São duas as principais abordagens que o debate revela. De certa perspetiva, a crise financeira (que é também económica e institucional) surge como uma ameaça às políticas de combate às alterações climáticas e a outras políticas de proteção do ambiente. Perante a gravidade da crise, os Estados e as empresas estariam a cortar sem dó nem piedade na afetação de fundos atribuídos ou a atribuir a essas políticas.
Segundo outra vertente, a crise é oportunidade. De facto, a parcial paralisia da máquina económica é vista por outros como uma oportunidade de reorientar toda a economia num sentido mais favorável ao ambiente e uma demonstração de efeitos benéficos de uma paragem em atividades destrutivas.
É essa por exemplo a posição de Hervé Kempf, jornalista do Le Monde, e autor de diversos livros, dois dos quais, os mais recentes, ostentam títulos elucidativos (ver: [1]) : em 2007, «Comment les riches détruisent la planète ? » (Como é que os ricos destroem o planeta) e, em 2009 : «Pour sauver la planète, sortez du capitalisme» (Para salvar o planeta, saiam do capitalismo).
Um seu pequeno artigo, uma crónica curta na verdade, na edição do Le Monde de 15-16 de fevereiro de 2009, apresenta um resumo dessa posição.
Nesta primeira parte refiro o primeiro dos três pontos em que Hervé Kempf divide o seu texto.
Começando por advertir num parágrafo de introdução geral que o que se vai ler é radicalmente contrário ao discurso dominante, o primeiro ponto passa então a proclamar que a crise económica é uma boa notícia. E convida-nos a imaginar o que aconteceria se o produto interno bruto (PIB) da China tivesse continuado a crescer 10 por cento ao ano, o dos Estados Unidos 5 por cento e o da Europa 2,5 por cento. As emissões de gases de efeito de estufa daí resultantes teriam rapidamente atingido o limiar que faria bascular no irreparável as alterações climáticas. O colapso da biodiversidade ter-se-ia acelerado, precipitando a sociedade humana num caos indescritível. Ao deter este crescimento louco do PIB mundial, a «crise económica» permite atenuar os assaltos da humanidade sobre a biosfera, ganhar tempo e refletir na nossa reorientação.
Seguem-se outros dois pontos, que referirei noutras partes subsequentes.
É claro que Kempf não ignora os enormes dramas causados pelos despedimentos na sequência da crise. Mas, como é evidente, não se pode acusar a sua posição de ter provocado esses despedimentos! Há muito que os que pensam assim (pois muitos o pensaram por antecipação de décadas e até mais do que isso, embora sem referência a um momento tão concreto da história) propõem precisamente a tal reorientação PARA EVITAR os dramas que se estão a passar! Simplesmente, a máquina social continuou (e continua) a rolar em direção ao muro. Se alguns passageiros procuram saltar em andamento, a maioria foi conduzida, e está a ser conduzida, de encontro ao muro.
O desafio que a crise ambiental (clara para as instituições internacionais pelo menos desde 1972, data da Conferência de Estocolmo da ONU sobre o ambiente) sempre colocou foi o de mudar a direção da máquina de forma a ela não ir embater contra o muro. Isso decerto implicaria que outras prioridades tinham que ser dadas ao funcionamento social (económico e portanto político), outras atividades teriam que substituir as atividades ambientalmente destrutivas e deveriam ser remuneradas – inclusive não-atividades aparentes –, o que evitaria os despedimentos massiços a que se assiste e se continuará a assistir provavelmente. O próprio conceito de «desenvolvimento» teria tido que ser orientado para outros fins: não medido pelo crescimento económico ou do PIB, mas pela satisfação do humano fundamental, a começar pela não-fome, pela instrução, a saúde preventiva, a proteção da natureza. Ora, como foi demonstrado desde há muito, grande parte daquilo que é rotulado de desenvolvimento é precisamente o que leva largos setores da população à fome, à falta de instrução, à doença, à exposição aos efeitos da destruição ambiental, incluindo as vagas enormes de refugiados e migrantes ambientais ainda por vezes confundidos com simples migrantes económicos.
Ao surto de consciência ecológica nos anos 1960-70, que se baseava nessa perspetiva, seguiu-se, nos anos 1980, uma doutrina da conciliação espontânea da economia, tal como existia, com a proteção ambiental. Doutrina falsa ou equivocada, que é parte do problema atual, e não da solução. Sem dúvida, a economia e o «desenvolvimento» não só são compatíveis com a proteção e regeneração do ambiente e da natureza como só são possíveis com estes últimos (e vice-versa). Mas é então uma economia e um «desenvolvimento» profundamente diferente do que tem sido tomado por esses nomes, com outras prioridades e outras práticas, e exigindo outras estruturas sociais e produtivas e outros modos de funcionamento. E passar a essas outras formas de funcionamento (o que obviamente não pode ser feito com uma varinha mágica e levará sempre um tempo prolongado de transições graduais) é a solução que restaria à crise. Seria para isso necessário que as sociedades, de forma consciente e coletiva, optassem por essas soluções e revissem portanto as suas prioridades.
Nada garante que tal aconteça, os sinais dominantes são mesmo inversos desses. As transformações, se vierem a existir, em vez de assumirem a forma gradual capaz de adoçar o impacto doloroso da transição, serão talvez provocadas aos sacões, como o está em parte a ser esta crise atual e poderão ser as futuras. Sacões porém com um cortejo enorme de sofrimentos atrás de si.
[1] http://mneaquitaine.wordpress.com/2009/01/20/kempf-pour-sauver-la-planete-sortez-du-capitalisme/
José Carlos Marques
jcdcm@sapo.pt
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