a reagir à crise: reforçando a poupança, refreando o consumo, levando um estilo de vida mais simples, para desespero dos «economistas» (seria mais certo chamar-lhes «gastadoristas»), que põem, desaprovadoramente, como parte da explicação, a ancestral cultura oriental que encontramos já compendiada nos grandes mestre chineses, no taoísmo, em Confúcio, etc, e que era também a «cultura» tradicional no Ocidente até há bem pouco tempo. De facto, a generalização da «criação de riqueza» à maneira ocidental moderna em países de outras culturas, embora aparentemente coroada de êxito, só pôde ser feita escorchando vivos os sujeitos dessa «felicidade»; basta acompanhar a evolução desses países para verificar que Dickens e Soljenitsine teriam aí farto material para novos «infernos industriais» e «concentracionários».
José Carlos Marques
jcdcm@sapo.pt
Ele próprio a previu ao escrever em 2006:
«Entrámos num estado de crise ecológica duradoura e planetária, que se deveria traduzir por um abalo próximo do sistema económico mundial. Os rastilhos possíveis poderiam acender-se na economia ao atingir a saturação e esbarrar contra os limites da biosfera: uma paragem do crescimento da economia americana, minada pelos seus três défices gigantescos (balança comercial, orçamento, dívida interna). Como um toxicodependente que só se mantém de pé à custa de doses repetidas, os Estados Unidos, drogados do sobreconsumo, titubeiam antes do colapso; uma forte travagem do crescimento chinês, já que se sabe que é impossível que tal crescimento mantenha duradouramente um ritmo de crescimento anual muito elevado. Desde 1978, a China conheceu um crescimento anual da sua economia de 9,4 por cento. O Japão é um precedente a não esquecer: vinte anos de crescimento assombroso, e em seguida a estagnação duradoura desde o início dos anos 1990».
Prognósticos e Saídas
O prognóstico do cronista é que a economia não voltará a arrancar como antes e que o crescimento mundial do PIB não voltará aos 5 por cento; teria terminado a expansão rapidíssima da China e da Índia. Temos pois, segundo ele, que conceber um mundo novo, uma outra economia, uma outra sociedade, inspirados pela ecologia, pela justiça e pelo cuidado pelo bem comum. O prognóstico poderá estar errado, mas é evidente que o de 2006 se confirmou em pleno, para já. Sem esquecer que as crises que precederam e preanunciaram a atual (Ásia nos anos 1990, economia internética no início dos anos 2000) foram elas também, de alguma forma, previstas por diversos economistas e analistas não convencionais a que ninguém «sério» obviamente prestou ouvidos.
De facto, estamos sempre a ler e a ouvir que NINGUÉM previu esta crise. Não é verdade, não apenas pela citação que fizemos de Kempf, mas também devido a muitos outros analistas, incluindo economistas, embora minoritários. Seria de referir aqui a New Economics Foundation criada sob inspiração de Fritz Schumacher (cujo celebérrimo Small is Beautiful foi, se apreciado por muitos, largamente ridicularizado pelos próceres da mesma economia que agora se apregoa em grave estrangulamento), autores como James Robertson (veja-se, em tradução portuguesa, o seu Transformar a Economia - um desafio para o terceiro milénio), Richard Douthwaite ou Bernard Litaer, e outros economistas ecologistas como Hazel Henderson e Herman Daly, ou fundações de analistas como o Worldwatch Institute ou o Earth Policy Institute, ambos fundados por Lester Brown, que não se limitam a análises mas propõem caminhos, para além de inúmeras correntes de pensamento e de práticas que, um pouco por todo o mundo, têm procurado seguir inspiração semelhante. Claro que nada disso existe aos olhos do mundo oficial, que é quem dita a regra do que existe ou não existe.
E, no entanto, quem tinha por função prever e antecipar soluções nada previu e nada antecipou. É claro que, sendo esses o mundo «oficial», o único que para eles e para a imprensa realmente existe, tudo o resto não passando de paisagem ou menos ainda, julgam de facto que NINGUÉM (isto é, nenhum deles) nada previu. O que faz supor que as soluções postas em marcha serão segundo as receitas deles mesmos e não segundo as sugestões e pistas fornecidas por quem teve a lucidez de prever. Daí que não possa haver expectativas excessivas sobre se as sociedades e seus líderes teriam aprendido já alguma coisa de fundamental com a crise.
E agora, que fazer?
Na última parte do seu pequeno artigo, Hervé Kempf põe a questão clássica já posta por Tolstoi e Lénine (um, a via não violenta, outro a via revolucionária; só a primeira, a meu ver, pode ajudar a sair do atual impasse), e depois sempre retomada quando a perplexidade se sobrepõe às convenções: que fazer? A resposta de Kempf, quiçá um pouco abrupta: parar de macaquear Keynes e de nos imaginarmos em 1929 quando estamos em 2009: a dependência, o endividamento, a inflação, não são a solução. Consertar o reboco do edifício não poderá reparar alicerces em ruínas. Importa pelo contrário operar uma redistribuição da riqueza coletiva em direção aos pobres; a ferramenta para isso poderia ser o RMA: rendimento máximo admissível. (Diga-se, comento eu, que isso provavelmente transformaria a corrida à riqueza em simples corrida ao RMA - talvez já fosse um progresso perante o que hoje se vê: a transformação da vida económica, social e nacional numa maratona rumo a um ranking que nada de facto de importante significa quanto a objetivos que não se reduzam à dimensão quantitativa; o que põe a questão, complexa, fulcral, mas que aqui não há espaço para abordar, do significado ou absurdo de índices como o PIB e das alternativas que têm sido tentadas).
Ainda segundo Kempf, a redução da desigualdade também ajudará a alterar o modelo cultural de sobreconsumo, e tornará suportáveis as descidas necessárias e inelutáveis do consumo material e de consumo de energia nos países ricos. Outra exigência: orientar a atividade humana para os domínios de fraco impacto ecológico, mas criadores de emprego, e nos quais as necessidades são imensas: saúde, educação, cultura, poupança de energia e sua produção ambientalmente compatível, incluindo a mais importante forma de energia que é a agricultura, transportes coletivos, a conservação e restauração da natureza. Fácil? Não. Mas, segundo ele, mais realista que julgar possível o regresso à antiga ordem, a anterior a 2007.
E por aqui me fico, não sem antes referir um artigo também publicado no mesmo jornal (mas em inglês, num pequeno suplemento do The New York Times), sobre a forma como os japoneses estão a reagir à crise: reforçando a poupança, refreando o consumo, levando um estilo de vida mais simples, para desespero dos «economistas» (seria mais certo chamar-lhes «gastadoristas»), que põem, desaprovadoramente, como parte da explicação, a ancestral cultura oriental que encontramos já compendiada nos grandes mestre chineses, no taoísmo, em Confúcio, etc, e que era também a «cultura» tradicional no Ocidente até há bem pouco tempo. De facto, a generalização da «criação de riqueza» à maneira ocidental moderna em países de outras culturas, embora aparentemente coroada de êxito, só pôde ser feita escorchando vivos os sujeitos dessa «felicidade»; basta acompanhar a evolução desses países para verificar que Dickens e Soljenitsine teriam aí farto material para novos «infernos industriais» e «concentracionários».
José Carlos Marques
jcdcm@sapo.pt
1 comentário:
Herman Daly fala em "Princípio da Desigualdade Limitada"
A New Economics Foundation fez esta interessante : propostaA Sustainable Development Commission também publicou um documento (oficial, dirigido ao PM Britânico) muito interessante, advertindo para a impossibilidade de um regresso ao "business as usual"
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